Pinos, cambalhotazecas e uma demissão em nome das minorias
Comissão de inquérito está presa por um fio. Presidente vai demitir-se e deputados não se entendem.
Há reuniões da comissão parlamentar de inquérito à gestão da Caixa Geral de Depósitos que mais parecem um filme. Se às vezes até podem parecer aborrecidas (e são, muitas vezes), o enredo está lá, há actores principais e secundários, há efeitos sonoros, um desenlace que agrada a uns e desagrada a outros e nem falta o clímax. Na verdade, a reunião desta quarta-feira teve a duração certa (cerca de duas horas) e até teve direito a um episódio que deixa a porta aberta a uma sequela: o presidente da comissão anunciou que vai pensar se vai demitir-se. E vai mesmo, mas já lá vamos. Nestas reuniões, só não há possibilidade de uma boa fotografia para o Parlamento.
A sala estava cheia. Desta vez estavam lá quase todos os órgãos de comunicação social, todos os deputados, muitos assessores e muita curiosidade. Seria o episódio final desta comissão de inquérito? Havia um aviso prévio de que a estreia desta reunião seria “acesa”, que o mesmo é dizer, haveria a certeza de que direita e esquerda esgrimiriam todos os argumentos possíveis e imaginários para levar a sua avante e que nem sempre o fariam com elevação.
A personagem principal desta trama acabaria por se revelar aos poucos. José Matos Correia, o presidente da comissão de inquérito, abriu os trabalhos a resumir a matéria dada – ou seja, a contar o que se tinha passado na reunião da mesa de coordenadores, que mais não era que o chumbo anunciado por PS, PCP e BE dos requerimentos do PSD e do CDS para que fossem admitidos os emails enviados por António Domingues, ex-líder da CGD, ao Parlamento sobre as condições da sua contratação; e que fossem pedidas as mensagens de telemóvel entre Domingues e os responsáveis do Ministério das Finanças. Até ao fim deste resumo, tudo normal, mas a tensão estava no ar e foi o próprio Matos Correia a avisar que o melhor era que ela não explodisse.
“Qualquer um de nós compreenderá que tendo em conta o clima criado, estão criadas todas as condições para que esta reunião aconteça de forma acesa. Há uma diferença entre reunião acesa e aquilo que passe os limites do ponto de vista parlamentar. Há limites que não estou disposto a deixar passar”, avisou.
O aviso era mesmo para ser levado a sério. Matos Correia tem ficado sem paciência algumas vezes durante as reuniões desta comissão de inquérito e já previa o enredo que se seguiria.
O enredo
Esta reunião da comissão serviria para os deputados chumbarem de modo formal os pedidos dos dois partidos da direita. Como as reuniões de coordenadores só podem decidir de modo indiciário e são à porta fechada, só se sabia a conclusão, mas faltavam os argumentos.
O CDS, pelo deputado João Almeida, arrancou logo os trabalhos a questionar a legalidade da votação que se seguiria. Para o deputado, os dois partidos podem pedir o que quiserem potestativamente – uma vez que a comissão é ela própria potestativa – sem que tivessem de sujeitar os requerimentos a votação. “Ainda que entendam que as mesmas não devem ser feitas, não podem votar. Porque o regulamento impede essa votação”, esgrimiu. O PSD concordou e até admitiu que se dúvidas houvesse o melhor era pedir à assessora jurídica da Assembleia da República uma opinião.
Os argumentos da esquerda, lançados logo por Miguel Tiago do PCP, eram de que essa norma do regimento não permite que os dois partidos peçam tudo, incluindo documentos “ilegais ou marginais à constituição [da comissão]”, ou seja, documentos que ficam fora do âmbito da comissão de inquérito.
Um deputado, que o PÚBLICO não conseguiu identificar, atirou “também se podiam pedir os documentos dos submarinos?” e o deputado do BE, Moisés Ferreira, defendeu que não se podem dar “cheques em branco para se solicitar tudo e mais alguma coisa”.
Os argumentos
O PSD quer mesmo conhecer o conteúdo das mensagens de telemóvel que acredita mostrarem que o ministro das Finanças se comprometeu a abrir uma excepção para os administradores da Caixa Geral de Depósitos no que toca à entrega das declarações de rendimento e património ao Tribunal Constitucional. “Não são conversas privadas, não combinaram quando iam de férias, se iam tomar café ou se iam jantar. Essas conversações são acerca de um assunto de Estado, em que o dr. António Domingues propõe e o ministro das Finanças aceita, disse o deputado Hugo Soares do PSD para logo passar ao ataque à esquerda.
