Salomé Lamas no topo do mundo
Encontrou, nos Andes peruanos, uma "terra de ninguém" cujas minas de ouro atraem gente desesperada em busca da promessa do enriquecimento. Salomé gosta de se atirar de chofre, é uma forma de preservar a dimensão aventurosa das suas rodagens. Eldorado XXI chega às salas portuguesas.
Bem-vindos a La Rinconada, ruína viva dos sonhos dos "conquistadores" que noutros séculos exploraram os confins da América do Sul à procura da mítica cidade a que chamavam "Eldorado". Salomé Lamas encontrou-a num ermo algures nos Andes peruanos, enorme e árida "terra de ninguém" (que por acaso é o título de um dos mais conhecidos filmes de Salomé) cujas minas de ouro atraem gente desesperada ou meramente gananciosa em busca da promessa do enriquecimento rápido.
É o topo do mundo – para lá chegar acima eram duas horas de viagem por caminhos intransitáveis todos os dias durante a rodagem, como nos conta a realizadora em conversa –, mas ao mesmo tempo também é a base do mundo, a "cave do mundo", num sentido que tem um pouco de, digamos, moral ou moralista, como uma espreitadela ao inferno da avidez material, como tem um pouco de fisicamente descritivo, porque aquelas pessoas sobem aquilo tudo para se enfiarem num grande buraco, como tem mesmo um pouco de teoricamente político, porque a Rinconada é a expressão, menos irónica do que possa parecer, de um capitalismo arcaico e rudimentar, sem outra lei que não as que ele espontaneamente cria, "selvagem" sem força de expressão.
Há muitas razões para Salomé Lamas ter chamado ao seu filme Eldorado XXI, desde logo o que o título, por contraponto às imagens, sugere acerca de uma "deflação mitológica". Não há aqui nem a beleza nem o esplendor da "cidade dourada" que os exploradores espanhóis, por exemplo os filmados por Werner Herzog em Aguirre, anteviam e idealizavam. Bem pelo contrário, não há na Rinconada qualquer beleza ou esplendor. Mas há uma espécie de grandiosidade, provavelmente a mesma que nos leva, por lapso, a escrever Eldorado XXL, e depois a achar que também esse título seria justo – e particularmente apto para descrever um plano do filme, um plano XXL, que leva metade da sua duração total, praticamente uma hora num filme que tem cerca de duas.
Mencionámos Herzog, e certamente que as suas lendárias experiências de rodagem "radical" em ambientes difíceis e inóspitos (mais, provavelmente, do que os seus resultados práticos e fílmicos) são uma referência importante para Salomé, que gosta de rodagens assim, ao encontro do inesperado e ao perigo. Mas nesta espécie de conto documental sobre a fina linha entre a necessidade e a ganância vê-se também uma persistência contemporânea daquelas “corridas ao ouro” que o cinema ainda chegou a tempo de evocar em cima do acontecimento – seria absurdo dizer que Eldorado XXI é tão divertido como a Quimera do Ouro de Chaplin, mas é pelo absurdo, pelo que parece irreal, que o filme de Salomé é, à sua maneira, divertido. E áspero, num cenário de aridez desértica como no imortal retrato da ganância (Greed) feito por Stroheim. Com um pouco daquela intimidade desconcertante, quase doméstica, com que os filmes de Pedro Costa esventravam as ruelas das Fontainhas. E um tempero de um imaginário pictórico, digamos um pouco de Bosch, porque não estamos assim muito longe de ideia de inferno.
Convocar o perigo
Salomé Lamas gosta de se atirar de chofre, é uma forma de preservar a dimensão aventurosa das rodagens, de convocar o perigo. Quando lhe perguntamos como conheceu a Rinconada, e sobretudo como decidiu filmar lá, a resposta deixa entender que a decisão de filmar precedeu o conhecimento in loco: só conhecia a Rinconada “de ler coisas, descrições e relatos”, de ver “fotografias”. Está sempre a fazer, na sua cabeça, pesquisa de cenários, pensa ao mesmo tempo em diversos lugares do mundo, nem por isso os mais turísticos ou frequentados. Até que foi mesmo à Rinconada, em missão prospectiva, em 2014, duas semanas para ver as vistas, tomar o pulso ao lugar e arrancar uma espécie de esboço, mais curto, do tal “plano XX, para depois voltar em 2015 para cinco semanas de rodagem que esteve para interromper. “Quase que parei tudo ao fim de duas semanas, a equipa estava desconfortáve.l” E até “os motoristas e os seguranças”, contratados localmente, estavam cada vez mais nervosos. “A Rinconada tem todos os problemas de um lugar de passagem, onde nada é permanente e tudo e todos estão sempre em trânsito.” Salomé Lamas refere-se à violência, ao alcoolismo, prostituição, tráficos da mais variada ordem.
As pessoas vão para ali trabalhar nas minas deixando tudo para trás, a maior parte delas numa espécie de último recurso, vão “à espera do enriquecimento rápido”, seduzidas por um modelo de contratação (o “cachorreo”) que lhes permite, durante determinados períodos, guardarem para si o minério recolhido, em vez de o entregarem ao patrão. “Ninguém pensa ficar mais de duas semanas, mas há quem chegue a ficar 20 anos.” O ambiente humano é agreste, a presença da lei ou de algum tipo de força institucional é diminuta (“Mesmo os polícias e os médicos que para ali são destacados estão sempre a rodar”), são comuns as rixas, os esfaqueamentos, os assassinatos, por causa do álcool, de mulheres ou de dinheiro. “Não é um lugar onde as relações humanas sejam muito calorosas, não há propriamente amizades, o valor essencial é sempre alguma forma de interesse.” E “tudo é transacção”, meias palavras com que Salomé explica como conseguiu “entrar” nalguns dos planos mais domésticos e mais “afáveis” de todo o filme, aquele em que um grupo de mulheres conversa amenamente sobre eleições e sobre os malefícios do tabaco com semelhante distanciamento, como se fossem imunes quer à política e aos resultados eleitorais, quer aos efeitos do fumo – como se estivessem noutro mundo e nada as tocasse.
Na verdade, estão mesmo noutro mundo, mas durante a segunda parte de “Eldorado XXI” Salomé dedica-se ao retrato daquilo que na Rinconada se assemelha, em versão árida, ao mundo exterior: os laços sociais, um sentido de comunidade básico, os arremedos de organizações colectivas que, não importa quão precariamente, transmitem àquele lugar de vaivém habitado por estranhos sempre de passagem uma forma de identidade. Estranha, mas uma identidade. No final, uma longa sequência festiva, que aos nossos olhos parece a mistura de um baile de uma cidadezinha de western com aquelas charangas anárquicas dos filmes de Kusturica (portanto, bizarramente reminiscente daquelas festas de Verão no interior português), parece registar uma manifestação dessa identidade, uma erupção de um sentido colectivo. E “é verdade”, confirma Salomé, mas precisando que esse sentido se regista entre os mais despojados de todos aqueles despojados: a cena foi filmada numa época de festas populares, a maior parte dos habitantes da Rinconada voltou temporariamente à sua terra natal, “ficaram só os que não têm sítio nenhum para onde ir”.
Dois filmes
Há uma diferença de estrutura tão grande entre o primeiro e o segundo andamento de Eldorado XXI – o tal longuíssimo plano, precedido de uma breve introdução à matéria humana e física, e depois na segunda hora o “mosaico” do lugar, sempre a repartir a atenção entre a população e a geografia – que queremos saber a razão da opção. Salomé diz que chegou a pensar “em fazer dois filmes, ou um filme em duas partes”. Havia um interesse em manter esse plano, fixo e longo, até porque a realizadora também o pensou como suporte para uma exibição em formato de instalação, em galerias ou espaços de tipo museológicas. O produtor demoveu-a da ideia das duas partes, por razões práticas relacionadas com financiamentos e com os modos da sua posterior exibição. Porém, na prática, embora seja um só filme para ver de cabo a rabo, Eldorado XXI acabou por preservar essa multiplicidade na sua estrutura, e é Salomé a primeira a dizer que no fundo “se trata de dois filmes”.
O plano longuíssimo, trazido sem amolecimento para dentro do filme, não dá hipótese de fuga: visto em sala de cinema, falta ao espectador a mobilidade e a possibilidade de a qualquer momento quebrar o compromisso com as imagens que as condições físicas do formato de instalação por norma permitem (quer dizer, pode sempre abandonar a sala, se não aguentar aqueles 57 minutos, mas não é a mesma coisa, nem na prática nem na teoria). Esse plano foi também rodado de chofre, mal a equipa tinha chegado lá acima para iniciar as cinco semanas de filmagens. Num picado ao lusco-fusco, que acompanha a chegada da noite (a luz do princípio dá lugar ao breu total dos instantes finais), a câmara enquadra uma zona de passagem à entrada da mina, e gente a cruzá-la interminavelmente, enquanto na banda de som uma colagem de programas radiofónicos funciona como introdução ao lugar: ouvem-se histórias, pequenos dramas, relatos na primeira pessoa, mas também alguma música e formalidades radiofónicas, como a publicidade ou boletins noticiosos. “Era a hora da mudança de turno”, explica Salomé, justificando o movimento em sentido contrário de tantas figuras de uma uniformidade conferida pelas vestimentas de trabalho e pelos capacetes, cujas pequenas lâmpadas vão dando os únicos pontos luminosos, como pirilampos ou como um filme de ficção científica. Para ela, e por isso se atirou tão obsessivamente a esse plano, é a imagem que melhor explica, que melhor devolve, “o que é a Rinconada”.
E naquele vaivém de uma hora, que interpela o espectador como um desafio à sua atenção e à sua introspecção, gera-se um misterioso efeito de progressiva familiaridade. Habituamo-nos àquele plano como os garimpeiros se habituam à Rinconada. E essa é possivelmente a chave, dizemos nós, que explica o olhar de Eldorado XXI sobre a Rinconada: um filme sobre a capacidade humana para se habituar a tudo.