Porta-seios

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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O tempo urge, a noite vai longa, a vida é breve. Como o óptimo é inimigo do bom, mais vale responder agora a um simpático repto – e digo repto intencionalmente, já que hoje em dia tudo é desafio, mesmo aceitar cargo vantajoso por convite directo – de uma atenciosa leitora, que fez o favor de me escrever, telintando-me palavras escolhidas, entre as quais revelo estas: “Parece-me que, tendo andado a humanidade tantos séculos a partir pedra, limar arestas, refinar modos, melhorar convívios entre povos e indivíduos, a instruir-se, a educar-se e quando parecia que, finalmente, a modernidade que vivemos seria a recta de aproximação à antevista meta, continuamos a assistir à persistência da brutalidade, da boçalidade, da lei do mais forte”.

Em silêncio, anuí. Via-se que a estimável leitora seguia o noticiário internacional e fazia-me confidente da sua meditação sobre as enormidades multiformes que todos os dias vemos, ouvimos e lemos emergir do além-mar. E quando me interrogava já sobre em que qualidade julgaria a leitora que lhe poderia valer para alterar o rumo dos acontecimentos mundiais, surpreende-me, por seu turno, ao acrescentar: “Já reparou em que mãos estamos no ramo da comercialização da roupa interior? Uma vez que não intervém a ASAE nesta barbaridade comercial, não intervém a Deco em defesa do consumidor apoucado, resta-me pedir-lhe que branda a sua pena aguda a meu favor e de todas as pessoas que se sentem envergonhadas quando, dirigindo-se a lojas aparentemente bem providas, bem equipadas, bem decoradas, bem geridas, descobrem que nem fabricantes nem distribuidores nem gerentes nem funcionários se deixam permear pela delicadeza das peças que comercializam, designando-as por palavras portuguesas correctas, expressivas e distintivas.”

Por esta não esperava eu. Mas já que aqui chegámos, invoquemos o Condestável, Vasco da Gama e, em geral, toda a alma dos que venceram o Adamastor e, todos juntos, sirvamos de apoio, primeiro, a mim, e, depois, à autora da corajosa missiva, que continua assim:

“Entra-se numa loja e, sem se fazer alarde, quer-se comprar um conjunto de roupa interior em duas peças. Se me dirigir a uma empregada e lhe pedir um porta-seios, ela arregala os olhos, pergunta-me ‘como?’, outras vezes ‘o quê?’, mas nenhuma, até hoje, sabia o que é. A resposta mais educada que tive foi: ‘E o que é um importa-selos?...’ A mais inconveniente, à minha pergunta de ‘importa-se de me dizer se tem porta-seios para o meu tamanho?’, foi: ‘Não, não me importo nada’. E ficou a sorrir para mim durante três minutos. Não cheguei a perceber o que ela queria, mas achei mais prudente afastar-me. Ora, protesto por este tratamento. Estou a falar português em Portugal e não deveria ser compreendida apenas quando tento falar em francês truncado. ‘Ah, sutiã!... A senhora quer um sutiã!...’ Não eu não quero um sutiã! O que é um sutiã (ou sutiá)? Sutiã é a transcrição fonética de ‘soutien’, que não quer dizer sutiã, quer dizer apoio ou amparo. Falta-lhe o destino do apoio e do amparo. A palavra francesa não é ‘soutien’, é ‘soutien-gorge’. Então qual é a lógica disto? É como entrar numa loja nas Caldas da Rainha e pedir uns suspensórios em búlgaro. Procuro fazer passar a minha mensagem: ‘Não quero um ‘soutien’, nem sequer um ‘soutien-gorge’; quero um porta-seios! E não saio daqui enquanto não me arranjarem um, mesmo que seja pequeno de mais!...’ Por esta altura, costuma fazer-se luz no espírito da funcionárias e lá aparece o que elas não sabiam o que era. Quando não, saco do meu dicionário da minha bolsa (dizem-me que não é bolsa, é carteira), abro na página respectiva e meto-o debaixo do nariz da funcionária mais recalcitrante (tal como todas as mulheres, em geral, nunca saio de casa sem um dicionário de Português, a Constituição da República e o Código do Processo Civil).”

