Recomeçar do zero num albergue temporário
Dois dias e uma noite numa instituição onde se procura a “normalidade” de uma vida anterior, garantida e perdida.
O dia começa cedo no 237 da Mártires da Liberdade. O despertar toca às 7h00 para os 49 homens e 11 mulheres que ocupam temporariamente os quartos distribuídos por três pisos. Têm uma hora para descer e entregar a chave do armário pessoal. Reúnem-se perto do refeitório onde é servido o pequeno-almoço entre as 8h00 e as 8h30. Nas dez horas seguintes não voltam a subir aos quartos, que são limpos durante esse período.
Poucos ficam durante o dia no Albergue D. Margarida de Sousa Dias, que é a maior unidade da Associação de Albergues Nocturnos do Porto (AANP) e que visitamos por dois dias e uma noite. Cada um tem a sua rotina. Uns retomam a busca para encontrar emprego, tentam encontrar um meio de conseguir o Rendimento Social de Inserção (RSI), vão para formações ou actividades de ocupação de tempos livres. Outros seguem pelo Porto a coleccionar quilómetros pelos pontos de passagem de todos os dias, alguns entregues a dependências como o álcool ou drogas, para queimar tempo até à hora de almoço.
A partir do meio-dia, uma pequena multidão reúne-se perto do refeitório. Aos 60 utentes juntam-se mais 22 do pólo de acolhimento nocturno de Campanhã e os que chegam do Plano de Emergência Alimentar que, pela mão da Segurança Social, garante cerca de uma centena de refeições diárias. De acordo com a direcção do albergue, esse número é sempre “largamente” ultrapassado e as refeições não comparticipadas são suportadas pela AANP.
Os vigilantes controlam as entradas, distribuem as senhas e vão chamando grupos de dez, que entram tranquilamente, por fases. Enquanto esperam, há quem fale sobre os conflitos no Médio Oriente ou quem recorde algumas bandas da década de 1970, que diz não ouvir “há anos”. A maior parte está cabisbaixa, em silêncio e distante.
Depois do almoço um grupo aproveita o sol na esplanada do jardim. Manuela Araújo “aquece os ossos” sentada numa das cadeiras de plástico. Tem problemas na anca. Aguarda a marcação de uma cirurgia. Com o frio que se tem feito sentir nos últimos dias, aproveita o sol “enquanto não foge”.
Está no albergue há 3 meses. Nasceu em Angola, há pouco mais de quatro décadas, passou por Lisboa e foi parar ao Porto. Pelo meio foi missionária na Bélgica, onde distribuía comida pelos mais desfavorecidos. Em Portugal foi encarregada numa empresa de limpezas, onde trabalhou durante uma década. Foi para Londres tentar a sorte. Esteve lá “uns anos” a trabalhar, onde diz existir qualidade de vida. “Lá não faltava nada. É tudo muito animado, há arte nas ruas e vive-se bem”, conta.
Voltou ao Porto para vir buscar as filhas que acabaram por não querer ir para Inglaterra. Foi ficando, até chegar a um ponto em que, sem trabalho, as condições financeiras não eram as mais favoráveis. Viveu num quarto de uma pensão, onde diz ter sido “explorada”. A dada altura não tinha forma de o pagar. Viveu um mês na rua. Por via da Segurança Social, foi parar ao albergue.
“A pobreza corrói. Transforma o nosso corpo. Degrada-nos espiritualmente. É um vazio para o nada”, partilha. Esta noção não a demove. Tem a certeza que esta é apenas “uma fase” da sua vida, não tem qualquer dúvida. Pouco fala no presente, está “de passagem” no albergue. Os problemas de saúde não a “deixam trabalhar”, mas definiu uma meta. Quando sair do albergue, assim que conseguir a reforma por invalidez, quer viajar, voltar a ser missionária, desta vez em África, de onde saiu com 4 anos.
Pela tarde há utentes que aproveitam algumas actividades que o albergue oferece: uma oficina de trabalhos manuais, onde se restaura mobiliário ou se pinta quadros, que na sua maioria passam a fazer parte da decoração do edifício; um grupo de teatro; o Som da Rua, orquestra composta por músicos de renome da cidade e, maioritariamente, por sem-abrigo, que ensaia numa das salas do edifício.
Armando Alves é um dos utentes do albergue e membro do coro da orquestra. “Meto-me em tudo”, diz. Também já participou no grupo de teatro. “Gosto de estar com a cabeça ocupada. Preciso de uma rotina”, conta.
Quem está no programa de alojamento deste albergue, que conta com o serviço de assistentes sociais, psicólogos, médico de clínica geral e psiquiatra, tem que cumprir uma série de regras de horários, de higiene e de proibição do uso de drogas ou de álcool dentro da casa. Quem repete as infracções é convidado a ceder o lugar a outro. “Não podia ser de outra forma. Este é um espaço que tem que ser visto como um ponto de partida para voltar à vida e na vida real há regras”, afirma.
À espera da reforma
Mais de metade da “vida real” de Armando, que tem agora 58 anos, foi passada a trabalhar: “Tenho 39 anos de descontos”, diz. Trinta dos anos de trabalho foram passados na fábrica da Molin, em Gaia, que abriu falência em 2001. Nunca mais trabalhou. Agora diz ser “novo de mais” para se reformar e “velho de mais para arranjar emprego”. Nesse entretanto foi parar ao albergue. “Nunca pensei que isto me fosse acontecer”, diz. Se não fosse este centro de alojamento estaria na rua, onde chegou a passar dois dias. “Tive a sorte de ter uma vaga mal fiquei sem sítio para morar”, recorda.
