Trump e marijuana, uma dupla ganhadora
O uso de marijuana conduz a uma dependência marcada, ou seja à necessidade incontrolável de continuar a recorrer ao seu uso, que se torna compulsivo. Ora, quem está dependente não é autónomo,
As eleições presidenciais nos Estados Unidos têm sido consideradas como tendo caracter sísmico, dado o resultado obtido por Donald Trump e, por arrasto, pelo partido que (relutantemente) o apoiou. Não se deverá, porém, esquecer que ao mesmo tempo foram sujeitas a votação, em 35 estados, 162 propostas legislativas sobre os mais variados assuntos, que vão da esfera da saúde ao uso de armas, do salário mínimo à educação bilingue.
De grande impacte foi a aprovação do uso legal de marijuana (ou cannabis) em sete estados, sendo que quatro legalizaram o seu uso para “fins terapêuticos” e três para consumo com “fins recreativos”. Uma vez que a Califórnia se conta entre estes últimos, e é o mais populoso, daqui resulta que cerca de 20% da população dos Estados Unidos passa a ter acesso livre a esta droga. A revista Time, de onde extraímos estes dados, acrescenta, com alguma candura, que esta medida contribuirá para desenvolver a produção industrial de marijuana (ainda muito artesanal) e poderá provocar um marcado aligeiramento da legislação sobre drogas.
Curiosamente, não assistimos, entre nós, a debate audível sobre estas notícias, embora existam, de há muito, correntes de opinião que advogam, precisamente, a legalização da marijuana e outros produtos contendo canabinoides. Será este silêncio devido ao facto de esses sectores, que abominam Trump, se sentirem embaraçados com a coincidência da decisão sobre a marijuana com a eleição tão contestada?
Dissemos que a legalização da marijuana naqueles estados tem grande impacte, ao, pelo menos em aparência, reforçar a posição dos abolicionistas, cujos êxitos se têm limitado a um país da América do Sul e a uma minoria de estados norte – americanos. Convirá, por isso, analisar, ao menos brevemente, os argumentos a que geralmente recorrem os advogados da legalização, e que se podem agrupar do seguinte modo.
As pessoas adultas e conscientes são livres e por isso podem proceder como decidam, desde que não prejudiquem terceiros. A cannabis não oferece riscos substanciais para os seus utilizadores. A cannabis tem propriedades terapêuticas importantes, na SIDA, no cancro, nas doenças degenerativas, etc. É absurdo criminalizar a produção e tráfico da cannabis, quando se permite a venda e consumo do tabaco e do álcool, bem mais nocivos A cannabis nem deve ser considerada como sendo uma droga, pois não provoca dependência.
Ora, uma análise atenta destas asserções, baseada em dados da muito vasta bibliografia científica acumulada desde há dezenas de anos, prova de forma irrefutável que todas as alegações referidas são incompletas ou redondamente falsas. :
A autonomia do consumidor, princípio fundamental para as propostas de legalização, não pode ser invocada com um mínimo de plausibilidade, neste caso. De facto, como de há muito se comprovou, o uso de marijuana conduz a uma dependência marcada, ou seja à necessidade incontrolável de continuar a recorrer ao seu uso, que se torna compulsivo. Ora, quem está dependente não é autónomo, não tem capacidade de escolher (continuar com a droga ou parar o seu consumo); poderá ter no início, mas nunca uma vez estabelecido o hábito. Mesmo nessas condições iniciais, não é legítima a escolha de consumir: ninguém é livre para se escravizar.
A noção de que a cannabis é uma droga branda, sem grandes inconvenientes, está largamente espalhada mas não passa de um mito. A cannabis contem princípios activos psicotrópicos de caracter alucinogénico e discruptivo da cognição e capacidade de avaliar situações, tomando decisões adequadas. O seu principal componente, o delta – tetahidro – canabinol (THC), encontra-se estudado até à exaustão e não restam dúvidas acerca da sua farmacologia e toxicologia. É verdade que a potência da marijuana (expressa em conteúdo em THC) varia de amostra para amostra e era, até há poucos anos, relativamente baixa (2 a 4%), pelo que os efeitos do consumo (em regra sob a forma de inalação do fumo de “charros”) eram relativamente pouco acentuados (sensação de leveza ou levitação, hilariedade, perda do sentido de orientação ou do tempo, irritação e congestão ocular, etc). Todavia, através de cruzamento ou até de biotecnologia de base genética, as folhas e extremidades da planta têm manifestado um constante crescimento em potência, atingindo o conteúdo em THC valores de 9 – 12%. Daqui resulta um aumento marcado dos efeitos psicotrópicos, como é óbvio.