“Estão a atropelar a democracia, de forma propositada e a medo, porque sabem as respostas que não querem ouvir. Propositada, porque violam, desprezam o mandato de cada um de nós que é o escrutínio do Governo. E não querem ouvir, porque sabem que isto pode levar a um pedido de demissão e a um pedido de desculpas até do primeiro-ministro – tudo fazem para esconder a verdade e salvar o ministro. A verdade não tem cor partidária”, acrescentou o parlamentar social-democrata.
Os actores secundários, que aqui são quase principais, são cinco. Pelo PS, o deputado João Paulo Correia foi o primeiro a irritar o presidente da comissão. Começou por dizer que queria deixar um “protesto”, porque devia estar a ser feita uma audição a António Nogueira Leite e, em vez disso, o que estava a acontecer era “política-espectáculo”. Matos Correia sentiu-se tocado pela crítica, uma vez que tinha sido o presidente a decidir que a audição não se faria, mas sim a discussão sobre os trabalhos. “Exerci os poderes que o regimento me permite. A decisão é minha. Não me acuse de andar atrás do PSD e do CDS nas decisões que tomo. Já dei provas nesta casa que tomo as decisões que entendo!”.
Mas não ficou sem resposta. “Se quiser entender, é uma crítica à sua decisão. O que não posso deixar passar em branco é que devíamos estar a fazer uma audição que não estamos”.
Pelo meio ouve-se um “tenha vergonha na cara”, atirado por João Almeida do CDS e o clima começa a aquecer.
E Matos Correia eleva ainda a temperatura: “Foi o último aviso que fiz. Não estou disponível para que uma reunião da comissão de inquérito se transforme num recinto de feira. Comigo não contem. Temos de manter a dignidade dos trabalhos parlamentares”.
Miguel Tiago acusou a direita de querer “usar o inquérito na sua campanha contra a CGD e angariar clientes para os bancos privados que estão a receber com muito agrado estes trabalhos. E também atacar a solução política”. Uma “solução política” que esteve unida. Moisés Ferreira concordou: “Sempre que podem tentam fugir do âmbito da comissão de inquérito. Nem querem saber se isto prejudica o banco público ou não”.
Ouve-se Hugo Soares atirar um “tenham juízo” em tom elevado. E depois João Almeida responder-lhe em tom irónico, mas baixo. “Deixar de contar com casos e casinhos políticos é uma alteração na política do BE. Estou a ficar preocupado com os portugueses que ficam sem o entretenimento de ver os casos e casinhos do BE. Não houve um único momento em que estivéssemos a fazer perguntas sem seriedade. Não aceitamos essa acusação de que estamos a prejudicar a CGD”.
Para terminar, exercício físico na retórica política: “Nem um argumentozinho nem uma cambalhotazeca, nem para a direita nem para a esquerda, para justificar porque não estão dentro do âmbito da comissão de inquérito, porque a vossa posição é só política. Fazem uma cambalhota com um pino, depois caem para a frente depois para trás”, acusou Hugo Soares.
O clímax e a sequela
Depois de tanta discussão em torno do regimento e dos argumentos o resultado foi só um. De braço no ar, os deputados dos três partidos da esquerda votaram contra os requerimentos apresentados pelo PSD e pelo CDS, com o protesto destes últimos que consideram "a votação ilegal". E quando todos pegavam nos papéis e computadores, há um silêncio e um pedido do homem que se revelaria o actor principal.
Matos Correia pede para os deputados não saírem, porque tem uma comunicação a fazer. "As comissões de inquérito criadas por uma minoria, seja ela qual for, têm de funcionar em termos de permitir que o apuramento da verdade se faça e os direitos das minorias sejam garantidos. Tenho duvidas que isso esteja a acontecer. Queria comunicar que entre hoje [quarta-feira] e amanhã irei fazer uma reflexão e decidir se tenho condições para continuar a ser presidente desta comissão de inquérito".
Ao que o PÚBLICO apurou, vai mesmo apresentar a demissão e abrir um buraco na comissão de inquérito. Para o filme em questão, abrirá uma sequela.