Mais de um mês e meio à espera esteve Gonçalo Granja, que chegou ao albergue há 4 meses. Antes de lá chegar vivia na rua. “Não queria prejudicar mais a minha família”, diz. Actualmente não consome, mas esteve “agarrado” à heroína e cocaína durante 25 anos. Agora com 50, admite ter arrastado a família para o sofrimento por causa do vício e por isso saiu de casa para a “proteger”. Durante o período de espera até conseguir ter uma vaga, foi perdendo a esperança. “Algumas vezes estive perto de perder a cabeça”. Diz não ter vacilado e continuou sem consumir. Agora tem as condições necessárias para atingir o objectivo que definiu: “Nunca quis ser dependente de ninguém. Quero ser eu a pagar as minhas despesas”. No albergue encontrou o espaço que precisava para “meter a cabeça no sítio”. “Só não aproveita quem não quer”, diz. Considera que o albergue está preparado para que todos possam ter algo muito próximo daquilo que é uma casa. “Temos as melhores condições de higiene, comida, bons quartos e acompanhamento médico”, sublinha. Sem isso não teria tido a oportunidade de procurar o emprego que entretanto conseguiu e com o qual espera lançar-se para encontrar um espaço próprio onde morar.
A partir das 18h00, os utentes podem voltar aos quartos e o albergue volta a encher-se de gente. Será a altura do dia mais agitada. Às 19h30 é servido o jantar e, por isso, mais de uma centena de pessoas espalham-se pelos corredores entre a sala de convívio e o refeitório à espera das senhas que lhes garantem a refeição.
Num quarto ouve-se a música que passa num rádio a pilhas pousado num dos aquecedores. Está lá o senhor Manuel, o senhor Pinto e um dos utentes mais novos, com 22 anos. Ainda não são 19h00 e o senhor Pinto já se prepara para dormir: “Hoje não janto. É marisco. Tenho medo que me caia mal”. O senhor Manuel, 64 anos, um dos utentes com mais idade, conta estar a tratar “da papelada” para conseguir o RSI. Assim que o conseguir vai fazer tudo para “dar o lugar a outro”. Espera a reforma, para conseguir ter mais estabilidade.
Oportunidades de emprego para os utentes
Matias Almeida, vigilante do albergue há 4 anos, está prestes a terminar o turno. Antes de lá começar a trabalhar já conhecia bem o espaço. Foi um dos utentes do centro de alojamento. Mais de duas décadas da sua vida de 46 anos foram “desperdiçadas com drogas”. Saiu de Lisboa para o Porto, depois de já ter estado preso, para “fugir ao ambiente do núcleo com quem convivia”. Quando chegou ao Porto voltou a ter uma recaída. Viveu durante dois anos no jardim da praça da República, muito perto do local onde agora trabalha. Fez uma desintoxicação e não voltou a consumir. Esteve quatro meses à espera de uma cama no albergue. Quando garantiu a vaga não sonhava com a mudança que ia acontecer. Fez alguns trabalhos temporários, até ser convidado pela direcção a fazer parte da equipa. Desde há quatro anos é um dos nove funcionários do albergue do qual já foram utentes.
Para alguns a noite é passada na sala de convívio frente ao plasma pendurado na parede. Naquela noite há futebol. A sala está cheia. Bebe-se café tirado da máquina da sala e partilham-se conversas, comida, cigarros e até mesmo o café. Ninguém pede nada a ninguém. Parece haver um acordo tácito de partilha. Assim que um cigarro ou um copo do café chegam a meio passa-se para outro colega.
Às 22h00, hora do silêncio, todos têm que subir para vestir o pijama. Alguns voltam. Vão-se juntando os vigilantes que conhecem pelo nome e vice-versa. Dizem-se piadas. Metem-se uns com outros. Tudo brincadeira. Vão desistindo e vão subindo para os quartos. Há um resistente, o senhor Manuel, com quem já tínhamos estado num dos quartos, ou “o mais novo”, como é chamado pelos vigilantes. Tem uma novidade. Afinal já tinha conseguido o RSI. Fica até às 3h00 na sala. Conta em catadupa uma lista infindável de adivinhas. Também conhece os segredos da culinária. Revela algumas receitas e o truque do seu bacalhau à espanhola, que diz ser uma especialidade. Conta que há uns anos já não tem contacto com a família, mas lembra que o seu prato especial era o preferido do pai, que também já não vê há algum tempo. É o último a subir.
Durante a madrugada, há quem desça para fumar ou recuperar o sono que entretanto perdeu. Encostado num dos cantos, numa cama improvisada feita de cadeiras, dorme um candidato a utente, que chegou à tarde, sem conseguir vaga. O albergue está cheio. José Alves, um dos vigilantes do turno da noite, que também já foi utente, conta o que acontece com regularidade: “Não há espaço para todos nos quartos, mas quando nos vêm bater à porta não os deixamos ficar lá fora”.
Capacidade do albergue vai aumentar
O Albergue D. Margarida de Sousa Dias recebe anualmente cerca de 600 pedidos de acolhimento, mais de um por dia, mas apenas consegue responder a 80, de acordo com o seu director geral, Miguel Neves.
Em processo de finalização de obras de reabilitação, o edifício disporá brevemente de mais 15 camas, 11 para homens e 4 para mulheres. De 82 camas nas duas unidades, na Mártires da Liberdade e em Campanhã, passa para 97. Faltam apenas pequenos ajustes nas obras. Os três pisos onde os utentes dormiam em camarata foram transformados em quartos, com menos camas e equipados com aquecimento central. Em todos os pisos há balneários com chuveiro individual. O aspecto do interior do edifício assemelha-se ao de um hostel.
Após as obras, já em fase de conclusão, o mesmo responsável diz querer continuar o leque de actividades que o albergue, com 40 funcionários, já disponibiliza, somando-se outras que, como diz, têm em vista, sobretudo, “abrir as portas do edifício à comunidade”.