A Gulbenkian abre as suas portas a estas estrelas em ascensão
O PÚBLICO traça o retrato das Rising Stars – jovens músicos talentosos seleccionados pelas mais prestigiadas salas de concerto europeias – que poderemos ouvir este domingo em Lisboa.
Domingo vai ser dia de festa na Fundação Gulbenkian. Entre as 10h30 e as 21h, no âmbito de mais uma iniciativa Portas Abertas, será possível ter acesso a várias actividades de entrada gratuita, com destaque para os cinco concertos com jovens talentos seleccionados anualmente pelo programa Rising Stars, promovido pela associação ECHO – European Concert Hall Organization, na qual Portugal está representado pela Gulbenkian e pela Casa da Música.
A digressão pelos palcos europeus associados à ECHO constitui uma valiosa oportunidade para estes jovens intérpretes de alto nível poderem consolidar a etapa inicial das suas carreiras internacionais. Será possível ouvir o clarinetista Horácio Ferreira, os pianistas Christopher Park e Mariam Batsashvili, a violinista Tamsin Waley-Cohen e o Armida Quartett em programas diversificados, construídos à medida do seu perfil artístico. Uma novidade desta edição constitui a encomenda de obras a compositores contemporâneos, estreadas durante a digressão. Quatro destes intérpretes aceitaram partilhar com o PÚBLICO depoimentos acerca da sua formação, das suas aspirações artísticas e das obras que vão tocar.
O programa Portas Abertas inclui ainda apresentações do Coro Estágio Gulbenkian com a pianista Jill Lawson e da Camerata da Academia de Música de Lisboa. Ao longo do dia, será exibido, em vários horários, o documentário op.ção, de Tiago Figueiredo, que relata o percurso do Estágio Gulbenkian para Orquestra em 2015, e tem lugar a oficina de exploração musical para famílias Eu, Compositor?!?.
Horácio Ferreira, clarinete
Vencedor do Prémio Jovens Músicos 2014, Horácio Ferreira (Santa Comba Dão, 1988) toca clarinete desde os oito anos mas só quando decidiu concorrer à Escola Profissional de Música de Espinho decidiu que queria dedicar inteiramente a sua vida à música. “O clarinete já fazia parte do meu quotidiano e achei que poderia ser uma possibilidade profissional e não só um hobby”, diz. Para essa decisão contribuiu também a actuação do clarinetista Hakan Rosengren com a Orquestra Metropolitana, no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra: “Fiquei muito impressionado, tornou-se claro nesse momento que era esse o meu caminho.” Outras experiências marcantes incluem a primeira vez que ouviu Paquito D’Rivera, e a interpretação da Sagração da Primavera de Stravinsky com o maestro Valery Gergiev. Entre os professores que acompanharam a sua formação destaca Luís Carvalho, António Saiote e Michel Arrignon.
Para Horácio Ferreira, o maior desafio na construção de uma carreira “é quebrar o preconceito da nacionalidade”. “Sinto que há alguma desvalorização do artista português. Por outro lado, o nosso país não tem as possibilidades artísticas dos grandes centros europeus e o investimento que é feito na música acaba por ser escasso. Entrar na vida musical internacional é complicado porque temos que nos tornar conhecidos e, para isso, não basta ser bom ou ganhar um concurso. Precisamos de uma agência que possa promover de forma mais contínua o trabalho dos músicos portugueses a nível internacional.” Daí as suas expectativas em relação ao projecto Rising Stars, “pois poderá abrir portas a nível internacional para novas oportunidades de concertos, não só em recital, mas também nas diferentes formações de música de câmara ou até mesmo como solista”.
Na Gulbenkian, em conjunto com o pianista David Bekker, irá tocar “obras do grande repertório para clarinete como as Peças de Fantasia de Schumann ou a 1ª Rapsódia, de Debussy, e “obras muito atractivas para o público, seguindo assim o conceito de portas abertas”. É o caso da Fantasia Carmen, de Sarasate/Baldeyrou, e da Homenagem a Manuel de Falla, de Béla Kovács. A obra contemporânea em estreia, encomenda da Gulbenkian e da Casa da Música com o apoio da ECHO, é Creazy op. 94 do finlandês Kimmo Hakola, “que faz uma exploração dos limites sonoros do clarinete e dos seus diferentes registos". A obra, explica, “nasce de uma mistura entre criatividade/improvisação (creativity) e loucura (crazy), percorrendo constantemente de forma abrupta estes diferentes estados de espírito”.
