Dois pormenores sobre a droga
Não é coerente que um país que descriminalizou o consumo de droga e criou um muito aplaudido “modelo português das drogas” não consiga ir além do titubeante “vamos estudar” quando se fala de salas de consumo e de uso terapêutico de cannabis
Os dados revelados ontem no Parlamento sobre o consumo de drogas e toxicodependência em Portugal confirmam a tendência dos últimos anos para uma certa estabilização. Se há detalhe a salientar no relatório anual do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD) que importa reter é o número de utentes em tratamento por recaída no consumo de heroína, que os especialistas atribuem a factores como a crise e o desemprego. A heroína, essa invenção da indústria farmacêutica como xarope para a tosse, está longe de ser o problema dantesco que foi nos anos 90. Os consumos problemáticos sempre existiram e irão continuar a existir porque, como se depreende das estatísticas do SICAD, estão associados a uma população mais vulnerável a estas contingências económicas, que nos últimos anos perderam suporte familiar e respostas do Estado.
Esta constatação torna mais urgente a discussão de políticas de redução de riscos e de minimização de danos, como as salas de injecção assistida, excluídas da Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, que descriminalizou o seu consumo em 1999. Neste ponto, a estratégia tem sido protelar. É precisamente o que acontece com a utilização da cannabis para fins terapêuticos.
O Estado português autoriza a produção desta planta e da papoila de ópio em solo nacional por reconhecer que a sua exportação e utilização pela indústria farmacêutica nem é recriminável nem viola qualquer convenção internacional. Caso contrário, o Infarmed e o Governo não se preparavam para autorizar novas plantações destinadas ao cultivo e produção de cannabis para uso medicinal no Alentejo. E se assim é, não se percebe a razão pela qual a mesma planta não pode ser prescrita clinicamente em Portugal, sabendo-se há décadas que as suas propriedades a recomendam como paliativo para a esclerose múltipla, a epilepsia, ou para os efeitos secundário da quimioterapia. É por estes motivos que esta e outras drogas são utilizadas com objectivos medicinais. Seja na Alemanha, que acabou de legalizar o seu uso nestes casos, seja nos EUA, que não são propriamente um exemplo de tolerância quanto ao consumo de drogas. Não é, pois, muito coerente que um país que descriminalizou o consumo de droga e criou um muito aplaudido “modelo português das drogas” não consiga ir além do titubeante “vamos estudar” em questões como estas.