Filmes que não querem falar para o boneco
Quatro curtas portuguesas fazem uma selecção de luxo no concurso oficial de Berlim.
Não deixa de ser curioso que tenha sido logo em 2017 que parte significativa da representação portuguesa no festival tenha decidido boicotar um jantar institucional de celebração da produção portuguesa presente na 67.ª Berlinale. É que este é o ano em que, caso raro nunca visto, quatro curtas portuguesas competem no concurso Berlinale Shorts (vencido em 2012 por João Salaviza), com uma multiplicidade de estéticas, formas e narrativas que não se conseguem meter numa formatação mais ou menos burocrática de gavetas (que é, como sabemos, parte significativa das quezílias entre o ICA e as associações - o reconhecimento que a criação artística implica uma flexibilidade que as regras rígidas muitas vezes não podem dar). Ainda por cima, uma das curtas seleccionadas - Coup de Grâce de Salomé Lamas - acaba com Miguel Borges e Clara Jost sentados a uma mesa num ambiente exótico de luxo, sem que nada aconteça a não ser estarem ali a olhar um para o outro. O comentário não é evidentemente propositado, mas essa dificuldade de comunicação é um tópico recorrente nos quatro filmes - a sensação de estar a falar para o boneco, ou em circuito fechado, ou de estarmos todos a dizer coisas diferentes.
Paradoxalmente, Coup de Grâce é a primeira vez que Salomé Lamas experimenta a ficção, e no processo fez aquele que é talvez o seu filme mais "de artista". Reconhecemos neste encontro entre um pai resignado e uma filha recém-regressada o sentido visual, a atenção paciente, a maneira oblíqua de olhar para as coisas que o tornam reconhecível como uma obra da sua autora (como o ballet mecânico de retroescavadoras que abre o filme), mas Coup de Grâce parece resolver-se numa sucessão de deslumbrantes gestos visuais algo desarticulados. O que não deixa de fazer sentido conceptual, e confirma que a cineasta arrisca sem medo de se estatelar ao comprido, e de vez em quando tropeça e isso é bom.
Bom também é o passo em frente de João Salaviza com Altas Cidades de Ossadas, substituindo a anomia urbana dos seus filmes anteriores por uma fantasmagoria contemplativa que remete para o Pedro Costa pós-Fontaínhas. Se Arena e Montanha eram filmes solares, diurnos, Altas Cidades de Ossadas rima com o nocturno de Rafa, na sua viagem por uma selva inventada na cabeça do rapper Karlon, espécie de louco visionário que se esconde nas hortas suburbanas recriando uma selva mítica que talvez só exista na sua cabeça, e sem que os outros compreendam aquilo que ele procura.
É um passo em frente para o cinema de Salaviza, mais solto e formalmente mais livre, embora só o futuro possa dizer se é um interregno ou um novo ciclo que se abre. Se Salomé e Salaviza mostram aqui filmes em estreia mundial, Gabriel Abrantes traz a sua encomenda da Bienal de São Paulo, Os Humores Artificiais, e Diogo Costa Amarante mostra Cidade Pequena, que estreou no Curtas Vila do Conde.
Também eles dão passos em frente, embora Cidade Pequena, um filme visualmente bonito e manifestamente pessoal, se contente ainda em remoer a fórmula resolvente da curta de festival sem trazer nada de novo. Os Humores Artificiais segue na linha narrativamente mais convencional de A Brief History of Princess X e prolonga o seu humor mais seco e sofisticado para contar o romance improvável entre uma índia xingu e um robô protótipo dotado de inteligência artificial chamado Andy Coughman. É uma subversão inocente e divertida de um certo imaginário Spielberguiano dos anos 1980 e 1990 cruzada com o Her de Spike Jonze, usada para um estudo melancólico sobre a natureza do amor; é também a prova de que Abrantes é tanto melhor quanto menos dá largas aos excessos e aos grotescos que têm percorrido mais a sua obra e assume a dimensão derivativa e referencial do seu desejo de cinema.
Depois do "ano zero" em que a produção esteve parada, num momento em que ainda não emergiu uma nova geração de cineastas que pegue no testemunho da "geração curtas", a selecção de curtas nacionais em Berlim é uma escolha de luxo, é um reconhecimento feliz da energia do cinema que por cá se faz, e é também uma prova de que se contam pelos dedos os cineastas portugueses que têm sabido usar o formato curto a seu favor.
Que tudo isto seja ofuscado por um fait-divers de um jantar institucional - quando continua a faltar, da parte de quem de direito, um esforço integrado e pro-activo em favor da difusão da produção portuguesa que não passe apenas pelos próprios produtores - é injusto para os filmes e para o que eles dizem sobre o cinema que se faz em Portugal. Que continua a mexer, e bem.