Tamsin Waley-Cohen, violino
Para Tamsin Waley-Cohen (Londres, 1986), seguir uma carreira musical foi “uma decisão natural”. Inicialmente, apenas sabia que queria tocar o melhor possível, mas a partir da escola secundária tornou-se claro que a música “era tudo o que queria fazer na vida”. Vários professores a ajudaram a “desenvolver uma voz própria” como Itzhak Rashkovsky, com quem estudou no Royal College of Music, Ruggiero Ricci e Andras Keller, responsável por lhe “abrir novas portas à imaginação e à compreensão profunda da linguagem de diferentes compositores”.
A violinista acha que depois de se atingir um nível técnico elevado, o que constitui apenas um meio para atingir um fim, “o mais importante é o músico ser sincero consigo próprio” e criar o seu próprio caminho. A digressão Rising Stars tem sido “uma fantástica experiência” por lhe permitir tocar nos mais importantes auditórios da Europa para "novos públicos entusiastas” e também por torná-la destinatária de uma nova obra do compositor britânico Oliver Knussen: “Um sonho tornado realidade!” Encomenda de Town Hall & Symphony Hall de Birmingham, com apoio ECHO, Reflections é, nas palavras da violinista, “uma obra maravilhosa, lírica e de carácter rapsódico”. Inicia-se com “uma cadência para violino e logo depois este rodopia através da obra pleno de beleza, luminosidade e cor”. O restante programa que vai tocar na Gulbenkian, com o pianista James Baillieu, inclui a Sonata de Debussy, “uma das suas criações mais detalhadas e concisas”; os Três Romances, de Schumann, que considera “devastadoramente belos”, pois cada um deles é “a miniatura de uma história de amor”, e a Suite Porgy and Bess de Gershwin, nos “arranjos plenos de virtuosismo” de Jasha Heifetz.
O grande objectivo de Tamsin “é levar música visceral e viva dos últimos séculos” a novos públicos. “Isto implica não só mestria técnica, mas também um entendimento profundo das partituras e da linguagem dos compositores. A maneira como programamos o alinhamento de um concerto ou de um festival pode salientar novos aspectos da música, incluindo o contexto histórico e político, e isso é algo que gosto de explorar”, nota. Como tal, a par da sua carreira como intérprete, Tamsin fundou há nove anos o Honeymead Festival, dedicado à música de câmara, e é a directora artística das Sunday Series no Tricycle Theatre de Londres. “Procuro também chegar aos mais novos, nunca conheci nenhuma criança que não gostasse de música ao vivo!”
Mariam Batsashvili, piano
Actualmente com 23 anos, Mariam Batsashvili toca piano desde os quatro e aos sete ganhou o concurso nacional de Tbilisi. “Na Geórgia é habitual ter um piano, uma guitarra ou outro instrumento em casa. Nós tínhamos um piano e os meus primos tinham lições. Ouvia-os tocar diariamente e só queria fazer o mesmo”, conta ao PÚBLICO. Estudar com Natalia Natsvlishvili desde os seis anos foi crucial, pois “o trabalho em conjunto não era só uma espécie de lição de música, mas uma lição de arte": “Aprendi com ela muitas coisas sobre música, literatura, psicologia, filosofia. Simplesmente tudo!”
A pianista tem consciência de que hoje a concorrência para fazer uma carreira internacional é muito alta, mas acredita que quem tiver “talento, dedicação e uma enorme determinação” será bem sucedido. A sua meta é atingir “o maior grau de profundidade na música”, pois esta “não é só uma espécie de entretenimento que necessita de treino físico, acrobacia digital ou explosão emocional”: "Há que atingir a essência das obras, compreender por que foram escritas e o que podem transmitir”, assim como ser capaz de estar completamente mergulhada na música e ao mesmo tempo conseguir ouvir-se a si própria.
