Menos caçadores, menos jovens, menos animais. Mas muita paixão e polémicas mil
Em dez anos, Portugal terá perdido 200 mil caçadores e o número de animais para caçar é cada vez mais escasso. O P2 foi ouvir o que têm a dizer caçadores no activo, Governo, armeiros e o PAN sobre um sector onde há muitas críticas e que renderá 10 milhões anuais ao Estado.
Na Herdade do Freixo e Monte de Cima, em Évora Monte, freguesia alentejana do concelho de Estremoz, o silêncio dos campos é, num repente, interrompido pelo latir de dezenas de cães, pelo ruído dos guizos que alguns trazem amarrados ao pescoço e pelos gritos dos homens que incentivam a canzoada de diversas raças a bater o terreno. Está em curso uma montaria ao javali.
Os homens já foram colocados nas portas – locais onde os caçadores esperam que as matilhas lhe “empurrem” um javali ao alcance da carabina. É a chamada “caça de espera”. A caça grossa a esta espécie é autorizada todo o ano e os caçadores dizem que a fazem também para conter uma espécie que se reproduz em grande número e que é, muitas vezes, prejudicial a culturas agrícolas e a outras espécies cinegéticas.
No total são 24 caçadores, cuja grande maioria pertence à Associação de Caçadores de Casa Branca, que explora e trata de um terreno com cerca de 800 hectares alugado por dez mil euros/ano à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
São pequenos e grandes empresários, profissionais por conta de outrem e liberais de diversas profissões e idades, que têm um ponto em comum: adoram caçar. Os mais velhos, em maioria, fazem-no desde criança e não trocam, sempre que podem, esta actividade “por mais nada”. Até porque, dizem, “o convívio e amizade que a caça proporciona é único e dura uma vida”. Vieram de vários pontos do país, alguns fizeram mais de 400 quilómetros para ali estar naquele soalheiro início de manhã de um sábado de Janeiro. Se estivesse a chover copiosamente, ali estariam na mesma, asseguram.
“Hoje há por aqui porcos [javalis]”, diz Jacinto Amaro, 60 anos, empresário agrícola e presidente da Fencaça, a maior e mais activa federação de caçadores portugueses representando cerca de 100 mil caçadores. Preside à instituição desde que ela foi criada há 25 anos e é o pioneiro da caça associativa em Portugal. Muitos dos seus colegas de caçada dirão ao P2 ao longo do dia que “é o homem que mais sabe de caça em Portugal”.
“Aí há porcos, ai há, há”, repete. Dois tiros, cujo ruído se sobrepõe ao feito pelos cães e homens, dão-lhe razão. “Um já deve ter ido”, diz de sorriso nos lábios.
Jacinto Amaro anda de carabina ao ombro, mas nessa manhã disparar ao javali não é o seu objectivo primeiro. É ele quem dirige a montaria, quem dá ordens aos matilheiros, os chamados ajudantes de caçadores que, com a ajuda das suas matilhas, procuram, perseguem e levantam a caça maior. Não pára um segundo. A pé e de carro vai percorrendo a área da caçada e indicando a direcção que as matilhas devem bater. Só nessa manhã estão cerca de 70 cães no terreno. “Por ali, por ali, se houver porcos, estão ali”, grita aos matilheiros, apontando o dedo a uma zona com mato.
Os amigos da caça e os outros
Cidade de Coruche, distrito de Santarém. Na véspera da montaria em Évora Monte, Jacinto Amaro recebeu o P2 na sede da Fencaça. Mostra com orgulho as salas onde trabalham técnicos, administrativos e pessoal do sector jurídico, a sala de reuniões e, por fim, o gabinete do presidente. Pelas paredes há cabeças de animais (troféus de caça), objectos alusivos à actividade e fotografias. Muitas fotografias. Nelas estão registados momentos da história de federação. Momentos que mostram também a presença de antigos e actuais ministros, deputados, dirigentes partidários das mais diversas áreas e figuras conhecidas da sociedade portuguesa. “A maioria são amigos da caça e dos caçadores, outros nem por isso”, diz.
