Filipa César no laboratório da militância
Mais do que apenas a sua primeira longa, Spell Reel é o corolário de um longo work in progress da artista multimedia à volta da memória do cinema militante e do modo como ressoa através do tempo.
Spell Reel marca, tecnicamente, a primeira longa-metragem de Filipa César, nome que tem navegado entre as artes plásticas e a imagem em movimento ao longo dos últimos anos. Mas, como convém a uma artista cujo percurso se tem recusado a encaixar em gavetas, este não é um filme convencional que existe isoladamente de tudo o que o rodeia. Mostrado à imprensa na manhã de domingo (12) e com estreia mundial na paralela não-competitiva Forum no próximo dia 15, Spell Reel é o mais recente elemento de Luta Ca Caba Inda, um work-in-progress em que a artista tem trabalhado ao longo dos últimos seis anos, espoletado pela vontade de olhar para o “cinema militante” rodado na Guiné-Bissau entre 1964 e 1980. É uma “memória viva” do percurso desse work-in-progress e especialmente dos momentos em que Filipa César e Sana na n’Hada, viajando pelo país com um “cinema ambulante”, foram mostrando em cada paragem os fragmentos sobreviventes dos filmes rodados durante esse período. Como um laboratório móvel confrontando os filmes recuperados do arquivo da Guiné-Bissau com o estado, hoje, da sociedade e dos locais onde foram feitos – e, ao telefone de Berlim, Filipa explica como “fazer um filme sobre as apresentações que fizemos do arquivo foi também quase uma necessidade para poder tornar o projecto realizável.”
Spell Reel, nas palavras da sua realizadora, seria então “um resultado, não um objectivo.” Um resultado de seis anos de trabalho num projecto que foi sendo apoiado pelo Arsenal, a instituição dedicada ao cinema experimental e de vanguarda ligada à Cinemateca Alemã, pelo Jeu de Paume em Paris, o Showroom em Londres, a ZDB e a Fundação Gulbenkian em Lisboa, e que envolveu, para além do trabalho de pesquisa e recuperação de material in situ, uma série de apresentações, palestras, ciclos de cinema e instalações. Luta Ca Caba Inda - “A Luta Ainda Não Acabou” - partiu do material filmado primeiro durante a luta pela independência (1963-1974) e depois pelo período socialista da pós-independência (1974-1980), com o apoio de nomes como Chris Marker ou Santiago Alvarez. O material rodado por Josefina Lopes Crato, José Bolama Cobumba, Flora Gomes e Sana na n’Hada, pensado como “jornal em movimento” do progresso e evolução da sociedade guineense, acabou por nunca ser realmente montado ou retrabalhado; sobrevive apenas sob a forma de fragmentos ou materiais cuja própria estrutura não está fixada.
Contando com o apoio do Instituto Nacional do Cinema e Audiovisual guineense e a ajuda preciosa de Gomes e n’Hada, Filipa César mergulhou de cabeça nos arquivos de Bissau, que define como “uma arqueologia mais do que um arquivo”: “Tudo estava destruído, fragmentado. Muitos materiais sofriam daquilo a que chamam a «síndrome do vinagre», com a película em mau estado. Qualquer arquivista diz que aquilo vai para o lixo, ou então é tão precioso que vamos gastar milhões a salvá-lo. Não estávamos numa situação nem noutra, e acabámos por ter de inventar as nossas próprias regras. Acabámos por assumir a destruição do material como própria inscrição do tempo, da violência da história, na película. Ver como havia uma história ali em risco de se perder, e o que se poderia fazer naquele contexto, não havendo meios para salvar tudo.”
A artista fala de “arquivismo experimental”, mas sublinha que o objectivo “nunca foi reconstituir nada”: “Nunca quisemos voltar a sonorizar os filmes que estavam em processo de montagem. Aceitamos que as coisas foram encontradas assim. Criámos o cinema como um laboratório, entre uma sala de montagem e um visionamento de materiais não montados, e trouxemos para dentro do próprio cinema, como um processo de reflexão, os processos de produzir cinema: fazer um filme, pensar numa montagem ou num discurso para a imagem.”
É essa criação de um espaço de reflexão sobre a própria ideia de cinema militante, transcendendo as etiquetas fáceis, que Filipa César explora. “Estou interessada numa cultura do cinema militante e no imaginário da libertação,” explica. “Tenho andado a pesquisar resistências, e essas resistências estão sempre ligadas à prática do cinema enquanto lugar privilegiado de ligações e possibilidades de reflectir sobre questões. Interessa-me imenso como é que o cinema se expande na realidade e se torna um agente e um carácter. Um filme como Le Passeur [2008], sobre as passagens clandestinas fronteiriças no tempo de Salazar, pega na ideia do Serge Daney do passador de imagens, do contrabando de imagens que não é controlado pelo sistema, para reflectir sobre aquilo que se passou nos anos 1970.” É também isso que vemos nas múltiplas “tangentes” multi-mediáticas que Filipa foi fazendo à sua pesquisa guineense; como por exemplo em Mined Soil, curta de 2014 que faz a ponte entre a formação de geólogo de Amílcar Cabral e a exploração mineira no Alentejo, que esteve no centro da exposição Golden Visa, patente em Lisboa em 2015.
O trabalho da artista constrói-se, aliás, como uma espécie de constante “fuga para a frente” no interior de uma “toca de coelho”, como prova, por exemplo, a palestra que dará com Sana na n’Hada na secção Forum Expanded, inspirada pelos filmes encontrados no arquivo da Guiné: The Solid Image, parte do evento multimedia de entrada livre Think Film No. 5: Archival Constellations (a decorrer durante todo o dia 16 no Silent Green Kulturquartier). “Naqueles arquivos havia filmes cubanos, soviéticos, suecos, russos, chineses... filmes muito politizados que, se calhar, não se encontram em nenhum outro arquivo europeu. Isso faz com que o arquivo apresente um tipo de relações internacionais, muito específicas do local, que desenham uma história do contexto e do imaginário geopolítico de solidariedade relacionado com a Guerra Fria”. É algo que vai de encontro ao verdadeiro interesse da artista neste trabalho de memória: “Interessa-me pensar os arquivos como dispositivos que produzem realidade e contemporaneidade, mais do que algo que tem de se conservar, manter, guardar.”
A ideia é que este cinema não seja tanto uma experiência passiva de visão mas uma experiência activa de “ligar” tempos históricos distantes, como explica Filipa. “Foi muito importante a apresentação que fizemos, em Berlim, sobre os movimentos de libertação para tornar também presente e visível como é que, por exemplo, a Alemanha está muito ligada à questão colonial… Acho que estamos a viver um momento neo-colonial, onde as coisas mudaram de forma mas continuam no mesmo tipo de processos. Houve plataformas criadas em Berlim, pensando como é que se consegue fazer a ligação às questões políticas do passado para nos fazer pensar hoje sobre o que está a acontecer agora.” E, no mundo de Filipa César, a arte é fulcral como actividade de intervenção cidadã. “A minha relação é sempre como usar o cinema e a sua prática para levantar questões e para criar imaginários. Às vezes acabam por ser formas de abordar temas mais difíceis.”