Nunca te deixes domesticar, Lula Pena
Quando vai a um lugar gostava de ficar para sempre. Com a música é o mesmo. Queria ficar para sempre no processo, quando a música lhe surge fluída, hipnótica, indomesticável, de geografia indeterminada, como no novo Archivo Pittoresco.
A meio da conversa perguntamos-lhe se durante a criação não dá a ouvir o que vai fazendo a amigos ou cúmplices. “Não”, diz, como se ficasse surpresa com a resposta, para logo de seguida acrescentar. “Quer dizer, há os meus gatos, que revelam muito.”
E compõe o cenário. “Por vezes adormecem a ouvir-me, outras vezes existe um chamamento da fauna em redor e aparecem pássaros ou aranhas gigantes. É engraçado, porque por vezes parece que estou isolada, mas depois percebo que não estou. Sinto-me mais em conexão com o mundo estando muitas vezes só do que em contextos com muita gente onde essa ligação, no meio do ruído imenso ou da fugacidade, raramente é possível.”
Lula Pena vive numa pequena localidade, junto ao mar, a uma hora de carro de Lisboa – o que também não interessa muito porque não tem carro. Para muitos é uma das figuras mais misteriosas da música feita em Portugal. Há vinte anos foi para estúdio e saiu de lá com o álbum Phados (1998), lançado pela belga Carbon. Há sete anos decorreram as sessões de gravação que haveriam de originar Troubadour (2010), lançado na pequena editora portuguesa Mbari. E agora surge Archivo Pittoresco, edição da Crammed Discs, histórica editora belga que conta nos seus quadros com Juana Molina, Acid Arab, Cibelle, Jagwa Music, Konono nº1 ou Tuxedomoon.
Quando surgiu era uma desconhecida em Portugal. Havia fado na sua sonoridade, mas também morna ou bossa nova, mas de forma singular. Depois sucederam-se concertos e um longo hiato até chegar novo disco. Nunca teve pressas. Foi procurando entender qual o seu lugar, desenvolvendo uma exigente procura interior e o segundo álbum respirava uma série de linguagens (tango, canção francesa, fado, morna, flamenco ou bossa), sem ser nenhuma em particular, diluídas num cosmos particular, ondulando na superfície da sua viola e voz grave.
O novo registo ignora totalmente tipologias ou fronteiras precisas, numa hipnótica digressão feita sem interrupções, onde desaguam diversos ecos, línguas e elementos sonoros, mas onde afinal nunca saímos da verdade mais elementar: é sempre Lula Pena que ouvimos, o seu dedilhar, a relação quase física com a guitarra, numa linha contínua onde não existem estruturas pré-definidas, numa respiração natural, onde melodias fluem e subtis contracurvas rítmicas se ajustam no momento certo. “Primeiro, a guitarra, e depois a voz”, afirma. “A minha ideia é que este disco funcionasse como contínuo, sem separações. A guitarra é a protagonista e a voz acompanha.”
É uma obra que parte da consciência da relação com a guitarra, apurada ao longo dos anos. “O meu encanto com a guitarra é a de alguém que é autodidacta, que não sabe os atalhos e truques, e vai descobrindo por si, para se deixar fascinar com essa revelação.” O processo é o mais importante para ela. Ou melhor: para ela tudo é processo. Vinte anos depois diz que continua a não saber como se fazem discos. “No decurso da feitura deste disco dei-me conta que tinha chegado a uma espécie de limite – não conseguia fazer muito mais com a guitarra do que tinha feito antes.” Pensou até mudar de instrumento, explorar outro tipo de estruturas. “E depois percebi uma coisa simples”, diz. “Se fizesse uma afinação diferente da guitarra ela tornava-se num instrumento diferente. Saí da afinação padrão e optei por uma afinação aberta. E revelou-se todo um novo habitat a explorar.”
Explorou outras possibilidades. Considerou novas formas. Experimentou muito. “Entrei no detalhe, numa percepção muito atenta e minuciosa”, afirma. “Sabia que o prazer estava no processo, não necessariamente no resultado final, na estrutura de uma canção, num disco, nesse objecto.” Não queria acelerar, desvirtuar, trair o procedimento. “Disse para mim própria: vou ter de lidar com a incerteza e o inesperado e foi a partir dessas coordenadas que estabeleci uma relação com a guitarra.” Foi uma ligação fiel e verdadeira, de tal forma que em determinado momento pensou em conceber um disco de temas instrumentais. “Só com a guitarra, sem voz. Tinha essa ideia. O disco, instrumental, e depois nos concertos, surgiria a minha voz.”
