Trump e a imprensa num jogo do gato e do rato
Para os media, o maior risco é o activismo anti-Trump fazer perder o sentido da informação equilibrada. É essa a armadilha. Não é certo que a imprensa não se deixe cair nela.
1. Donald Trump faz as manchetes dos media. Todos os dias há uma torrente de notícias sobre Trump, sejam assuntos com substância política ou fait-divers. É notícia pelo que disse, pelo que não disse, pelo que fez, pelo que pretende fazer, ou não fazer, por quem nomeou ou por quem demitiu. É assim desde a eleição de 8/11/2016. Com pouco mais de uma semana no poder, é-nos é servida, diariamente, uma boa dose de Trump: muros na fronteira com o México, gasodutos que atropelam preocupações ambientais, uso de "fogo contra fogo" (leia-se de técnicas de tortura dos que terão praticado, ou conspirado para praticar, actos de terror) e veto à entrada de refugiados e migrantes de alguns países islâmicos. Esta presença constante, sempre envolta em polémica e contestação, é má para Trump? Descredibiliza-o e limita-lhe a margem de manobra política, podendo levar ao afastamento ou impeachment, tal como ocorreu com Nixon? (Parece ser este o objectivo último dos seus opositores mais acérrimos.) A resposta, à primeira vista, sugere essa possibilidade: numa semana, segundo uma sondagem da Gallup, a taxa de desaprovação ultrapassou simbolicamente os 50% — um record para um presidente estreante, que nem sequer teve, ou quis ter, estado de graça. Mas o caso está longe de ser linear. Trump não é um político convencional e tem pouco a perder. Atropelar a maioria das convenções e valores das elites cosmopolitas é a sua estratégia de poder.
2. A sensação de enxurrada de ordens executivas nos primeiros dias no cargo de Presidente dos EUA provocou grande consternação e indignação nos media e na maioria da opinião pública, pelo menos daquela que é conhecida. Não foi um acaso. Tudo indica que houve uma intenção de choque deliberada. Assinou múltiplas ordens executivas todas bem publicitadas (algumas com um ar atabalhoado, seja por falta de preparação adequada ou para criar deliberadamente confusão e polémica). Quis logo pôr em prática as promessas da campanha eleitoral. Para os muitos críticos, fez coisas condenáveis, hediondas mesmo. (Na versão mais simpática é um amador no cargo que pensa que está a gerir empresas). Para os seus apoiantes, Trump é um homem de palavra e não os abandona. Ao contrário dos políticos de establishment — cuja crítica usual do cidadão é que fazem promessas e não as cumprem —, Trump apresenta-se com uma espécie de herói anti-establishment. Não só cumpre como vinga os “deploráveis” — a América ordeira e “silenciosa” que os media não representam, ou só representam de forma distorcida. Não serão mais ridicularizados e condenados a priori, pelos seus valores e visão do mundo. Agora detêm o poder e têm quem os defenda. Mais: o seu programa é mesmo para pôr em prática. A vida política deixará de ser dominada por uma elite moralmente corrupta e sem patriotismo. Os seus valores serão trucidados.
3. Trump podia ter adoptado um estilo mais próximo de um republicano conservador convencional. Várias das medidas que promulgou, com grande estrondo mediático, são medidas clássicas do Partido Republicano no poder. É o caso do corte de financiamento a programas de assistência internacional que incluam o aborto. Ironicamente, é também o caso muro com o México. Nem sequer é uma ideia original de Trump. Existe já, de uma forma ou de outra, em partes significativas da fronteira Sul. A grande diferença é que, no passado — quer, com os democratas, quer com os republicanos —, era um assunto tratado com discrição, fora do olhar da opinião pública. Trump deu-lhe a maior visibilidade possível, reiterando a intenção de o construir com uma retórica agressiva: “o México irá pagar o muro”. A generalidade da imprensa vê aí uma afronta constante aos valores de uma boa sociedade, aos mexicanos e a si própria. Mas Trump parece achar que pode ganhar com isso. Com a sua base de apoio permanente sob ataque, espera mantê-la galvanizada e a cerrar fileiras em torno de si. Para além disso, provocar escândalo e estar sujeito a sobre-exposição mediática parecem agradar-lhe. Não é apenas uma questão de ego e da sua obsessão de ser o centro das atenções. É mais do que isso. O efeito da sua contínua presença nos media, ainda que quase sempre pela negativa, poderá levar a um quadro mental colectivo de saturação que gere uma sensação de “normalidade”. Chegando a esse ponto, poderá ser visto como um novo estilo “carismático” de fazer política. Abominável para uns, heróico para outros.