Garante que, quando fala em “amigos da caça”, fala em pessoas que “defendem os valores do sector e reconhecem a sua importância”. “Os amigos são gente que, como nós, defendem o ordenamento cinegético e reconhecem na caça um factor de desenvolvimento rural e de manutenção da diversidade biológica. Reconhecem que é um importante sector para a economia nacional e local e que ajuda a combater o despovoamento e o desemprego no interior. Gente que é amiga da natureza e dos animais, como o são a maioria dos caçadores”, afirma o presidente da Fencaça. Valores que serão repetidos ao P2 por muitos caçadores.
Nos últimos dez anos, verificou-se uma quebra de cerca de 200 mil caçadores activos em Portugal. Em 2006, eram perto de 300 mil os que tinham carta e licença anual de caça válida, número que no ano passado chegou a pouco mais de 110 mil. As razões apontadas são muitas, desde a “falta de uma política activa e sensível” para o sector, à crise financeira, passando pelo que os caçadores chamam “caça às taxas” ou “excessivos processos burocráticos”. A tendência inverteu-se ligeiramente no ano passado, com os números, ainda provisórios, a indicar uma ligeira subida do número de caçadores.
Menos caçadores não significou mais caça para os restantes. Devido às doenças de algumas espécies cinegéticas (especialmente do coelho, que quase desapareceu) e às alterações climáticas (responsáveis pelo desaparecimento de espécies de arribação, como os pombos bravos ou as galinholas, que migram menos para o país), o número de animais para caçar é cada vez mais escasso.
Caçar deixou de ser, salvo algumas excepções, uma tradição que passava de pais para filhos e são cada vez os mais velhos a praticar esta actividade, com a média de idades dos que renovam ou tiram licença a rondar os 64 anos.
As vozes contra a caça e os caçadores são hoje mais sonoras, mais visíveis e com mais poder – associações de defesa da natureza e dos animais, que acusam os caçadores de caçar “apenas por prazer”, de dizimar as espécies cinegéticas, de matar espécies protegidas, a tiro, com armadilhas e envenenamento, e de maltratarem a natureza e os animais, nomeadamente os cães de caça.
Fundamentos que ganharam mais visibilidade e peso com a chegada do Partido da Natureza e Animais (PAN) à Assembleia da República, graças à eleição do deputado André Silva, em 2015. Logo no seu programa eleitoral, o PAN pedia de forma clara a “proibição da caça desportiva” e “o uso de animais como instrumentos de caça”. Ou seja, o fim de toda a caça, porque toda ela é desportiva.
“É eticamente inaceitável que alguém se divirta com a morte e sofrimento de outros animais. Desporto não é isto, não é esta prática violenta injustificada. A prática da caça desportiva é um crime ambiental e um crime contra todos os seres vivos”, diz André Silva ao P2.
A ministra que não diferenciava um sobreiro de uma azinheira
Apesar da significativa e variada presença de ministros e dirigentes partidários nas fotografias espalhadas pelas paredes da sede da federação, há muitos anos que Jacinto Amaro não anda satisfeito com a classe política, que acusa de nada fazer pelo sector. “Só pensam em taxar, em criar taxas novas, em arrecadar mais e nada devolvem à caça. Nada do que recebem, e calculamos que sejam cerca de 10 milhões de euros por ano em taxas, é aplicado na caça”, assegura.
A sua principal revolta vai para o Governo anterior, o da coligação PSD-CDS, que, no que à caça respeita, diz ter sido “o pior dos últimos 25 anos”: “O Governo da PàF foi como o Melhoral, não fez bem nem mal, mas isso não foi bom. Durante cinco anos deixou que os muitos problemas se mantivessem e agravassem, ignorando o sector por completo.”
