Estágios no fisco já duram há dois anos e não têm fim à vista
Finanças não se comprometem com data para fim de um estágio de 900 inspectores tributários, iniciado em 2015. Provedor de Justiça já recebeu queixas. Representante dos inspectores fala em “inércia” da AT.
A lei só prevê um ano de estágio, mas já passaram dois anos desde que 886 inspectores tributários estagiários estão em “período experimental” no fisco. Os formandos entraram este mês no terceiro ano de formação e não sabem quando é que o curso vai terminar. Nem o próprio Ministério das Finanças consegue apontar uma data para o fim de um processo que, nas palavras do presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Inspecção Tributária e Aduaneira (APIT), Nuno Barroso, se arrasta por “inércia dos responsáveis” do fisco.
Em condições normais, os estagiários aprovados já teriam entrado efectivamente na carreira de inspector, mas o processo tem-se prolongado indefinidamente. Os atrasos estão a gerar desconforto interno, ao ponto de o caso já ter motivado queixas ao Provedor de Justiça. Ao PÚBLICO, José de Faria Costa confirmou ter recebido reclamações que “deram origem a um procedimento de queixa”. Sem se pronunciar sobre o caso, nem especificar se foram pedidos esclarecimentos ao Ministério das Finanças, o Provedor fez saber que “o tratamento das queixas, nesta fase, envolveu diligências instrutórias informais, encontrando-se em apreciação”. O caso também já chegou ao Parlamento, com o Bloco de Esquerda (BE) a questionar o Ministério das Finanças sobre o que se está a passar.
Embora os estagiários estejam, na prática, a fazer trabalho de inspecção como se já tivessem entrado na carreira, continuam indefinidamente em fase experimental, recebendo o salário referente a estagiário (ou, nalguns casos, o vencimento de origem na administração pública, caso tenham optado por manter essa remuneração).
Além da questão remuneratória, há problemas formais que, segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), Paulo Ralha, se podem colocar: é que os formandos “não têm poderes formais para agir como inspectores – tudo o que fazem pode ser contestado”.
O concurso de recrutamento dos estagiários (dentro da administração pública) foi lançado ainda durante o tempo da troika, em Novembro de 2012, com o objectivo de reforçar a autoridade tributária com mil novos inspectores. Como o concurso de selecção se dirigia a funcionários públicos, há estagiários que já eram trabalhadores do fisco; outros decidiram sair de diferentes serviços da administração pública em vários pontos do país para realizar o estágio (com a possibilidade de voltarem ao lugar de origem). Mas como o curso não tem data para acabar, muitos estão num impasse. E alguns estão deslocados do local de residência desde Janeiro de 2015.
O facto de “todos os prazos terem resvalado”, denuncia Ralha, está a “provocar grande incómodo” e a “prejudicar os trabalhadores estagiários”. Uma descrição que coincide com relatos ouvidos pelo PÚBLICO junto de alguns estagiários, que se queixam do “vazio” e da “navegação à vista” em que o curso se transformou por não haver um horizonte temporal definido. Prolongar estágios, lamenta Nuno Barroso, da APIT, tem sido um “infeliz hábito” na AT que agora se repete. “Há 900 pessoas que estão dependentes de saber qual é o seu futuro profissional e precisam de tomar decisões sobre a sua vida. Nada disto é normal; nada disto faz sentido para quem está a tentar evoluir na sua carreira”, reclama o presidente da APIT.
Lei diz um ano
Questionado pelo PÚBLICO, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, alega que o período de um ano se refere apenas ao tempo “em que o trabalhador se encontra em fase de ‘aprendizagem’, objecto de avaliação quer dos seus conhecimentos (através da realização dos dois primeiros testes), quer do seu desempenho” e que só depois desse período se realiza a prova final. Mas Nuno Barroso contesta. “O que a lei diz é um ano; não é dois, nem dois e meio, nem três anos”, contrapõe o presidente da APIT, sem conhecer as declarações do governante ao PÚBLICO. O período de um ano que se aplica a este estágio está plasmado num diploma de 2005 (o despacho n.º 1667/2005, de 25 de Janeiro de 2005), alterado em 2014 mas sem implicações neste prazo.
Os estagiários já realizaram todas as provas escritas (os dois primeiros exames, no primeiro ano, e a prova final, com uma primeira chamada em Julho passado e uma segunda em Dezembro). Falta agora serem publicadas as classificações. E depois disso há uma série de passos a cumprir até ao fim do período experimental (reclamações, lista final, processo de colocações).
Mas, por ora, há um novo impasse. Como o Conselho de Ministros de 15 de Dezembro aprovou um decreto-lei que altera o regime de carreiras dos funcionários da AT, com implicações retroactivas nos critérios de ponderação das notas finais dos estágios, a AT só vai proceder à divulgação da lista depois de o diploma ser publicado em Diário da República e estar em vigor. O PÚBLICO tem a indicação de que o fisco tem prontas as listas finais para as publicar logo que este diploma seja publicado.
Questionado sobre a data prevista para o fim do estágio, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não aponta um horizonte, porque, justifica, o “tempo de execução está dependente do número e complexidade de alegações que venham a ser apresentadas pelos interessados à classificação final em sede de audiência prévia e, posteriormente, em sede de recurso hierárquico”.
Entre estagiários ouvidos pelo PÚBLICO há mesmo quem tema que o rol de etapas ainda por cumprir faça prolongar o estágio ainda por mais um ano. A AT prevê que mais de 95% dos estagiários tenham sido aprovados. A ocupação dos postos de trabalho será feita de acordo com a “distribuição racional e proporcional dos efectivos e as necessidades dos serviços, em função do tecido socioeconómico nacional”.
O processo do estágio sofreu vários atrasos ainda durante a fase de recrutamento. Só ao fim de dois anos os estagiários começaram o curso, mas desde logo com menos do que os mil inspectores previstos; agora, que já passaram mais dois anos e houve desistências pelo meio, o reforço será sempre inferior. Dos 886 que neste momento estão no curso não se sabe quantos vão continuar.
Este caso vem a lume na semana em que o Governo apresenta um relatório sobre a precariedade no Estado.