Encontro com o transe
Quem já a viu ao vivo sabe que tem uma relação sensorial com o violão, debruçada sobre ele, como se o envolvesse, ela e ele são um só, desenhando circunferências no espaço, como se todos os seus movimentos, a sua música, se concentrassem no essencial, quietos e imersos. “O facto de cantar e tocar ao mesmo tempo divide-me a atenção e provavelmente não faço bem nem uma coisa nem outra”, ri-se ela, “mas o desafio é conseguir alcançar essa terceira entidade, esse equilíbrio, esse encontro com o transe, em que é como se eu desaparecesse. Quando isso acontece, esse momento em que parece que nem estás ali, em que a música flui sem guia, é recompensador.”
Para chegar lá é preciso disciplina, praticar, querer muito. “Sim, mas também tenho períodos de distância”, afiança. “Não organizo os meus dias em função disso. Preciso de me separar, para depois matar saudades. Preciso sempre de tempo. Precisava de mais tempo para este disco. Nesse sentido é um disco precoce.”
O tempo, o espaço e o silêncio, eis uma equação que ajuda, em parte, a perceber Lula Pena. Há anos que habita fora da cidade e isso também parece ter tido impacto neste disco. “Houve mais introspecção. Mas também o vento e o elemento água tornaram tudo mais líquido. Mas, lá está, de uma forma orgânica. A partir desse lugar de consciência tendo absorver o que está à minha volta. É o lado autêntico que quero dar às coisas. Deixar-me ir. Não esperar nada. Aceitar, talvez, as circunstâncias.”
Essa demanda interior não significa menor atenção ao que se passa no exterior, a política, a economia, as redes sociais, a crise. O single de avanço do álbum foi até uma canção, Pes mou mia lexi, da autoria do compositor Manos Hatzidakis, cantada em grego. E não foi um acaso. “Estive na Grécia, toquei lá quando as pessoas começaram a desiludir-se e assisti às manifestações de rua e isso teve impacto em mim: era como se os manifestantes fossem um coro grego e gravei aquilo tudo. Foi o primeiro país a sofrer a sério os efeitos da crise económica global. Foi uma forma de recordar que, de uma forma ou outra, somos todos gregos.”
Nela existe uma consciência do mundo. Às vezes isso manifesta-se de uma forma inesperada. Por exemplo, quando vai a um sítio, que pode ser num país distante, tem quase sempre a sensação que poderia ficar ali a viver para sempre. “No início, quando esse sentimento se manifestava, pensava que isso só acontecia em locais específicos, mas agora não. “A maior parte das vezes sinto assim. Tenho curiosidade. Queria permanecer ali mais tempo. Desejava compreender melhor.” Tudo o que é contrário à dinâmica actual. “Sim, isso. Hoje é tudo muito veloz e gritado.”
No fim de contas a relação que estabelece com os lugares é a mesma do que com a música. Podia ficar sempre mais um pouco. Daí que lhe seja difícil afirmar que determinado processo está encerrado. “Um dia haverei de aprender a fazer um disco”, ri-se ela, “mas até lá vai continuar a ser-me difícil separar um disco do ao vivo. São duas coisas diferentes. Continuo a interrogar-me como é que produzo uma voz e viola que são orgânicos, fluídos, permanentes, para existirem num disco que capta um instante.”
Em Outubro de 2014, o belga Marc Hollander, fundador da Crammed, que ao longo dos anos ajudou a lançar nomes como Bebel Gilberto, Zap Mama, Hector Zazou ou Suba, viu-a num showcase no Womex, a feira internacional de músicas do mundo e ficou fascinado. Inicialmente ia renitente. Pensava que cantora portuguesa com violão seria sinónimo de fado, mas não. Propôs-lhe lançar um disco. E ele aí está. Não custa acreditar que a credibilidade da editora lhe permita uma renovada visibilidade.
As primeiras críticas ao álbum já andam por aí – do The Guardian ao Financial Times – e concertos não lhe faltam. Depois de Glasgow, na Escócia, segue-se este sábado Faro, e na próxima quinta, Bruxelas, num vai-e-vem entre Portugal (Sintra, Ílhavo, Porto, Lisboa, Braga) e a Europa (Paris, Londres, Bremen, Gent, Roterdão) para os próximos meses. No meio disto tudo, ela mantém-se uma intransigente defensora da sua forma de estar.
“Quando conheci o Marc pensei que seria possível gravar logo no ano seguinte, mas fui percebendo que aquilo que tinha entre mãos era um repertório selvagem e que cada vez que o tentava domesticar ele enraivecia-se ainda mais. Por isso é que eu valorizo mais os concertos porque é onde o repertorio ganha personalidade e tenho menos limitações. Um disco é cristalizar um processo que não precisa de o ser. É reduzir o mapa de caminhos possíveis.” Percebe-se o que quer dizer, mas a verdade é que no novo álbum existem imensos caminhos.
Nunca nos perdemos por atalhos, guiados pela sua guitarra e voz de entrega emocional, mas enxuta, num todo que resulta conciso, povoado por emoções, memórias e tradições. Pelo meio existem citações, alusões e pontos de vista partilhados através das palavras (em português, francês, inglês, grego) de Lula Pena ou pedidas de empréstimo a poetas, cantores ou compositores (Ronaldo Augusto, Ederaldo Gentil, Violeta Parra, Manos Hatzidakis ou Bénédicte Houart), num conjunto de escolhas que ela diz serem muito intuitivas. “Estou atenta às coisas e estas vão-se revelando. As letras são variadas: tanto podem ser da maior simplicidade, como surrealistas, fantasmagóricas, sombras. O mesmo em relação à língua. Não quero coisas fechadas, procuro uma certa transcendência no processo, até da escuta.”
O álbum chama-se Archivo Pittoresco numa alusão à estética do pitoresco de meados do século XVIII e inícios de XIX, quando certa pintura paisagística quebrou regras académicas de representação da natureza ou cânones de equilíbrio e harmonia. “Quando começaram a sair do atelier, explorando e percebendo que há também ruínas, caos, desordem e incertezas, representaram isso”, diz, como se estivesse também a falar da sua música, um mantra sonora onde não existem fronteiras fixas, numa deambulação sem destino por diversas línguas e sons.
A pintura não lhe é estranha. Tal como o desenho gráfico, o filmar, o escrever ou o esculpir. “Mas acho que perdi isso tudo”, diz. “Ou então a minha música é o resultado de todas essas tentativas que fui fazendo ao longo da vida. Provavelmente todas essas experiências, essa coisa alquímica, serviu de partitura para o meu som. Agora só tenho a guitarra e a voz dá-lhe uma palete de cor de vez em quando. A música tornou-se a coisa mais sagrada para mim. É onde desenvolvo múltiplas experiencias, mas também é a prostituta. É o que me dá dinheiro para viver.”
Ao longo da conversa raramente fala sobre a música de outros. Nem é fácil reconhecer-lhe ascendências óbvias. “Preciso de ouvir tanto música como de silêncio, se calhar é isso”, ri-se, evocando um nome que lhe diz muito – o compositor Harry Partch – para logo de seguida reflectir que vivemos rodeados de sons. Uns perturbadores, outros não. “Por norma os da natureza, não o são”, diz. Contestamos, argumentando que a natureza também é intrinsecamente conflituosa. “Sim, é verdade, a natureza pode ser insuportável. A presença constante do vento, por exemplo, pode ser um grande desassossego. Mas depende das circunstâncias.”
E voltamos aos seus gatos. “Volta e meia aparecem-me em casa com ratos, lagartos e pássaros e eu dou por mim a tentar salvar aquela bicharada. Para mim acaba por ser aflitivo – nunca sei se estou ou não a salvar algo ou se vão recuperar. Há dias salvei um pássaro da boca do gato e fiquei na dúvida se fiz ou não bem porque o pássaro, estropiado, parecia estar em agonia. Quis fazer o bem. Mas o que é fazer o bem? Às vezes não se sabe. E às vezes temos de aceitar simplesmente que não sabemos.”
E Deus? Acredita Lula Pena nele? “Sei que não estou sozinha, sabendo ao mesmo tempo que estamos todos no deserto.”