No Alentejo vêem-se muros cair e amor a explodir
Parece simples. Chega-se a um lugar, Sousel no Alentejo, monta-se uma festa e pede-se às pessoas para falarem de amor e todas as barreiras podem ser superadas. É assim em Rifar O Meu Coraçã0, de Mónica Calle e da Casa Conveniente.
Trump não sai dos ecrãs das televisões. Fala-se de muros. E na tasca-restaurante Pinguinhas, na vila alentejana de Sousel, ao final do dia, discute-se o assunto, por entre jogos de cartas e indirectas a Bruno de Carvalho ou ao Benfica, conforme as opções clubísticas, na companhia de “minis” e copos de vinho para aquecer que lá fora chove e faz um frio de rachar.
“Este tem a mania que é diferente, mas são todos iguais”, lança alguém na direcção da TV quando a madeixa de Trump surge no ecrã. “Aquele muro [entre os EUA e o México] já existe há não sei quantos anos, mas agora é que toda a gente se chateia”, lança outro. “Falam dele agora porque este Trump arma-se em cowboy enquanto os outros eram anjinhos”, responde alguém. “O muro maior que eu conheço é entre ricos e pobres”, graceja outro, “e esse ninguém o derruba”.
Sim. Muros há muitos. Sempre houve. Sempre haverá. Há-os para todos os gostos. Um estudo do geógrafo Michel Foucher, autor de L’Obsession des Frontières (2009), concluiu que existe um total de 18000km de barreiras intransponíveis no globo fabricadas pelo homem. Isto sem contabilizarmos os muros naturais - o que é o Mediterrâneo senão um muro em cuja travessia perdem a vida centenas de pessoas todos os anos? - e os mentais. E estes são talvez os piores, incrustados em cabeças mais duras que betão.
De muros, e de os questionar, percebe Mónica Calle, 50 anos, actriz e encenadora da companhia Casa Conveniente / Zona Não Vigiada, actuando nos interstícios onde se problematizam fronteiras entre palco e plateia, teatro e vida, estrutura e improviso, centro e margens, ricos e pobres. “As questões essenciais são as mesmas em todo o lado”, afirma, “por isso quando se superam barreiras - ideológicas, religiosas, nacionais ou materiais - o encontro com o outro é possível.”
O teatro, na sua visão, não serve para medir distâncias, mas proximidades. É espaço de diálogo, não para encontrar respostas, mas fazer perguntas. Nas suas acções existe lugar para a exposição crua do corpo, da palavra, do olhar, da voz, da presença. Há troca constante. Eu dou, tu dás, o espaço dá, num ritual colectivo em construção. Existe despojamento. O lugar, os actores e o público, são tudo o que é necessário, como se fosse exibido o esqueleto e a carne do teatro. Para ela é um ritual de liturgia e possibilidade de encontro.
Sair para outros lugares
Numa altura em que tanto se fala de não-inscrição, de pessoas à margem, inertes ou desiludidas, vivendo em condições difíceis, ou em isolamentos territoriais ou sociais, ela vai ao seu encontro. Não para lhes propor uma relação hierarquizada, mas para nesse movimento, ela e eles, se colocarem em causa, humanizando-se, e nessa dinâmica questionando o gesto artístico, descolando certezas para um lugar onde a mudança é vista como possível.
A sua geração foi a primeira do pós-25 de Abril a afirmar-se como modelo alternativo às companhias que surgiram nos anos 1970. Nos anos 1990 assentou no Cais do Sodré, zona então conhecida pelos lugares de má fama. Quanto anteviu que a área se iria transformar num dos centros da nova Lisboa turística recomeçou tudo de novo, na Zona J, em Chelas. É aí que tem estado, num espaço que ainda não o é verdadeiramente. Foi aí que, no Verão, estreou Rifar O Meu Coração, um workshop-espectáculo suscitado por um documentário do mesmo nome, de 2012, de Ana Riepper. Depois seguiu-se o Porto. E nas últimas semanas foi a vez de Sousel, vila esquecida, debilitada, entrincheirada entre municípios (Avis, Fronteira, Estremoz, Arraiolos e Mora) e no entanto isolada.