E as maiores críticas vão para a anterior ministra da Agricultura, Assunção Cristas, agora presidente do CDS-PP. “Pode ser uma senhora muito competente na sua área, pode ser uma simpatia, mas de agricultura não sabia, nem sabe, nada. Não sabe distinguir um sobreiro de uma azinheira. Como pode uma pessoa assim ser ministra da Agricultura e como tal ter responsabilidades na política da caça? Ignorou-nos completamente, foi uma desgraça.”
Jacinto Amaro teve esperanças com o novo Governo PS, que tem como ministro da Agricultura Capoulas Santos, “um homem que sabe de caça e reconhece a sua importância”. Mais esperançado ficou quando, em Maio do ano passado, o ministro, no 24.º Congresso Nacional dos Caçadores Portugueses, anunciou várias medidas do agrado do sector: abrir portas para garantir acesso a fundos comunitários; fazer regressar o Conselho Nacional da Caça e as licenças de uso e porte de armas articuladas com a atribuição da carta de caçador.
“Queremos voltar a ouvir o sector e a estabelecer com ele um diálogo que permita resolver alguns dos problemas, alguns que parecem absurdos (...) e procurar criar um clima que permita potenciar e utilizar adequadamente este importante recurso que a caça representa no país”, afirmou na altura Capoulas Santos.
O ministro disse ainda estar “em diálogo” com os parceiros de Governo, do Ambiente e da Administração Interna, para tentar resolver alguns problemas colocados pelo sector.
Só que, passados quase nove meses, os caçadores dizem não ter visto da parte dos ministérios que tutelam a caça (Agricultura, Administração Interna e Ambiente) e do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) qualquer consequência às palavras de Capoulas Santos.
Acusam a Administração Interna de manter uma política de “perseguição aos caçadores”, em que autoridades policiais os comparam “a bandidos”. “Isto” porque, dizem, “temos armas”, graças a “uma legislação excessiva e desnecessária” para o sector. Acrescentam ainda que o Ministério do Ambiente os “ignora por completo”, não mostrando “qualquer abertura para discutir os problemas” da actividade. Já sobre o ICNF, a quem cabe a gestão da caça, Jacinto Amaro afirma que “só se preocupa em receber o dinheiro dos caçadores, não aplicando um cêntimo no sector”, nomeadamente na formação de caçadores, fiscalização e investigação nas doenças que afectam algumas espécies cinegéticas.
Para o presidente da Fencaça, a continuidade da “ausência de políticas” pode fazer com que a caça “bata no fundo” neste ano.
A “política do lince”
Arlindo Cunha, antigo ministro da Agricultura nos governos de Cavaco Silva (1986/1994) e das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente com Durão Barroso (2004), e que também faz parte do grupo de caçadores de Évora Monte e vice-presidente da Fencaça, diz que o retrato actual da caça em Portugal é “muito preocupante”.
Também ele fala em cobrança de taxas que “não fazem sentido” e que “não resultam em contrapartidas”, acusando o ICNF de “falta de sensibilidade” e de ter “preconceitos para com a caça”.
“Em países como Espanha, França, Alemanha e muitos outros, a caça é encarada como um fenómeno positivo que contribui fortemente para a economia geral e de diversos sectores, para o desenvolvimento rural e para a defesa do ambiente. Por cá, não só é ignorada como é maltratada”, diz o caçador, de 67 anos, e que começou a caçar aos 13 anos com o pai, em Angola.
Para o militante social-democrata, que se retirou da vida política activa e actualmente se dedica à produção de vinho no Douro, os sucessivos governos ignoram que “a caça contribui também para manter as populações no interior”, já que “dá emprego a muita gente” e “dinamiza economicamente cafés, restaurantes, hotéis e lojas de produtos alimentares regionais”.
Arlindo Cunha define a política da caça em Portugal numa frase curta: “É a política do lince.” “Todo o dinheiro cobrado pelas taxas aos caçadores vão para a preservação do lince-ibérico, uma espécie que, ainda por cima, não tem o que comer em estado selvagem porque a doença dizimou os coelhos no nosso país, que são a base alimentar do lince”, acrescenta.
Durante duas semanas, em contactos telefónicos e por email com Isabel Isidoro, responsável do ICNF para os contactos com a comunicação social, o P2 tentou uma entrevista com o presidente do instituto, Rogério Rodrigues, ou com um outro responsável. Ninguém teve disponibilidade para esse contacto.
Coelhos e a galinha dos ovos de ouro
A doença dos coelhos, “que quase dizimou a espécie na Península Ibérica”, é outra das “grandes preocupações”. Esta espécie sofreu uma forte diminuição na segunda metade do século XX, um pouco por toda a Península Ibérica, devido principalmente à acção de duas doenças víricas: mixomatose e doença hemorrágica viral (DHV). Em 2010, foi identificada uma nova variante do vírus responsável pela DHV.
Já em meados de Janeiro deste ano, o Governo anunciou que, com a supervisão da Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA), vai instalar nos concelhos de Castelo de Vide, do Sabugal e de Penamacor uma rede de parques de criação de coelhos-bravos com o objectivo de, posteriormente, os libertar nos locais onde vai ser introduzido o lince-ibérico. A medida visa assegurar a alimentação do maior felino da Península Ibérica nas serras da Malcata, de São Mamede e na área de Moura/Barrancos. O projecto custará um milhão de euros.
Uma medida que Jacinto Amaro também ataca por ser tomada pelo Ministério do Ambiente e pelo ICNF “sem ouvirem ninguém”. “Não ouviram nem os caçadores, nem os proprietários dos terrenos, nem sequer o ministério da Agricultura. Vão gastar um milhão de euros dos caçadores para dar de comer ao lince. Quando acabarem os caçadores, a galinha dos ovos de ouro, como é que vão dar de comer ao lince?”, pergunta.
O presidente da Fencaça diz que o sector da caça “também defende e luta pela preservação do lince-ibérico”, garantindo que, se há alguma recuperação da população de coelhos, ela deve-se “aos caçadores e aos donos das terras, os únicos que têm lutado contra a doença e pela recuperação da espécie”.
Por isso, afirma que o sucesso da preservação do lince só acontecerá se for feita em colaboração com as associações de caçadores e os proprietários dos terrenos onde o lince vai ser libertado pois "estes são decisivos para as coisas correrem bem ou mal”.
Segurança e sangue-frio
A montaria ao javali, embora agitada pela constante movimentação de homens e cães, pelo repetir de gritos de incentivos às matilhas e pelo latir dos animais, é uma caça solitária.
Depois do sorteio das portas – um momento quase solene e em que sempre se guardam alguns momentos de silêncio em homenagem a monteiros já falecidos –, os caçadores são largados nas portas. Um em cada uma. Alguns levam pequenos bancos para dar descanso às pernas durante as três ou quatro horas que pode demorar a caçada. E ali ficam encobertos entre arbustos e árvores, num silêncio quase obrigatório, mas sempre de olho atento à espera que um javali passe perto da sua porta. O uso de telemóveis é absolutamente proibido.
“Entre nós, nunca houve, felizmente, nenhum acidente, mas é sempre bom lembrar que a segurança é o mais importante”, lembra ao grupo Jacinto Amaro, antes de os homens serem espalhados por locais específicos do montado.
O médico João Galinha Barreto, que optou por não caçar mas não deixou de acompanhar a montaria, acentua a importância da segurança durante uma montaria. Explica que cada caçador tem de saber onde estão exactamente os parceiros das portas próximas e que não deve abandonar o local sem dar sinal aos outros. “Isto aqui é malta com muita experiência, que se conhece bem e que conhece as regras, mas é preciso estar sempre muito atento”, afirma.
As montarias têm ainda outras regras específicas que é preciso respeitar: É expressamente proibido atirar a javalis que tenham cães muito próximo e evitar atirar muito longe, o que reduz as probabilidades de êxito e aumenta o perigo.
É uma caça que exige também muito sangue-frio. Em que só se deve atirar ao alvo quando ele estiver perfeitamente visível, não vá sair da mata um cão ou um homem em vez de um javali.
Mais tiros e gritos. “Olha o porco, olha o porco. Olha que parece não estar morto”, ouve-se ao longe. Por vezes o animal não morre de imediato com os disparos. Quando assim acontece, a presa é agarrada pelos cães e é dever dos monteiros ou dos matilheiros, que trazem longas facas de mato à cintura, “rematar a rês” (matá-la) usando a faca e nunca uma arma de fogo.
Galinha Barreto vai explicando que, entre os caçadores que por ali andam, “há de tudo, gente de várias profissões e de diferentes credos políticos, mas acima de tudo um grupo de bons amigos que ama a caça”. “E só isso é que conta. Nada mais.”
A meio da montaria, com muitos hectares já batidos, a preocupação dos matilheiros é dar água aos cães, ver se estão bem. “Isto é muito exigente para os animais, é uma actividade muito puxada. Temos sempre de estar atentos a eles, ver se estão bem”, diz José Mouro, um dos matilheiros contratados.
Cada vez menos jovens
Os números obtidos pelo P2 revelam que existem cada vez menos jovens a caçar. Os diversos caçadores admitem que a velha tradição de o gosto pela caça passar de pais para filhos é cada vez mais diminuta e atribuem este facto à emigração e à deslocação dos jovens do interior para as grandes cidades, para estudar e trabalhar. Há 20 ou 30 anos, a grande, e quase única, actividade de muitos jovens que viviam no interior do país era caçar e hoje dispõem de muita e variada oferta de actividades.
Apontam ainda para o facto de caçar ser uma actividade cada vez mais cara. Segundo estimativas feitas por vários caçadores e pelo presidente da Associação de Armeiros de Portugal (AAP), Artur Guérin, iniciar actividade não fica por menos de 3 mil euros.
Tirar a Carta de Caçador, válida até aos 60 anos e a partir daí renovada de cinco em cinco anos, custa 17,5 euros para menores de 25 anos e 35 euros para maiores de 25 anos. Já a licença anual a nível nacional fica por 60 euros e 30 euros se for regional. A isto junta-se a compra de uma arma pelo preço mais baixo no mercado (1200/1300 euros, embora existam armas que podem chegar a perto de 100 mil euros), munições, licenças (uso de porte de arma, registo criminal, boletim médico), seguros, pagamentos para caçar em zonas de caça turística, vacinas e alimentação de cães, vestuário e deslocações.
Durante uma conferência realizada no final de Setembro de 2016, no Parlamento Europeu, a Federação das Associações de Caçadores da Europa (FACE) apresentou um estudo que revela existirem cerca de 6,7 milhões de caçadores na Europa. Segundo esse estudo, a caça representa um valor de cerca 16 mil milhões de euros para a economia europeia, e cada caçador gasta em média 2400 euros de forma directa com a actividade. Em Portugal, não há qualquer estudo que indique qual o real valor que o sector tem na economia.
O jovem que ficou com o bichinho em garoto
Voltemos à Herdade do Freixo e Monte de Cima e à montaria ao javali. A maioria dos caçadores anda entre os 50 e os 70 anos. Entre eles, destaca-se um jovem. Miguel Romano, 19 anos, vive e estuda Direito em Lisboa e herdou o gosto da caça do pai. “Desde garoto que acompanho o meu pai nas caçadas e fiquei com o bichinho. O meu pai nunca me pressionou para caçar, eu é que sempre gostei muito. E não é só o caçar, é o convívio com os outros caçadores, com a natureza, com os animais… é um mundo espectacular.”