4. Estamos perante um perigoso jogo político do gato e do rato. A imprensa procura apanhar Trump em falso e descredibilizá-lo o mais possível, levando à sua queda. Provavelmente, tenta reeditar o seu épico momento de glória, quando ocorreu a revelação escândalo Watergate, nos anos 1970. Na altura, levou à demissão de outro presidente republicano: Richard Nixon — que ficou politicamente encurralado devido ao provável afastamento do cargo por impeachment. Trump, por sua vez, quer condicionar e descredibilizar, o mais possível, a imprensa. Vê-a como principal força de oposição (o “partido dos media”), e não o Partido Democrata, que ainda não se recompôs da derrota de Hillary Clinton em 8/11/2016 e está à deriva, sem liderança. Como já referido, as provocações diárias são uma peça dessa estratégia. Levar a imprensa a uma sobre-reacção às suas declarações e medidas — sobretudo nesta fase inicial —, que permita criar a ideia de mau perder, de um julgamento precipitado, de total perda de neutralidade e de sentido de informação. O alvo preferencial são os media liberais, no sentido político do termo, ou seja, tidos como progressistas (CNN, New York Times, Time, Washington Post, Huffington Post, etc.). Usualmente são vistos pelo seu eleitorado com a suspeição de serem pró-democratas. Com o confronto permanente, a suspeição adensa-se. Para os media, o maior risco é o activismo anti-Trump fazer perder o sentido da informação equilibrada, de levar à saturação e perda de credibilidade no público em geral. É essa a armadilha. Não é certo que a imprensa não se deixe cair nela.
5. Aqui entra uma outra faceta da questão. A da relação de amor-ódio da imprensa com a Internet e as redes sociais. Na imprensa dos últimos meses as redes sociais e a Internet foram fustigadas e vilipendiadas como estando uma origem da pós-verdade na política e tendo aberto caminho a Trump para o poder. Mas há pouco tempo atrás eram objecto de elogios generalizados. Durante a primeira campanha eleitoral que levou Barack Obama ao poder, em 2008, eram idolatradas. Eram meios de progresso, de empoderamento dos cidadãos, de formação e difusão de ideias de uma boa sociedade. Esta versão optimisticamente ingénua continuava em 2011, com a “Primavera árabe”: o Twitter e o Facebook eram instrumentos que derrubavam ditadores. Depois surgiu Julian Assange e as revelações dos WikiLeaks: um ícone da liberdade de imprensa e transparência tinha aparecido. Tudo isto até Trump ganhar as eleições de 8/11/2016: aí passaram a ser a fonte de todos os males. Mas, agora, com a onda de protestos anti-Trump a ser convocadas pelas redes socais, e a mobilizar gente para a contestação, voltaram a ser boas. Estas mudanças abruptas de percepção sobre a Internet e a redes sociais — ao sabor dos resultados das acções políticas —, não beneficiam a imagem dos media junto do público. Alimentam os argumentos dos seus detractores, que os acusam de não estarem interessados em fornecer uma informação objectiva e equilibrada, mas em promover a sua agenda política e visão do mundo.
6. Por último, o jogo do gato e do rato entre Trump e os media norte-americanos tem antecedentes que deveriam levar a reflectir profundamente sobre como chegamos até aqui. Nos anos 1980, com o livro The Art of the Deal / A Arte da Negociação (1987), teve o seu primeiro grande momento de notoriedade mediática. Assinado em parceria com o jornalista Tony Schwartz — aparentemente, o seu "escritor fantasma" —, ajudou a criar o mito de um negociador imbatível e homem de negócios que torna o sonho americano realidade. Agora Schwartz fez mea culpa. Terá criado um Frankenstein. Na última década, o programa de Mark Burnett, The Apprentice / O Aprendiz, da NBC, reforçou imagem e popularidade de Trump. Ironicamente, apesar de os media e o show business estarem geralmente próximos do Partido Democrata, são os republicanos que mais beneficiam da "sociedade do espectáculo". Primeiro foi Reagan — um antigo actor de filmes de Hollywood — que foi governador da Califórnia e Presidente dos EUA. Depois foi Schwarzenegger, outro actor de Hollywood, a chegar ao cargo de governador da Califórnia (agora substitui Trump no programa The Apprentice). Quanto a este último, a sua ascensão ao poder continua a deixar muitos incrédulos e sem perceber como foi possível. É bom que percebam: Trump como político não seria possível sem o Trump empresário do “sonho americano” e do entretenimento que os media criaram.