“Motivou-nos sair do centro urbano, conhecer outras realidades e perceber de que forma isso pode encaixar no nosso trabalho”, diz-nos Mónica, acerca de Sousel. “Depois de Chelas e do Porto queria amplificar isto e perceber se este conceito seria possível noutro lugar.” O conceito envolve uma semana de ensaios abertos com a população e outra semana de apresentações públicas gratuitas, com oferta de comida e bebida, envolvendo actores profissionais e participantes das comunidades de recepção. No centro as pessoas, com o trabalho a ser despoletado através de música ou poemas que evoquem memórias.
“Queremos criar alternativas de circulação que não têm a ver com cineteatros, programadores ou salas de espectáculos, mas sim com pessoas”, diz. “Trata-se de reproduzir aqui a maneira como trabalho em qualquer outro lugar, percebendo que é possível criar uma relação efectiva com pessoas e lugares. Só dessa forma acredito que as coisas têm consequência, seja para nós, enquanto artistas e pessoas, ou para as gentes daqui.”
A Casa Conveniente não veio ao Alentejo apresentar uma peça e depois partir. “Não acredito nisso”, afirma Mónica na tasca Pinguinhas, agora esvaziada de homens, apenas com a filha do dono ao balcão. “De manhã esteve aí um homem da Covilhã a dizer que isto é mais frio que lá, por ser mais seco”, diz-nos ela, esfregando as mãos e metendo conversa. “Acredito que a proximidade entre as pessoas as pode transformar”, afirma por sua vez Mónica. “É essa rede, essas ligações, nos dois sentidos, que crio. E um projecto artístico como este pode conseguir isso.”
É um projecto com diversas fases. Primeiro escolhe-se a vila. Depois estabelecem-se contactos porque a ideia é envolver a comunidade no trabalho. E finalmente existe uma semana de apresentações. “Numa fase inicial contactámos a Fundação Inatel que nos ajudou na listagem de possibilidades e foi aí que percebemos que Sousel tinha bastantes Associações e de forma intuitiva pareceu-nos que isso poderia ser um ponto de partida.”
Em Sousel estiveram sete membros do grupo, todos com diversas funções. É o caso da actriz Inês Vaz, que também ajuda na produção. “Antes de virmos para as apresentações fizemos telefonemas, enviámos emails e marcámos reuniões e, depois, noutra fase a Mónica, a Marta Félix e eu viemos cá contactar com as pessoas”, diz. “Cada pessoa, pelas suas características, acaba por ter funções diferenciadas”, adianta Mónica, que diz existir uma estratégia nos contactos preliminares.
Marta é extrovertida. “Nas primeiras etapas ela é importante”, diz Mónica, “porque fala com toda a gente na rua, entra pela casa das pessoas.” A função de Inês é outra. “Ela é delicada, doce e envolvente e isso é importante”, esclarece. “O facto de ter feito uma telenovela há pouco - A Única Mulher - acabou por ser importante porque as pessoas reconheciam-me e isso criava um ponto de ligação”, adianta Inês. “O que fizemos foi ir aos sítios - Câmara, ranchos folclóricos, associações ou cafés - e falar com as pessoas, explicar o que íamos fazer, perguntar se queriam participar e para nos falarem das suas experiências.”
Inicialmente há desconfiança. “Eu vou coordenando as coisas em conjunto com o [actor] José Miguel Vitorino, porque também está ligado à produção, e costuma vir também a Mónica Garnel, que não pôde desta vez.” Dias depois de estarem no terreno já toda a gente sabe quem são, mesmo se ainda não se entende na perfeição ao que vêm. A maior parte julga que irá assistir a uma peça convencional na Associação Vozes do Fado, no centro da vila. “De repente, nos cafés, restaurantes ou supermercados trocamos contactos, cria-se movimento, e os receios vão-se esbatendo”, assegura Inês.
“A opção de fazermos sete datas tem a ver com isso”, explica Mónica. “Sabemos que as pessoas virão aos poucos, atraídas pelo boca-a-boca.” Na primeira noite os participantes locais são fundamentais. O seu entusiasmo contribui para que depois venha mais gente. “De repente estamos todos juntos. As pessoas que vão já não se sentem exteriores a nós, nem nós em relação a eles. Todos fazem parte da equipa. São criadores também. Geram-se ligações fortes”, reflecte Mónica, “que têm a ver com os afectos, com a intimidade e também com a música.”