Sobre o facto de haver cada vez menos caçadores jovens, Miguel diz que ao irem para as grandes cidades “perderam a ligação à terra e às tradições. Os jovens hoje têm muitas distracções e nem precisam de sair de casa. Há também muito comodismo, muito materialismo. Infelizmente, há muitos jovens a desligarem-se das tradições e da cultura portuguesas”.
Miguel diz que não é fácil explicar a outros jovens da cidade o gosto pela caça. Diz que muitos deles “têm uma visão distorcida do que é a caça” e são muito influenciados por “algumas associações que afirmam ser defensoras da natureza e só atacam a caça porque desconhecem o que é a actividade”.
“São os caçadores que limpam os terrenos, que colocam bebedouros para os animais, que se preocupam com as espécies cinegéticas. Não há maiores conservadores da natureza do que os caçadores. A história de que [os caçadores] matam a torto e a direito é mentira, até porque se assim fosse acabava a caça e nenhum de nós quer isso”, afirma.
Contra os que se divertem com a morte e sofrimento de outros animais
Para o PAN, os argumentos dos caçadores de que a caça é uma importante actividade económica, geradora de emprego, e de que os caçadores são os primeiros amigos da natureza não colhe. O deputado André Silva diz que, “se fosse assim, teríamos o primeiro-ministro e o líder da oposição a defender a caça de 15 em 15 dias no Parlamento, e não é isso que acontece”.
“Mesmo que tenha algum impacto económico, não há nada que justifique que um ser humano se levante de manhã para causar profundo sofrimento e a morte a outros animais. Desporto? Defesa do ambiente? Uma pessoa levanta-se da cama a um sábado de manhã para disparar em tudo o que mexe e isso é desporto e defesa do ambiente?”
Já sobre o argumento de que são os caçadores os primeiros a fazer o controlo cinegético, nomeadamente abatendo algumas espécies que por existirem em número excessivo possam ameaçar outras, André Silva diz que então esta actividade “não se chamaria caça desportiva, mas sim caça de controlo de espécies”. “Repito, são pessoas que, em vez de irem ao teatro, ao cinema ou fazerem exercício físico se divertem a matar e a causar sofrimento a outros animais.”
André Silva manifesta-se “igualmente contra” o anúncio feito pelo ministro da Agricultura de tentar conseguir de Bruxelas fundos europeus para o sector da caça. “O PAN é contra a utilização de dinheiro dos cidadãos para maltratar animais, como aliás determina a Comissão Europeia. Chame-se caça, tiro aos pombos, tauromaquia ou queima do gato.”
Em comunicado, emitido após o anúncio do ministro Capoulas Santos, o PAN afirma: “A caça é um sector com cada vez menos significado na economia e sociedade portuguesas, que perde força consistentemente.” “O facto de os caçadores se extinguirem à taxa de 10 mil por ano é uma derrota apenas para as associações de caça, porque, para todos os outros sectores que procuram dinamizar as regiões rurais e do interior de Portugal, é um sinal positivo e encorajador”, acrescentava.
Neste momento, o PAN ainda tem em estudo o conjunto de iniciativas que visem o seu objectivo de colocar o fim à caça, “até porque sendo uma actividade legal é preciso sensibilizar os cidadãos”, mas pretende avançar em breve com um pedido para que sejam retiradas das listas de espécies caçadas em Portugal, “algumas que são consideradas em perigo de extinção”, como a rola brava e o zarro, da família dos patos, que já estão na categoria de espécies vulneráveis.
