Heteronímia está para Pessoa como as guedelhas para os Beatles. Ou talvez não
Richard Zenith e António Feijó abriram esta quinta-feira o Congresso Internacional Fernando Pessoa, que decorre até sábado na Gulbenkian, com uma animada conversa sobre a questão do “eu” no poeta dos heterónimos.
Uma das novidades que a directora da Casa Fernando Pessoa, Clara Riso, quis introduzir no congresso internacional pessoano que se iniciou esta quinta-feira na Gulbenkian foi a figura das mesas de discussão, alternando a cadência habitual das comunicações com momentos de um ritmo desejavelmente mais vivo e espontâneo. A julgar pela sessão que abriu os trabalhos – uma conversa entre o editor e tradutor pessoano Richard Zenith, prémio Pessoa em 2012, e o vice-reitor da Universidade de Lisboa e coordenador do projecto Estranhar Pessoa, António Feijó –, a aposta pode já considerar-se ganha. Num resumo um bocadinho provocatório, talvez possa dizer-se que este foi um debate inteiramente dominado pela questão da heteronímia, ao mesmo tempo que, sobretudo pela voz de Feijó, se parecia ansiar por uma fase pós-heteronímica nos estudos pessoanos.
A conversa que Zenith e Feijó mantiveram ao vivo para o público que lotava o auditório da Gulbenkian partiu de três questões lançadas pelo moderador da sessão, Pedro Sepúlveda, que quis saber o que significa a palavra “eu” quando é pronunciada por Pessoa, se este é um tópico com implicações diferentes na poesia ortónima e heterónima, e ainda se há na obra pessoana um tipo de impessoalidade que a aproximaria do conceito de poesia dramática.
Zenith lembrou o poema Adiamento, de 1928 – no qual Pessoa escreve “(…) Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;/ Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã.../ Tenho vontade de chorar,/ Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro.../Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo (…)” – para defender que o segredo de que falam estes versos permanece inviolado, e que ele próprio, há dez anos a trabalhar numa biografia do poeta, continua à procura de saber “quem era Fernando Pessoa”. Explorar “os caminhos desenhados por Pessoa na literatura, na política, no pensamento ou no mundo esotérico” é um exercício “fascinante", reconhece Zenith, mas que não nos diz “what makes him tick”, o que o faz correr.
Concordando com os que menorizam a relevância concedida à inventariação dos heterónimos, bem como “a sua catalogação em pré, super ou sub-heterónimos”, Zenith acredita, contudo, que “o fenómeno da heteronímia”, isto é, “o querer ser tudo e todos”, é “importantíssimo” para a compreensão de Pessoa, e não tem um verdadeiro equivalente nas máscaras de W. B. Yeats, nas personae de Ezra Pound ou nos pseudónimos de Kierkegaard. Sem o exprimir exactamente nestes termos, o que o pessoano norte-americano parece defender é que essa tendência para a multiplicidade é como que constitutiva da psique de Fernando Pessoa, revelando-se desde os seus primeiros escritos, ainda em criança.
Feijó também não nega a importância da heteronímia, mas sugere que o que a torna inescapável é o facto de Pessoa ter feito dela o seu tópico obsessivo. E alerta para a armadilha de se encararem os inúmeros textos que o poeta dedicou à heteronímia, e aos seus diversos heterónimos, como “metadescrições” com a autoridade de um discurso exterior, quando, na verdade, "estão ao mesmo nível dos heterónimos e são parte da obra”.
Aquilo a que depois chamaria “o embaraço da heteronímia” teria crescido à medida que a arca era vasculhada e estes textos iam sendo revelados, o que leva Feijó a reconhecer virtudes nas visões "deflacionadas” de autores que ainda não conheciam estes auto-comentários, tendo citado o elogio fúnebre que Luís de Montalvor dedicou ao poeta na Presença, em 1936, ou as “adstringentes descrições de Pessoa feitas por Agustina Bessa-Luís” no início da sua carreira.
Com o seu talento, que este texto confirma, para oferecer títulos à imprensa, Feijó sugeriu mesmo que a heteronímia estaria para Pessoa como o penteado para os Beatles: “Têm alguma da produção musical mais genial do século XX e foram arrumados, no princípio, porque tinham cabelo comprido; os heterónimos são o cabelo comprido disto”. Zenith acha que “não é bem assim”, e também não concorda inteiramente com a tese de Feijó de que Pessoa só tem verdadeiramente três heterónimos, e que todos os outros apenas vieram a existir retrospectivamente porque Pessoa criara Caeiro, Reis e Campos. Sem Ricardo Reis, argumentou Feijó, o Chevalier de Pas (que Pessoa criou aos seis anos) não teria tido qualquer posteridade. Mas sem ele, replicou Zenith, não teria existido Ricardo Reis.
Os dois voltariam a mostrar-se em relativa divergência quando Sepúlveda insistiu na questão de saber se o Pessoa ortónimo não era, afinal tão heterónimo como os outros. Zenith acha que não, defendendo que, por exemplo, nas opiniões políticas ou nos textos que espelham o interesse de Pessoa pelo esoterismo a voz que se ouve é a de Pessoa ele-próprio. Feijó abordou o tema com alguma hesitação, mas acabou por admitir que também o Pessoa ortónimo deve ser posto nesse plano único da obra, onde já colocara os comentários à heteronímia, mas também a correspondência e tudo quanto o poeta escreveu.
Já perto do final da sessão, Feijó acabaria por avançar uma espécie de teoria da significação da heteronímia, baseando-se numa visão da história da poesia tomada de Yeats, que lamentava a excessiva abstracção da poesia do seu tempo, a qual contrastava com o tempo em que era ainda possível a Chaucer descrever individualmente cada um dos seus peregrinos e pô-los a narrar a sua própria história, sem contudo desagregar esse “mundo denso e tumultuário”. Resumindo o resumo de Feijó, Yeats achava que seria bom poder voltar aos peregrinos de Chaucer e dar à fragmentação da poesia moderna “uma coerência simbólica e mitológica, uma percepção dos deuses”. E foi justamente isto, argumenta, que Pessoa fez. “Mas aos deuses que criou, chamou heterónimos”.
Os trabalhos da manhã prosseguiram com um painel dedicado ao Pessoa político, no qual Manuela Parreira da Silva evocou as posições do poeta e do seu heterónimo António Mora sobre a Primeira Guerra, Madalena Lobo Antunes leu o Livro do Desassossego à luz do marxismo – actualmente a preparar o seu doutoramento, é um dos nomes dessa nova geração de pessoanos que Clara Riso, como explicou na abertura da sessão, fez questão de trazer a este congresso –, e Anna Klobucka, que trouxe uma fascinante comunicação sobre a intervenção de Pessoa na chamada controvérsia da Literatura de Sodoma.