Decorem este nome: Loyle Carner
Uma das grandes revelações da música inglesa dos últimos anos a merecer a maior das atenções.
O hip-hop inglês nunca foi pródigo em nomes memoráveis (desde logo por ter sido sempre, de alguma forma, “abafado” pelo que se faz nos EUA, berço do género) e a própria música inglesa dos últimos anos, com algumas excepções, também não tem andado particularmente famosa (curiosamente, um pouco como acontece no cinema, com as pontuais excepções de Leigh, Loach, Greenaway e pouco mais). O aparecimento de Kate Tempest, Speeche Debelle ou do saxofonista-rapper Soweto Kinch (Rejjie Snow, também referenciável, é irlandês) reavivou, pontualmente, a situação, mas tem faltado quantidade e consistência, algo que, permanente ao longo do tempo (desde os anos 80 e da Buffalo Goals de Malcom McLaren), explica que a expressão “hip-hop inglês” possa soar a boutade para muitos ou provocar um desinteressado encolher de ombros. É claro que há Monie Love, Slick Rick ou MF Doom, mas, não por acaso, todos eles fizeram carreira nos EUA (tal e qual, no cinema, o fizeram Boyle ou Nolan), contando-se pelas mãos aqueles que, criando a partir da sua terra natal, alcançaram significativa expressão além-fronteiras e, mesmo nesse caso, quase sempre com carácter episódico (pensamos nos Stereo MCS, nos Urban Species e, posteriormente mas com particular brilho, Roots Manuva ou The Streets).
Circunstância estranha se pensarmos que, do outro lado do oceano, o hip-hop tenha feito o seu caminho em larga escala até se perfilar, actualmente, como a música mais escutada nas plataformas digitais, e sobretudo quando o idioma é o mesmo e dotado de uma expressão, hoje mais do que nunca, verdadeiramente global. Uma das explicações possíveis – além da referida falta de artistas válidos e, aspecto nada despiciendo, da vaga legal anti-sampling que varreu os estúdios ingleses pelos anos 90 – reside na fortíssima cultura bass instalada, desde meados dos nineties, no Reino Unido, e no âmbito da qual numerosos artistas se serviram do hip-hop e da electrónica como plasticina para moldar ou fundir outros géneros como o acid jazz, o trip-hop, o drum ‘n’ bass, o dubstep ou, claro, o grime, este último dotado actualmente de uma dimensão mundial (é ver o fenómeno Skepta) que Dizzee Rascal, um dos seus percursores, talvez nunca tenha sonhado. É, por isso, neste relativo estado de anorexia do hip-hop inglês que se saúda entusiasticamente o surgimento de Loyle Carner, rapper londrino que, depois do interessante EP A Little Late (lançado de forma independente em 2014), confirma agora todas as expectativas geradas em seu redor, ele que proporcionou um daqueles felizes encontros entre crítica e público, congregando encómios pelas suas letras introspectivas, poéticas e polidas, sempre apoiadas em instrumentais de sabor soul (que tão bem combina com o timbre da sua voz), cardápio que inclusivamente o levou, logo em 2015, a tocar em Glastonbury. O seu álbum de estreia segue na mesma linha, podendo ser visto, de certo ângulo – e de par com alguns trabalhos do também londrino Funky DL –, como o álbum de hip-hop americano (e nova-iorquino) dos anos 90 que o hip-hop inglês nunca teve (Ain’t Nothing Changed, talvez o único momento mais sombrio do disco, traz à memória, pelos sopros e pela atmosfera melancólica, a Lifesaver do Guru de Jazzmatazz Volume II: The New Reality de 95).
Não por acaso, aliás, se lhe ouvem citações de Jay Z ou Ol’ Dirty Bastard na rockeira NO CD, da qual Stars & Shards (storytelling sobre um bad boy de classe média que começa a vender erva) replica o groove dançante (embora, verdade seja dita, nem seja de rappers dessa linha que Carner está mais próximo, mas antes de alguém como os Pharcyde, citados em The Seamstress). Carner é, por isso, e num certo sentido, um rapper de linhagem clássica, nova-iorquina, marca favorecida pelo trabalho de Rebel Kleff, produtor (embora também rime em No Worries e em NO CD) responsável – juntamente com outros nomes, como o do virtuoso multi-instrumentista Tom Misch, que produz e canta na deslumbrante Damselfly – pelos instrumentais adocicados, delicados, que compõem o álbum, os quais, podendo soar demasiado “limpos” a alguns, são, quanto a nós, efusivamente de aplaudir (less is more) num tempo em que, no hip-hop e suas variantes (sobretudo no trap e no grime), se assiste a um fenómeno de overpoduction e de ruído, muito ruído, tantas das vezes a mascarar, aliás, uma gritante carência criativa daquilo que é dito (“O beat matou-te!”, dizia Sam The Kid há uns anos). Uma boa forma de nos introduzirmos ao longa duração do londrino (literalmente, já que, em contracorrente com a tendência actual, o álbum estende-se por 15 faixas) é olhar para a capa do disco, na qual encontramos, no backyard de uma casa londrina, Carner, de sorriso petiz, rodeado da família e amigos. Como em todas as fotografias de família, a presença de uns é o reflexo da ausência de outros, e, por isso, onde a mãe de Carner é figura omnipresente ao longo do disco (são dela, de Jean Coyle-Larner, as comoventes palavras que se ouvem na faixa de título-trocadilho Sun of Jean: “He used to draw anything / Fantastical creatures with ferocious fangs / And now he draws with words / and I find lyrics on my till receipts and bills”), o seu pai biológico é uma clareira de mágoa que o músico volta a explorar em Isle of Arran (em vez disso, fez já uma declaração de amor ao seu falecido padrasto em Cantona, faixa do primeiro EP), potente e inspiradora faixa de abertura onde, depois do sample gospel The Lord Will Make A Way (do álbum de 1980 do S.C.I. Youth Choir), Carner entra deliberadamente em contradição ao renegar a interferência divina.
Isto tudo para chegar ao universo profundamente familiar, afectivo, de “comunidade” ou “vizinhança” (Mrs C é enternecedora evocação, tudo leva a crer, da sua avó) que dá o carácter predominantemente celebratório do álbum, nas suas letras ecoando pequenas histórias, dores, ilusões, perdas e epifanias do dia-a-dia (nisto, na dimensão “familiar” e também no cunho soul da sua música, assemelhando-se a J. Cole e ao seu último álbum 4 Your Eyez Only), afinal de contas, as que verdadeiramente contam para as nossas vidas (Trump e Putin são ominosos, mas, no final do dia, tudo ganha outra perspectiva se nos morre um amigo ou familiar próximo). “Mean it in the Morning”, juntamente com a spoken word de 44 e The Seamstress, perfaz um poético tríptico sobre o amor e a solidão, amor que, na sua manifestação não-romântica, é novamente abordado na lindíssima Florence (notável a voz de Kwes no refrão), canção-desejo sobre a irmã mais nova que Carner nunca teve (quanta beleza nisto…). Fazendo um trocadilho com a faixa que dá título ao álbum (que, cantada ao som unicamente de uma guitarra, destoa completamente do resto do disco), apetece dizer que o “ontem” do hip-hop inglês está definitivamente para trás das costas e que Carner, ainda tão novo, representa já o que de melhor existe no presente – “Every yesterday it was a nightmare for someone / The days they count are coming and the best ones have begun”. Dito isto, só mesmo a desatenção ou um certo comodismo poderão explicar que os promotores portugueses (Primavera? EDP Cool Jazz?) não o tragam cá a breve trecho.