Do "teatro da alma" de Teixeira Gomes ao drama em gente pessoano

Congresso lembrou alguns contemporâneos de Pessoa que mereciam ser mais lembrados.

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O congresso termina este sábado, com uma sessão que irá recordar os primeiros encontros pessoanos Nuno Ferreira Santos

O incessante crescimento póstumo da obra de Pessoa criou na literatura portuguesa um astro tão gigantesco que acabou por privar da luz do reconhecimento alguns autores seus contemporâneos que merecem ser resgatados da sombra. O Congresso Internacional Fernando Pessoa, promovido pela Casa Fernando Pessoa na Gulbenkian, prestou-lhes homenagem esta sexta-feira, pelas vozes de Helder Macedo e Fernando Pinto do Amaral, numa sessão em que foram evocados António Patrício (1878-1930), Manuel Teixeira Gomes (1860-1941) ou Raul Brandão (1867-1930).

Autores que nem fizeram parte do grupo directamente associado à eclosão do modernismo português nem eram considerados, no seu tempo, escritores de primeira linha, como um Junqueiro ou um Pascoaes, mas que, defendeu Helder Macedo, “eram por vezes tão modernistas como os de Orpheu”. Um deles era o dramaturgo, ficcionista e poeta António Patrício, cujos contos permitem aproximações a Mário de Sá-Carneiro, sugeriu o ensaísta, e que na peça Dinis e Isabel, cria, segundo ele próprio afirma no respectivo prólogo, “um drama de consciências” cuja acção finda no quarto acto e “ecoa em tragédia estática no quinto”. É difícil não se pensar imediatamente no “drama estático” O Marinheiro de Fernando Pessoa, como notou Macedo, acrescentando que tanto este como Patrício foram influenciados pelo dramaturgo belga Maeterlinck.

O ensaísta radicado em Londres, que lança esta terça-feira em Lisboa o seu mais recente livro, Camões e Outros Contemporâneos (ed. Presença), destacou em Patrício um obsessivo “culto sexual da morte”, visível em muita da sua poesia, mas também em peças como D. João e a Máscara e Pedro o Cru, ou no conto Suze, em que um homem imagina a morte da mulher, que está a ser operada. Sem pretender estabelecer interpretações biografistas, Macedo apontou a curiosidade de o autor, nascido no Porto, ser filho do proprietário de uma agência funerária. Fernando Pinto do Amaral, que depois evocaria Camilo Pessanha e Raul Brandão, defendeu que Patrício era o único exemplar relevante, na literatura portuguesa, de um verdadeiro decadentista.

Mas a parte mais interessante da sessão foi a que Macedo dedicou ao escritor Manuel Teixeira Gomes, sétimo presidente da I República Portuguesa, cargo ao qual resignou para se exilar na Argélia. Um autor que parece estar agora a sair da sombra a que fora votado, com a recente publicação de uma biografia, da autoria de José Alberto Quaresma, e a estreia do filme Zeus (nome do paquete que levou Teixeira Gomes ao exílio), de Paulo Filipe Monteiro, que Macedo já viu e recomenda.

Há de resto uma frase dita neste filme por Teixeira Gomes cujo autor é, na verdade, o próprio Helder Macedo. “É a minha glória”, brincou o ensaísta. A história, que contou rapidamente, tem graça. Tudo começou com um livro em que Frederico Lourenço “mostrava que havia em Camões uns usos de uns tópicos associados à homossexualidade”. A tese, prosseguiu Macedo, “ deu motivo a um abaixo-assinado, a dizer que não senhor, que o Camões gostava de mulheres” e, nesse contexto, uma jornalista perguntou-lhe em Lisboa o que achava “dessa história de o Camões ser homossexual”. Macedo começou por responder que toda a obra do vate evidenciava um apreciador de mulheres, mas, pensando um pouco, acrescentou: “Bem, ele andava embarcado… e a coisa mais parecida que há com uma mulher é um homem”. A frase foi publicada e o realizador de Zeus pô-la na boca do seu protagonista.

Tendo começado por ser um “escritor realista e senhor rico”, Teixeira Gomes teve depois a fase de político, e finalmente essa “terceira vida” no exílio africano, onde escreveu, na opinião de Macedo, o mais importante da sua obra, que inclui as Novelas Eróticas, a novela Maria Adelaide e recolhas de textos de diversa natureza, das quais a mais importante é Miscelânea (1937).

Em cartas a João de Barros e António Patrício citadas pelo ensaísta, Teixeira Gomes, após descrever experiências pessoais de natureza alucinatória, faz afirmações como esta: “Eu era sonâmbulo em pequeno, e sempre tive, acordado, facilidade de desassociar a inteligência da sensibilidade”. Ou esta: “O desdobramento da própria personalidade, em actor e espectador, posso-o provocar a meu bel-prazer, e sem o menor esforço, nos passeios solitários, se me arma o teatro da alma”. Um “teatro da alma”, sugere Macedo, que é a versão de Teixeira Gomes do “drama em gente” de Fernando Pessoa. 

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