Ah, está finalmente explicado o peso da bolsa da minha mulher, que só é inferior ao da mochila escolar da minha filha mais nova e a uma arca de porão de navio cheia de presuntos com osso! Continuo a reproduzir:

“Mais calma, pronta a examinar até que ponto chegou o caos linguístico na indústria têxtil (que o Acordo Ortográfico de 90, tal como tudo o que realmente interessa, não resolveu), declaro-me interessada em adquirir um conjunto a condizer. ‘Ah, a senhora quer a cueca?...’ Fico pré-possessa: ‘A cueca?!... Mas o que será uma cueca? Será metade de umas cuecas?...’ E por que hei-de eu querer metade de umas cuecas – que, sejamos claros, são peça de roupa interior masculina – para fazer conjunto com um porta-seios extraído a ferros das entranhas daquele maldito estabelecimento para turistas?... Será possível que funcionárias profissionais, mesmo que a recibos verdes, não saibam a diferença que existe entre umas cuecas e umas calcinhas?... Que confusão, que desvario, que ignorância, quando estes casais de agora, voltando da lavandaria automática do bairro, são chamados por quem lá ficou: “Desculpe, ficaram aqui umas cuecas!...’ E eles, inocentes como os primeiros índios do Brasil, não sabem se são dele ou se são dela... Parte-se-me o coração! Que país este, que época, que atentado ao bom senso, ao bom gosto e ao erotismo sobrevivo aos programas tardios de televisão.

“As funcionárias rodeiam-me e, com a assistência de um chá de tília e umas bolachas Maria, tentam convencer-me de que está tudo bem e que, em consequência de uma revolução qualquer, as mulheres é que usam cuecas, não os homens, que passaram, por seu turno, a usar ‘boxers’ ou ‘slips’, não lhes fazendo confusão nenhuma (às meninas da loja) que 'boxers' queira dizer ‘pugilistas’ e ‘slips’ queira dizer combinações, que é coisa que as mulheres usavam debaixo dos vestidos e a que chamavam, certamente por graça, combinações. Ou seja: os homens continuam a usar cuecas, umas com perna, outras sem perna, mas não se pode dizer assim, sob pena de nos caírem os parentes na lama ou nos cancelarem o cartão de crédito.

“Sem ânimo já, após a compenetração de um tal desconchavo nas comunicações humanas entre elementos de uma mesma comunidade linguística, tenho apenas tempo para, levada em braços, perguntar se têm meias-calças, a que, em português comercial, chamam collants e, ao passarmos diante de uma cabina de provas encimada por um letreiro que diz ‘Provador’, se sabem que provador quer dizer, em português, pessoa que prova a comida do amo para impedir que ele seja envenenado. Estranho lugar para terem alguém com essa função, quando o que era preciso, como de pão para a boca, era um fiscal que multasse alguém, forte e feio, por aquele bonito serviço na tradução do espanhol ‘probador’. E se multasse, que o fizesse também a quem calcula a largura das cortinas dessas cabinas. Sim, porque embora eu não seja especialmente pudica, gosto de fechar o lado direito sem que o esquerdo fique exposto, num jogo frustrante que imita o do cobertor curto que se puxa para a cabeça, descobrindo os pés.”

A leitora pediu-me anonimato. Não costumo conceder, mas abro uma excepção: porque escreveu pudica sem acento e por razões humanitárias, pois não está posta de parte a possibilidade de as suas opiniões – da sua total responsabilidade, não sendo necessariamente os pontos de vista defendidos pelo autor desta crónica nem seus familiares directos até à terceira geração e ramos colaterais – serem tomadas como um ataque pessoal, directo ou indirecto, ao actual Presidente dos EUA ou a indivíduos com penteados inacreditáveis e cérebros presos por arames, no todo ou em parte (riscar o que não interessa).