Próximo da confissão
Às 20h da noite a Associação Vozes do Fado vai-se compondo. Não há cenário ou adereços, apenas um espaço como sempre existiu. Desde as 15h que os membros da Casa Conveniente por ali estão. Uns interagem com os que querem participar e aparecem durante a tarde. Outros ajudam na preparação de comida e bebida a ser servida durante a noite. Na primeira hora de espectáculo cria-se ambiente. As pessoas vão-se sentando. Ouve-se música. E actores profissionais, participantes ocasionais e membros da associação, sem que se perceba exactamente quem é quem, vão servindo sopa, bebida e iguarias da região.
O trabalho irá construir-se a partir de músicas seleccionadas. Cada interveniente partilha, a partir de uma canção, as suas memórias reais ou ficcionadas num registo próximo da confissão. No centro de tudo está o amor e as questões mais relevantes para muitos de nós, a sexualidade, o poder, o racismo, a guerra, as relações de género, a família, a amizade, as estratégias de sobrevivência, a distância ou a proximidade entre nós e outros.
O mestre-de-cerimónias e DJ é José Miguel Vitorino. É ele que põe música e interage com Marta Félix, os dois em quadros ora divertidos e esfusiantes, outras vezes mais reflexivos, criando pontos de ligação entre diferentes momentos. São eles que instituem o clima inicial, incitando à festa e à dança, enquanto a sala vai enchendo. E a festa acontece. Come-se, dança-se, existe um ambiente envolvente e celebrativo. “Senhoras e senhores”, grita Vitorino, como se estivesse numa feira: “Isto é simples, chega-se a um lugar, monta-se uma festa e pede-se às pessoas para dançar e falar de amor.”
Pelo meio dança-se ao som do ritmo tropical e da voz do brasileiro Lindomar Castilho. “Eu vou rifar meu coração / Vou fazer leilão / Vou vendê-lo a alguém / Não vou deixar o coitadinho viver sempre sem carinho”, sai das colunas, enquanto a actriz Cleo Tavares, nascida em Cabo Verde, vai desafiando algumas pessoas para a dança, e a música continua em ritmo sincopado.
Entre os espectadores, um casal, na meia-idade, expectante com o que se irá passar. São de Avis, ele tinha estado presente na véspera, por acaso: “A minha mulher faz hidroginástica em Sousel e ontem, enquanto esperava por ela, vim aqui para beber um café e deparei-me com isto e hoje fiz-lhe a surpresa e viemos para assistir.” “Para já estou a adorar”, diz ela, explicando que viveu na localidade quatro anos e que tem ali amigas. “É uma região com muito desemprego, mas não trocava isto por nada, porque há entreajuda, actividades e a família está perto.”
Uma hora depois, uma voz projecta-se, é Mónica Calle. “Este trabalho é sobre o amor”, começa por dizer. Fala dela, do envelhecimento, da relação com o corpo, da menopausa, da “sorte e do privilégio que é fazer o que gosta”. Fala sempre de forma directa e generosa, a partir de um intervalo onde a mulher, a actriz, a encenadora e a espectadora se tornam numa só entidade. “O meu trabalho não é separado da minha vida”, diz.
Os olhos e a respiração estão concentrados nela. Discorre sobre a música, a festa, a comida, o toque, de partilhar tristezas e alegrias, da arte e da possibilidade de amar e ser amado, daquilo que nos une. “Se estivermos juntos a vida é mais fácil.” E eis que se ouve a voz guerreira de Elza Soares a cantar Mulher do fim do mundo, e Mónica e Piedade Lavaredas, 72 anos, já estão abraçadas, dançando, enquanto Elza, 79 anos, garante: “Eu quero cantar até o fim / Me deixem cantar até o fim / Até o fim eu vou cantar.” E é só isto. E isto institui uma gravidade bonita, predispõe as pessoas quer para a alegria, quer para a partilha das fragilidades. Ali, percebem, não serão julgadas.
“Nasci aqui, fui para Lisboa aos dez anos aprender a minha profissão - costureira de alfaiate - e regressei aos 65 anos, porque Lisboa já me cansava e tinha aqui casa”, resume, assim, Piedade Lavaredas, a sua vida. Mais tarde haverá de entrar em cena para cantar Nem às paredes confesso, fado popularizado por Amália. “Escolhi-o porque, na adolescência, quando vinha a Sousel, era ouvido nas ruas, entre os anúncios do cinema que aqui havia, e evoca-me esse tempo.” Para as pessoas da sua idade a vila oferece várias actividades. “Durante a semana tenho a Universidade Sénior, a Tuna de música, o teatro, a natação e a fotografia”, explica, “o que é importante, para as pessoas se conhecerem e não pararem.”
Figura omnipresente em parte destas actividades é Luís Rosa, 44 anos, animador cultural, coordenador da Tuna e do teatro sénior, que também participa no espectáculo, tocando guitarra ou recitando poemas. “Tirei o curso de engenharia de produção animal, mas há doze anos que entrei para a Câmara”, graceja, descrevendo que começou por trabalhar com crianças antes de “desenvolver aptidões que nem sabia que tinha”, diz, rindo-se.
Numa região onde o isolamento e o envelhecimento são acentuados essas actividades são nucleares, considera Luís, apesar de achar que “as pessoas seniores não têm nada a aprender connosco, são elas que nos ensinam a nós.” Na Universidade Sénior estuda-se português, inglês, arte ou informática, “o que acaba por ser importante para muitos deles, para comunicarem com filhos e netos, que não estão cá.”
Fala-se com as pessoas e percebe-se que muitas têm conhecimentos de música. “Há ranchos folclóricos, grupos de cantares ou a Vozes do fado, e participa-se”, esclarece Luís. Essa relação com a música é visível nos participantes do espectáculo. O filho de Luís toca teclas com destreza. Há guitarristas para o fado. Uma adolescente toca saxofone e uma outra acordeão. Toda a gente parece saber tocar qualquer coisa.
Para além da música, existe quem recite quadras, cante fado, partilhe um estado de alma, como Diogo Serafim, 16 anos, que deseja ser empresário, ou discorra sobre as suas memórias. É o caso de Luís que, numa noite, enquanto o filho tocava teclas, resolveu falar da sua relação com a mulher, empregada numa cadeia de supermercados em Estremoz, a quem conheceu na adolescência e de quem nunca mais se separou, acabando os dois a dançar. Dito assim, parece uma cena anódina. Mas não.
Foi genuína e exigente. “O Luís é alguém inspirador, admiro a sua generosidade, fico extasiada com ele, tal como é comovente ver a dedicação da Piedade, a querer aprender. É uma lição perceber como se dedicam a este momento e como o aproveitam”, diz-nos Inês Vaz, antes de compor o seu quadro, discorrendo sobre o desejo de ser mãe, ao som de Dance me to the end of love de Cohen. Até às 24h irá ser assim. Momentos confessionais, música, emoções e dança, tudo em espiral. Há uma estrutura base, mas o improviso acontece.
Ávidas de comunicar
Cleo Tavares fala sobre saudades de Cabo Verde e alguém resolve tocar Cesária Evora à guitarra. Quando Inocêncio Matos, 81 anos, entra em acção, as mãos onde segura as suas quadras, tremem-lhe. Mónica ampara-o. Ele agradece e começa: “Na rua da minha aldeia vi uma cega passar.” Mais tarde dir-nos-á que antes de se reformar havia sido vendedor ambulante de frutas e que agora os seus dias giravam em tornos dos ensaios na biblioteca com a Tuna. Foi aí que conheceu “as raparigas do teatro.” “Tenho vindo todos os dias e hei-de trazer mais gente porque este teatro faz-nos bem à alma e é coisa muito boa.”
E eis que chegou a altura de Bruno Candé, natural da Guiné-Bissau, que Mónica conheceu há uns anos quando desenvolveu um trabalho com reclusos do estabelecimento prisional de Vale de Judeus. A sua prestação divide-se em duas. Discorre sobre a sua vida, antes de se travestir em prostituta, lentamente vestindo-se de mulher, pedindo a alguém da assistência que lhe pinte os lábios. “O amor é como uma empresa, tem de se investir”, por isso, diz, “não acredito no amor.”
A sua contribuição é pujante, com qualquer coisa de trágico e cómico. Ouve-se Jacques Brel (Ne me quitte pas). A assistência está suspensa. Trocam-se risinhos de embaraço, mas quando pergunta se existe algum homem na assistência que lhe dê um abraço, de imediato três ou quatro se levantam. E aplaude-se.
Os momentos que poderiam ser mais conflituais, acabam por ser os mais partilhados. “As pessoas estão ávidas de comunicar”, dir-nos-á Mónica. “Não lhes estamos a dizer nada de novo. É uma coisa de troca. Dizemos-lhes que somos como eles e é verdade. E isso acaba por despoletar, e permite trabalhar, de forma simples, uma série de questões que não são faladas. Ontem duas senhoras, no final, vieram falar comigo chorosas, agradecendo por ter falado daquela forma da menopausa, dizendo que tinham sentido sempre vergonha em abordar esse tipo de assuntos.”