Os caçadores acusam “partidos como o PAN e outros movimentos de ser contra a caça de uma forma cega”. “Não são defensores dos animais e da natureza, são anticaça. Por que não vêm para o terreno ver o que fazemos em defesa dos animais e natureza, apesar de já os termos convidado? Quem limpa os terrenos, quem trata das espécies, quem lhes coloca bebedores de água nos terrenos, quem procura combater as doenças somos nós. E eles o que fazem? Falam, lá por Lisboa, sem saberem nada disto”, diz Jacinto Amaro, sendo secundado nas críticas por outros caçadores.
O perigo da munição comprada em Espanha
A redução no número de caçadores atinge numa primeira linha os armeiros. O presidente da associação que representa o sector, Artur Guérin, estima que existam cerca de 300 armeiros espalhados por Portugal, com um volume de negócio entre os 80 e os 100 milhões de euros anuais. Estes números incluem as exportações feitas pela fábrica de armas e artigos de desporto de Viana do Castelo, da belga Browning.
O presidente da AAP, também ele caçador, refere igualmente a perda de cerca d200e mil caçadores em Portugal nos últimos dez anos, o que para o sector terá representando uma quebra estimada de 40% do volume de negócio e levado ao encerramento de cerca de 100 armeiros.
Artur Guérin lamenta que o sector das armas “seja mal visto” em Portugal, critica as “frequentes mudanças e diferentes interpretações das leis” ligadas ao sector e “as muitas taxas” que têm de pagar. “Agora querem criar uma taxa para o chumbo, que ainda prejudica mais”, referindo-se à taxa de dois cêntimos aplicada ao uso de cartuchos de chumbo anunciada pelo Governo para entrar em vigor este ano e entretanto adiada. Uma taxa que, por sua vez, o presidente da Fencaça considera ser “mais uma machadada no sector”, embora entenda “existirem outros problemas mais graves por resolver”.
Esta taxa, segundo Artur Guérin, poderá “agravar de forma significativa um problema já existente” e que considera “muito grave”: a compra de munições em Espanha para revender e usar em Portugal.
Guérin diz que basta ter carta de caçador válida para se poder comprar munições em Espanha, “onde são mais baratas e pagam menos IVA”, e depois as revender em Portugal “sem pagar impostos ao Estado português”.
Um prática “cada vez mais corrente”, que nomeadamente diz envolver “antigos armeiros, clubes de caça e grupos de caçadores”, acusando as polícias de “estarem a prestar pouca atenção ao problema, apesar de por várias vezes já terem sido alertadas” pela AAP. “Eu até sei de um talho, que não vou identificar, em que o proprietário, além de bifes, vendia cartuchos que ia buscar a Espanha”, revela.
Artur Guérin alerta ainda para o facto de estas munições compradas em Espanha “por caçadores encartados” poderem “colocar em causa a segurança nacional, pois podem ser usadas para outros fins que não a caça”.
Nove javalis e muita alegria
Na Herdade do Freixo e Monte de Cima, a montaria chega ao fim já depois da 13h30. Os caçadores voltam a juntar-se na casa de onde partiram para as portas. Vêm divertidos, brincam com as incidências da caçada, enquanto lembram outras jornadas passadas. Pouco depois, chega o resultado da montaria: nove javalis abatidos que, mais tarde, serão repartidos pelos caçadores.
“Hoje nem vi um porco. Nem um”, diz um dos caçadores. “Mesmo que so visses, o mais certo era teres a mira torta”, remata outro. O ambiente é agora de descontracção. Muitos repetem ao P2 que o importante “não é o que se caça”, mas “o convívio, a alegria, o estar no campo, o partilhar experiências”.
“Não há nada melhor que isto. É o convívio com os amigos, com a natureza, o belo Alentejo. Aqui esquecemos tudo”, diz o almirante Melo Gomes, 70 anos, antigo chefe do Estado-Maior da Armada, antes de partir para a missão final da montaria: o petisco. Naquele sábado foi um cozido à portuguesa, feito na herdade e com os produtos trazidos pelos próprios caçadores.
“A gente leva da vida a vida que a gente leva”, remata João Galinha Barreto.