Correio premente

De Átila Grande Guerra, Caldas das Taipas: “Caro Senhor: Confesso que ainda me estou a rir das suas facécias, o que me dificulta imenso acertar nos pontos certos do teclado para lhe dizer o que quero mesmo dizer, descontadas as limitações da liberdade, que nunca é absoluta, mesmo para os filhinhos de papá rico da zona Parque das Nações-Cascais-Sintra, embora o dinheiro ajude bastante, nem que seja para pagar acordos extrajudiciais após uma ida de rotina a uma discoteca. Queria dizer-lhe qualquer coisa importante que me fez escrever-lhe, mas entretanto esqueci-me. Eu sei que é ridículo, mas o Marques Mendes também é ridículo na sua falsa convicção de comentar na televisão o que sabe e o que não sabe, de desdizer, sempre que precisar, o que disse quando tinha responsabilidades políticas, mas farta-se de ganhar dinheiro. É mais uma lição para aprendermos sobre as competências especiais necessárias a um indivíduo para se tornar milionário.”

Não tem importância. Quando se lembrar do que queria dizer, torne a escrever-me. Desse modo, mesmo que volte a escapar-lhe o que tinha em mente, não deixará de partilhar comigo – e, via crónica, connosco – o que o preocupa no momento. O que me preocupa neste momento é a última porção do seu comentário poder ser tomada por alguma alusão a algum Presidente de algum país que possa ter o poder de proibir a concessão de visto para entrada no seu país de liberdade ao autor destas crónicas e à sua família, por três gerações, incluindo ramos colaterais, salvo seja...

De Pedro Grande Guerra, Campo Grande, Lisboa: “Lá descarrilou a coisa... Eu até começava a achar-lhe graça, mas lá tinha que vir, no Correio Premente agregado à sua última crónica, fazer comparações descabidas com o Eusébio. No Eusébio não se toca. Para quê passar dessas crónicas prosaicas para o terreno do sagrado? Creio em um só jogador, avançado todo-poderoso, criador do céu aqui na terra e de todas as fintas visíveis e invisíveis. Creio em um só senhor das estatísticas, filho único do Benfica, nascido para ser o melhor jogador de todos os séculos: deus dos seus, luz da Luz, ouro verdadeiro de Bota de Ouro verdadeiro, contratado não raptado, com o substancial Coluna como pai, que o ensinou como as contas eram feitas. E por nós, sócios, e para nossa salvação, veio de Moçambique. E treinou-se com o Bella Gutman no seio do Glorioso e se fez homem. De novo há-de vir como no tempo do Otto Glória para ensinar estes vivos que parecem mortos e o seu reino não terá fim. Portanto, corrija lá essa provocação de fazer comparações com meros mortais que ninguém reconhece.”

Pelo menos não se pode falar em fanatismo nem em parcialidade, já que são palavras totalmente inadequadas para tentar interpretar o que se acabou de respigar. Mas também não vale a pena procurar as certas, porque tenho um bolo de mármore no forno e não queria que se queimasse.

De Frei Albino das Neves, Mosteiro de Broalhos, Gondomar: “Caro Senhor, aceite os meus cumprimentos. Sou seu admirador, mas na questão de perdurarem no tempo certos termos da medicina sob forma escrita anómala, por certo não lhe ocorreu como causa, para além de traduções espanholas dos manuais pelos quais gerações de alunos estudaram, a mais corrente persistência de grafias anteriores à Reforma Ortográfica de 1945. Parece-me ser o caso de “crâneo” ou “cráneo”, em vez de crânio. Não será?”

Caro Leitor, agradeço-lhe a paciência e a amabilidade. Bastou-me salvar da humidade da minha estante a edição de 1891 do Dicionário Morais (em dois volumes) para confirmar que tem razão. Lá está: “cráneo”.

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