Em Rifar O Meu Coração existe uma sequência definida, mas é flexível. “Todos os dias saem e entram coisas, que vamos encaixando”, conta Mónica. “Há uma partitura, mas com desvios.”
“Às vezes olho à minha volta e isto parece o caos”, ri-se Luís, “mas percebo que é um caos controlado, porque elas sabem o que estão a fazer. É uma experiência estonteante e para a população tem sido uma surpresa, porque pensam que vão assistir a uma peça com palco, personagens e adereços e percebem que este projecto é diferente, englobando as pessoas e incentivando-as a apresentarem o que sabem.”
Para os actores é também um desafio. Por vezes são espectadores ou empregados atenciosos, sem deixarem de ser actores. “Orquestramos e desenvolvemos uma partitura, mas lidando com o imprevisto e gerindo tudo isso, seja produção, trabalhar luzes ou lavar a loiça. Para acolher o imprevisto temos de estar despertos e disponíveis”, diz Inês Vaz. “O espectáculo é um organismo vivo que por vezes deixamos que saia do nosso controlo para de seguida o voltarmos a agarrar.”
É uma imagem perfeita. Há noites em que tudo parece descontrolado, música, dança, palavras e corpos tocando-se, mas depois uma situação volta a colocar a acção num veio principal. “Pode ser violento para um actor estar sempre em contacto com as suas emoções e questões, mas talvez seja mais violento não o fazer”, reflecte Inês Vaz. “A proposta é ires a um sítio teu que seja vivo, é uma pesquisa onde te confrontas com dificuldades, mas porque existe amparo.”
O que também muda com os dias é o público, tornando-se mais transgeracional. A última noite é a mais difícil. Nunca existe fim. Dança-se, canta-se, trocam-se abraços e fazem-se juras de amizade, madrugada fora. “Quando vamos embora existe um vazio - para eles e nós - mas isso despoleta outras coisas e as pessoas vão perceber que é simples construírem elas próprias coisas porque - insisto - as questões, pelo menos as mais essenciais, são as mesmas um pouco por todo o lado.”
Para a Casa Conveniente seguir-se-á o Algarve, numa localidade a designar, e talvez a Beira Alta, antes de novo regresso ao Porto e, em 2018, Viseu. “Queremos continuar a procurar sítios e pessoas. Este espectáculo tem um conceito que nos permite construir ligações e circular.” O que está previsto é a reencarnação deste espectáculo em Lisboa, em Outubro, com alguns dos participantes locais das várias etapas do trabalho e a partir de testemunhos sobre o amor, recolhidos pela escritora Dulce Maria Cardoso, que esteve também em Sousel.
“Nessa altura este trabalho será outra coisa, potenciador de outro caminho que não sei qual será, porque haverá um texto, embora este possa continuar a acontecer em paralelo”, reflecte Mónica. “Neste momento sinto que o meu trabalho está profundamente ligado com o mundo, com a vida, e não vai sair daí.” Para já a Casa Conveniente prepara uma operação diferente da de Sousel, com a estreia, em Março, no teatro Dona Maria II em Lisboa de Ensaio Para Uma Cartografia, um espectáculo com os mesmos protagonistas, a partir dos ensaios de orquestra de grandes maestros e dos movimentos de ballet clássico.
Na teoria poderá ser mais convencional, mas as questões são as mesmas: como pensar uma vila, cidade, país ou o mundo? Como se recomeça? Como se continua? Como não desistir do prazer de existir quando se justificam muros como forma de defesa, quando a questão é como repartir o bem-estar pelo maior número de pessoas? Que lugar para a arte e que lugar tem na vida?
Há situações em Rifar O Meu Coração em que olhos agarrados a formatações do que é ou não teatro, ou do que é ou não arte, interrogar-se-ão sobre o que estão a ver. Em Sousel o que se viu é a forma como a arte, no seu fulgor popular, ainda está por explorar. Nos últimos anos muito se falou que a arte caminhava para um certo impasse e uma ausência de sentido, parecendo divorciada da realidade. No Alentejo, pelo contrário, aconteceu vida, quer dizer teatro, sendo através dele que pessoas se encontraram, estabeleceram relações, desenvolveram sentimentos de pertença mas também se questionaram em todo esse movimento.
E foi simples. Montou-se uma festa, dançou-se, falou-se de amor e o amor aconteceu.