Música popular, música de agora
Os Live Low procuram o que sobra da música tradicional no confronto com exploradores modernos.
No fim, acabamos no mesmo silêncio com que por aqui entrámos, naquele início em lento fade-in até a gravilha sonora revelar o bordão do sintetizador e os passos do ritmo que são de caminhada de alguém, agora, lá longe no tempo. Nesta Toada dos Live Low, ou seja o alter-ego revelado em 2015 por Ghuna X (Pedro Augusto, músico e produtor portuense de electrónica exploratória, de hip hop sinistramente urbano, que encontrámos ao lado, por exemplo, de Capicua), o início surge com a reconfiguração do tradicional madeirense Borracheiros e o final, todos os nove minutos dele, são visita transformadora a outro tradicional, este algarvio, Deus te salve ó Rosa. Acabamos no mesmo silêncio, como escrevemos, mas é um silêncio de fim de viagem – todo um outro impacto em nós, portanto. Ou seja, não entramos curiosos num novo mundo, despedimo-nos, ainda perplexos, do que acabámos de conhecer. Perplexos porque ouvimos muito: um baixo que dá músculo e majestosidade magrebina à melodia original, o som grave como o de um violoncelo que cobrirá a voz até a substituir e que acentua a sensação de que, se a despedida é inevitável, também o é o desejo de não esquecermos o que vivemos até ali chegar.
“Toada”, o longa duração de estreia de Live Low, existe num território indefinido. Como pano de fundo temos as recolhas da tradição musical portuguesa feitas por Giacometti, ou aqueles que a trabalharam exemplarmente, como Fausto ou José Afonso, mas esse é o ponto de partida para um questionamento mais profundo. Em entrevista à webzine Bodyspace, Pedro Augusto definiu o seu programa de forma sucinta: “Tentar perceber qual é a identidade da música portuguesa no geral mas também como é que nós, enquanto quatro músicos do século XXI, olhamos para essa herança”. Nós, Pedro Augusto, Miguel Ramos (baixista dos Torto ou Naco), Gonçalo Duarte (guitarrista dos Equations), e, na voz, Ece Canli, artista turca actualmente radicada no Porto.
A resposta a essa pergunta não é uma colisão de tempos e estéticas, é um encontro feito passo a passo, um abraço que se faz e desfaz e se faz novamente. Vejamos a versão de O sol preguntou à Lua. Tacteia-se algo de primevo na maravilhosa canção açoriana imortalizada por Adriano Correia de Oliveira e, com apenas voz e um órgão como chão, as palavras ganham uma ressonância especial: em Adriano era canção com uma carga poética desarmante, aqui é força telúrica erguendo-se perante nós. Ouçamos Lembra-me um sonho lindo, de Fausto, reduzida a esqueleto rítmico até que o dedilhado faz a sua aparição, os sintetizadores dobram a melodia e o esqueleto há-de ganhar nova carne, ou melhor, nova vida, quando a voz, qual espectro lírico-popular, se junta ao conjunto.
Neste universo de sombras pode revelar-se inesperadamente algo como um kraut popular em Virtudes – Harmonia às voltas com o cancioneiro português? - e pode ouvir-se o baixo pulsar como em desvario de rock sónico, mas é só sugestão, porque a paisagem em volta não tem lugar definido: que ritmo é o desta Ópera do Zeca, que pode ser bombo, mas não soa como tal, e que não é certamente pad electrónico, mas algo de intermédio? Toada não se impõe. Aliás, se não o olharmos atentamente, parece ausentar-se sem que reparemos nele. É música que pede que nos aproximemos dela e que a sorvamos ao seu ritmo.
Não sabemos se Pedro Augusto e seus companheiros e companheira de jornada obtiveram as respostas que procuravam, mas quer-nos parecer que consegui-las é pouco importante. Interessa-lhes a procura, tocar algo de essencial, aquilo que sobrevive do material tradicional original neste frente a frente com exploradores modernos. Eles escavam e descobrem e moldam e escavam novamente. O silêncio há-de impor-se no fim, mas a cabeça mantém-se recheada de imagens e sons. São de ontem e são de aqui e de agora. Recomeçamos para procurar novamente. Quebra-se o silêncio.