O seu recital na Gulbenkian inicia-se com a versão para teclado que J. S. Bach fez do Concerto para Oboé de Benedetto Marcello. “Interpretar a música do Barroco é algo que faço sempre com alegria. Continuo o programa com a transcrição de Liszt de duas danças da ópera Almira de Handel: Sarabande e Chaconne. A ideia das transcrições é sempre muito apelativa pois assim posso ter dois compositores ao mesmo tempo. É gratificante compreender como génios da música fizeram a transcrição do que já eram obras-primas.” Quanto à peça contemporânea, uma encomenda do Bozar de Bruxelas, é da autoria do jovem compositor espanhol Mikel Urquiza e intitula-se Contrapluma. “O nome diz tudo: contra a pluma sugere já alguma tensão. É inspirada pela pintura de Albrecht Dürer A asa de uma rola e pelo Impromptu op. 90 de Schubert.” O programa que vai tocar em Lisboa inclui ainda uma prova de fogo: a famosa Sonata em Si menor de Liszt. “Não tenho palavras para elogiar esta sonata o suficiente. É todo um universo! Espero que todos usufruam dela tanto quando eu!”
Armida Quartet
Nos últimos quatro anos, o Armida Quartet, sediado em Berlim, tem tocado com grande sucesso nas principais salas de concerto europeias, pelo que o programa Rising Stars apenas vem reforçar um percurso já estabelecido. “Quando começámos os nossos estudos, em 2006, éramos quatro jovens músicos muito diferentes em termos de personalidade, mas com grande afinidade no campo da música de câmara. Rapidamente nos apercebemos de que fazemos uma combinação perfeita.” O nome Armida é uma referência a Joseph Haydn, “habitualmente designado como o ‘pai do quartetos de cordas’, e à sua ópera Armida, uma das criações favoritas deste compositor.
A consolidação como agrupamento de câmara deve muito aos estudos realizados em Berlim com o Artemis Quartet e depois ao professor Rainer Schmidt (Hagen Quartet) e ao maestro Reinhard Goebel. “O maior desafio para qualquer agrupamento musical é desenvolver-se em conjunto. Como um grupo de quatro fortes personalidades tal significa ‘crescer’ em conjunto e enfrentar cada decisão e cada dificuldade como uma equipa.” Formado por Martin Funda (violino), Johanna Staemmler (violino), Teresa Schwamm (viola) e Peter-Philipp Staemmler (violoncelo), o grupo quer continuar a pesquisar “uma ideia própria de som”, “um processo interminável que pode ser também muito satisfatório”, e explorar mais o fascinante repertório para quarteto de cordas, “eterna fonte de inspiração para tantos compositores”, mas sem se limitar a uma época específica. “Adoramos tocar música barroca, tal como adoramos obras recentes.”
Os membros do quarteto acreditam que “a música, mais do que qualquer outra arte, permite unir pessoas de diferentes backgrounds”, pelo que a digressão Rising Stars tem sido uma grande oportunidade. “Sentimos isso nas nossas viagens e consideramos que é absolutamente poderoso. Estamos muito gratos por poder partilhar esta experiência tão especial.”
Na Gulbenkian irão interpretar o Quarteto KV 458 (“A Caça”), de Mozart; o Quarteto nº1 de Janacék (Kreutzer Sonata) e Tiefenrausch, de Marko Nikodijevic (encomenda do Festspielhaus Baden-Baden, da Konzerthaus Dortmund, da Elbphilharmonie & Laeiszhalle Hamburg e da Kölner Philharmonie, com apoio ECHO). “São três obras que representam diferentes tipos de expressão musical. Mozart comunica connosco de uma maneira completamente diferente (muito delicada e encantadora) da impulsividade de Janacék. Marko Nikodijevic é um compositor sérvio. O título das peças significa algo como 'a vertigem da profundidade”. É selvagem e ofensivo, mas tem algo de belo e também passagens poéticas. Venham e embriaguem-se!”