Há cada vez mais música na arte de Wolfgang Tillmans
Nos anos 1990 queria ser músico mas acabou por se transformar num dos artistas mais afamados do nosso tempo fotografando ambientes com música. Agora o alemão Wolfgang Tillmans canta, toca e lança discos e prepara uma exposição na Tate Modern onde a música será relevante.
Antes de se tornar num dos rostos mais conhecidos da arte contemporânea, através da fotografia, o alemão Wolfgang Tillmans ponderou a hipótese de seguir um percurso pela música. Na adolescência quando tinha urgência em se expressar era através da música que o impulso se manifestava. Depois, de alguma forma, foi perdendo a confiança, e a fotografia foi determinando a sua vida, embora a paixão pela música nunca tivesse desertado, esclarecia há semanas em entrevista.
É uma história muitas vezes repetida. Um criador entusiasma-se com uma área, por circunstâncias várias acaba por alcançar credibilidade noutra, mas é como se essa segunda escolha nunca perdesse o contacto com a primeira. Não é por acaso que o alemão de 48 anos se afirmou como um dos mais importantes fotógrafos contemporâneos nos anos 1990, captando o sentido de comunidade, a comunhão dos corpos e o ritual de energia, da então efervescente cultura da música de dança desses anos.
Ainda hoje a música que lhe interessa ou está directamente conotada com as divagações dançantes nocturnas, do house ao tecno, passando pelas sucessivas vagas de recriação do pós-punk, ou com novos vocabulários electrónicos, como aqueles que têm vindo a ser desenvolvidos por figuras como Arca, Kingdom ou pelo contingente da editora Fade To Mind de Los Angeles (Dawn Richard, Kelela, Fatima Al Qadiri ou Nguzunguzu).
Já as suas imagens tanto revelam a cultura das margens do final dos anos 1980 e 1990, da irrupção da música acid-house à construção de diversas identidades minoritárias, como se torna motivo de contemplação, em imagens abstractas de uma beleza redentora. Foi o primeiro fotógrafo a ganhar um dos mais importantes galardões da arte contemporânea europeia – o Turner, em 2000 – e o ano passado, entre Janeiro e Abril, o Museu de Serralves recebeu Wolfgang Tillmans: no limiar da visibilidade, uma das mais significativas exposições do calendário português de 2016.
Ao longo do tempo nunca perdeu de vista que a música e a boémia nocturna muitas vezes podem funcionar como incubadoras de ideias que transformam o mundo, documentando a cena dos clubes de Berlim, numa congregação onde pessoas, conceitos, som e arte forçam novas dinâmicas, criam possibilidades utópicas, participando num fluxo cultural.
Um álbum visual
“A noite foi uma parte importante da minha vida e ainda é”, dizia ao PÚBLICO em Novembro de 2015. “Tem a ver com comunidade, com estarmos juntos. É sobre o que é a vida, aquilo que gostamos e tiramos dela. O que sair à noite e dançar tem de bom é a parte irracional. Não segue uma linha de pensamento lógico ou racional e ainda assim é algo extremamente inspirador para mim. Tive tantas ideias interessantes para o meu trabalho que vieram dessas experiências. É um momento utópico. A noite tem de facto relevância cultural. Não é apenas entretenimento.”
Apesar de nunca se ter distanciado da música, não prescindindo de realizar ocasionais sessões DJ ao longo dos anos, foi depois de uma conversa em 2014 com o amigo Chris Lowe, dos Pet Shop Boys, que resolver revisitar as suas raízes na música de dança. O resultado foi um primeiro EP (2016/1986) de cinco temas em nome próprio, editado em Junho passado, contendo o hipnótico single Make it up as you go along. Dois meses depois regressou com Device control, o tema que inesperadamente encerrava Endless, o álbum-visual de Frank Ocean, o cantor soul preferido de muita gente, que havia conhecido meses antes.
E eis que há semanas surgiu, de surpresa, um álbum-visual da sua banda, os Fragile, que está disponível no YouTube. That’s Desire / Here We Are, assim se chama o objecto audiovisual conta com o rapper Ash B., a modelo transexual Hari Nef, o actor Bashir Daviid Naim e o próprio Tillmans, entre outros. Com a duração de meia hora, foi filmado em Los Angeles e nele vemos os performers (modelos, actores e músicos) a improvisar isoladamente, suando e contorcendo-se numa sala vazia, iluminada por filtros coloridos, ao som da música dos Fragile, com a voz de Tillmans envolvida por sintetizadores e por princípios rítmicos que devem tanto ao rock como às electrónicas, com alusões aos Suicide ou LCD Soundsystem.
De alguma forma é o regresso à estética despojada que o consagrou nos anos 1990, quando retratou a cena cultural nocturna de Berlim, embora também esteja presente a construção de imagens abstractas. Num primeiro olhar, tal como nas suas fotos mais conceptuais, não se vislumbram marcas de denúncia política, mas elas estão lá, ou não estivéssemos a falar de alguém que se envolveu directamente na campanha pela manutenção do Reino Unido na União Europeia, tendo uma visão crítica da subordinação da política ao capital, argumentando que vamos caminhando, adormecidos, em direcção ao abismo.
A sala vazia que se vislumbra no vídeos e as luzes coloridas aludem à angústia destes tempos conflituosos, mas a câmara também fixa a pele dos actores, mergulhando em decotes e axilas, numa espécie de carnalidade industrial, com os performers asfixiando entre quatro paredes. Nestes tempos de Brexit e de Trump é preciso resistir e protestar, afirmava ele recentemente, acrescentando no entanto que não se deve renunciar ao prazer e ao amor, inscrevendo-os na forma como nos afirmamos.
Na música agrada-lhe a imaterialidade, os códigos de comunicação imediatos, a performance e as palavras. No caso dos Fragile também se contentou em trabalhar em grupo, ele que costuma operar solitariamente. No total, na companhia de três músicos, criaram seis canções que servem de síntese da sua relação com a música – havendo até um tema (Fast lane) recuperado de uma cassete que havia gravado em 1986 – com Tillmans a optar por um álbum-visual como forma de criar unidade, numa altura em que muita gente só consome faixas avulsas. Na sua visão esse tipo de lançamentos (como fizeram Beyoncé ou Frank Ocean) constitui um antídoto que contraria o universo cada vez mais fragmentado da música.
Quando avançou o ano passado para as edições discográficas, embora olhando para a música como uma extensão natural do seu trabalho artístico, Tillmans não sabia que tipo de reacções iria despoletar. As respostas têm sido positivas, de tal forma que o renovado interesse pela música irá ter novas consequências numa grande exposição na Tate Modern de Londres, que inaugura a 15 de Fevereiro e se prolongará até 11 de Junho, contendo retratos, fotografias abstractas, instalações, publicações ou vídeos.
E haverá também espaço para expor o seu actualizado interesse pela música, com uma sala que proporcionará aos visitantes a escuta de pop ou música de dança com uma qualidade assinalável – a ideia é dar espaço a que música pop possa ser apreciada como arte. Entre as suas escolhas sabe-se que estarão os Colourbox, banda dos anos 1980 que pertencia aos quadros da 4AD e que seria uma das precursoras das linguagens dançantes. Haverá também uma série de instalações com música dele próprio e de outros nomes que lhe são próximos e, em Março, Tillmans tem carta-branca para comissariar dez dias de eventos e música ao vivo.
No início do seu percurso queria ser músico mas acabou por se transformar num dos artistas mais afamados do nosso tempo fotografando ambientes com música lá dentro. Agora o artista vai-se reinventando através do músico que continua a subsistir dentro de si.