A bibliografia científica refere várias reacções ou efeitos tóxicos devidos ao uso da cannabis. De facto, para além dos seus efeitos psicotrópicos imediatos, provoca em muitos dos seus utilizadores alucinações e ilusões. Um estado de anomia e indiferença, desistência de esforços ou objectivos com falência profissional, precipitação de sintomas esquizoides ou mesmo de esquizofrenia, metaplasia brônquica precursora de cancro do pulmão…
Há, de facto, relatos sobre efeitos positivos dos canabinoides em algumas situações de doença. Todavia, na sua maior parte são relatos não apoiados sobre metodologia rigorosa, pelo que se pode afirmar que não há provas ou evidência científica que justifiquem o alegado emprego terapêutico. Deve acrescentar-se que a indústria farmacêutica tem investido milhões no estudo, na síntese e na pesquisa farmacológica e terapêutica dos mais variados princípios activos canabinoides, derivados ou análogos, sem qualquer resultado positivo.
É verdade que o álcool é, provavelmente, a droga mais deletéria em relação à saúde pública e os malefícios do tabaco são bem conhecidos. Acontece que se encontram introduzidos nos hábitos da sociedade há muito tempo (no caso do álcool certamente há milhares de anos) pelo que o combate ao seu uso e abuso é difícil e exige tempo e determinação. Mas é absurdo defender que, dado já termos estes dois importantes inimigos da saúde pública devemos, por uma questão de justiça, introduzir um terceiro. Seria como defender que por já termos a SIDA e a hepatite devemos introduzir a ZICA!
Como acima referimos, esta asserção está errada. A cannabis induz dependência psicológica forte e por isso é muito justamente classificada como droga.
Reconhece-se geralmente que a política de descriminalização do consumo de drogas, iniciada por Portugal, representa uma correcta e inovadora atitude no que concerne ao problema, já que os consumidores são portadores de uma doença cerebral, a toxicodependência, e não criminosos. Mas sendo assim, como se poderá justificar a legalização da produção e tráfico da marijuana? Parece evidente que a qualquer Estado incumbe prevenir a doença e nunca tomar medidas que facilitem e difundam a mesma doença.
Sendo estas considerações baseadas na verdade científica, como entender que haja pessoas que pugnem pela legalização da cannabis, proponham as correspondentes leis e acabem por aprova-las? Em primeiro lugar, por não estarem esclarecidas acerca dos contornos reais da questão e entenderem que a legalização representa um passo em frente na luta ideologicamente inspirada que travam contra a proibição, a restrição, o interdito; e, por outro lado, devido à enorme pressão exercida pela poderosa indústria, nomeadamente a tabaqueira, que vê na marijuana um rentável sucessor do tabaco, cujo consumo tende a diminuir, à escala global. Nos anos 20 do século passado um fabricante apunha a imagem de um famoso cantor (de Reszke) às suas embalagens de cigarros, enquanto outros proclamavam os benefícios do tabaco nas doenças respiratórias (!); agora alegam-se não comprovados benefícios da cannabis em várias doenças. Tudo isto, aliado à incompreensível e infundada atitude tolerante da sociedade em face a esta droga pretensamente leve explicam certamente estas decisões legislativas.
Não se pode continuar a ignorar que a marijuana representa um verdadeiro risco para a saúde pública e individual e uma ameaça para a sociedade (até pelo facto de contribuir poderosamente para a sinistralidade rodoviária, como um estudo divulgado há dias neste jornal revelou). Uma ameaça também para a liberdade económica pois, como fez notar João Goulão, um reputado especialista nesta matéria (citado por este jornal), a abertura do mercado da cannabis conduzirá ao domínio, pelo grande capital, de toda a comercialização da cannabis. O mesmo especialista verberava a incompreensível tolerância predominante na sociedade em geral, que acha horrível que um filho se torne heroinómano, mas desculpa que se entregue à marijuana. Não, não precisamos da legalização e aceitação passiva de mais um flagelo social!
Professor Catedrático de Farmacologia e Terapêutica (aposentado) na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto