As Sleater-Kinney continuam connosco

Um disco de um concerto de rock por três mulheres, Live in Paris é raro e precioso.

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É uma delícia vê-las a dar vida a um género considerado misógino

É legítimo perguntar se este não é um objecto redundante. Feito de temas gravados ao vivo, num concerto em Paris há dois anos, pouco acrescenta à música que as Sleater-Kinney fazem desde 1994. Rock comprometido com as guitarras e bateria, com uma narrativa, com certos modos de fazer música. Tem até qualquer coisa de anacrónico, ao insistir em vozes acompanhadas de riffs, acelerações de bateria, tempos entrecortados, os inevitáveis aplausos e gritos da audiência. Os discos ao vivo de rock foram, quase sempre, dirigidos aos fãs, aos convertidos. Só transcendiam esse horizonte quando capturavam a energia juvenil da música (It´s Alive, dos Ramones) ou reificavam momentos marcantes nos percursos das bandas ou dos músicos (Time Fades Away, de Neil Young). Live In Paris não se enquadra propriamente em nenhum desses casos. Aponta à confirmação, ao reconforto. Mas também faz algo precioso: permite redescobrir as canções e, pelo caminho, liga o ouvinte (pela ponte do gosto) a todos os que estiveram no concerto.

Live in Paris documenta uma banda numa actuação genuína, verdadeira. Num concerto de rock, repita-se. Arranca, por isso, com Price Tag, tema que Carrie Brownstein agarra com uma ferocidade superior à que se escuta em No Cities To Love (2015). Em crescendo, sustentada na bateria de Janet Weiss, interrompe-se nos segundos finais, deixando suspensa uma tensão que só o tema seguinte aplacará. Nesta faixa está (quase) tudo o que Live in Paris tem para oferecer: dinâmicas que afastam as canções do primarismo do punk, frases empurradas pela emoção, ritmos em que a delicadeza não sacrifica a força, a eleição grandiosa da guitarra e das palavras. Também, uma certa ideia da América contada pela sua música popular (ela pressente-se, ela escuta-se ao longo de todo os disco).

A genealogia das Sleater-Kinney permanece cristalina: o pós-punk da X-Ray Spex e dos Buzzcocks, os devaneios eléctricos de Neil Young, a portabilidade e a falsa modéstia das canções pop. Mas neste momento é justo acrescentar que são as Sleater Kinney que influenciam as Sleater-Kinney. As canções falam umas com as outras, assumem o parentesco que as liga. E diga-se: o trio de Olympia ganhou definitivamente um lugar no cânone de género, ao consagrar aos riffs uma beleza que é irredutível a descrições. Evoquem-se palavras como melancolia, esperança, reconciliação, revolta, responsabilidade. Será, porventura, inútil. O melhor é mesmo ouvir, ouvir de novo a maravilhosa “Start Together” (o rock a virar-se sobre si próprio, a entregar-se à subtileza) ou esse turbilhão que é Turn it On que, ameaçando calar-se, gritará, no fim, a exaltação exigida pelo título: turn it on.

Nos anos 90 do século XX, Greil Marcus afirmou que as Sleater Kinney eram a melhor banda de rock dos Estados Unidos. Está na altura de acrescentar que as Sleater-Kinney são a melhor de banda rock do mundo. É uma ironia deliciosa vê-las a dar vida ao um género considerado misógino e machista, envelhecido e impotente. Mas como grandes artistas, elas souberam ouvir para além das falhas dos seus intérpretes e das circunstâncias da sua história. E nestes tempos, sobretudo nestes tempos, podemos, devemos continuar com elas. E a aplaudi-las como faz o público, em Paris, depois ouvir Modern Girl.

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