Em 2016 mudaram de sexo 11 pessoas nos hospitais públicos
Foram feitas no ano passado, no Serviço Nacional de Saúde, quase tantas operações de reatribuição sexual como entre 2012 e 2015. Intervenções acontecem no Porto e em Coimbra.
Os hospitais públicos fizeram pelo menos 11 cirurgias de reatribuição sexual no ano passado. A Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra garante que fez oito e o Centro Hospitalar de São João, no Porto, afirma que fez outras três. São quase tantas quantas a URGUS tinha realizado entre 2012 e 2015 (12), quando era a única unidade do Serviço Nacional de Saúde a levar a cabo este tipo de intervenções genitais, designadas por vaginoplastias e faloplastias.
Zélia Figueiredo, médica psiquiatra responsável pela consulta de sexologia no Hospital Magalhães Lemos, no Porto, e dirigente da JANO — Associação de Apoio a Pessoas com Disforia de Género, começou a receber boas críticas sobre vaginoplastias feitas na URGUS. “É tudo muito lento, mas já vai havendo alguma resposta”, diz.
Associações de defesa dos direitos das pessoas “trans” continuam a reclamar contra o que consideram ser a falta de resposta no serviço público. Duarte Lázaro, da JANO, frequenta vários grupos de “trans”, no Facebook, alguns fechados, e afiança que continua a haver queixas sobre a qualidade dos serviços prestados e quem peça empréstimos para fazer cirurgias num hospital privado.
Nem todas as pessoas que alteram os documentos se querem sujeitar a cirurgias de reatribuição sexual, mas esse não deixa de ser um indicador do que tem sido a falta de resposta: desde que a Lei da Identidade de Género entrou em vigor, em Março de 2011, 375 pessoas fizeram a alteração no registo.
O processo é, por si só, complexo. Impõe-se uma avaliação médica. Obtido um diagnóstico de “Perturbação de Identidade de Género” ou “Disforia de Género”, há que repetir tudo, num local distinto. Só com a reconfirmação, a pessoa poderá avançar para a terapêutica hormonal, prescrita por endocrinologista. Para fazer uma cirurgia de mudança de sexo terá de obter parecer favorável da Ordem dos Médicos.
As cirurgias de reatribuição de género estão previstas na lei desde 1995. O cirurgião Godinho de Matos começou a fazê-las no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em 1999, e prosseguiu até se reformar, em 2005. O cirurgião Décio Ferreira tomou o seu lugar, ocupando-o até 2011. Com a saída de Ferreira, que se reformou e continua a operar no sector privado, o SNS ficou sem resposta. Já em 2011, foi anunciada a criação da URGUS, que envolve psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, urologistas, ginecologistas, cirurgiões plásticos.
De acordo com a informação veiculada no ano passado, desde 2012 até 2015 a URGUS operou 27 pessoas, 15 tinham completado o processo. Algumas tinham começado noutro sítio, outras tinham feito todas as intervenções ali. Só 12 tinham realizado a intervenção genital (vaginoplastia e faloplastia). Avolumaram-se queixas: havia quem estivesse a recorrer a serviços privados por não conseguir inscrição no serviço público ou por não querer lá fazer as cirurgias de reatribuição sexual, tal era a morosidade e a desconfiança na qualidade dos serviços prestados. Alguns activistas recorreram à Ordem dos Médicos. E a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde realizou uma auditoria.
Coimbra acompanha 84
O relatório indicou “inexistência de consulta específica”, “insuficiência de tempo afecto à equipa multidisciplinar”; “dificuldades de coordenação”, “dificuldades de reunir todos os elementos com vista à discussão, avaliação e decisão de casos clínicos”, “insuficiente o tempo afecto à equipa multidisciplinar de cirurgia”.
A URGUS informa agora, por email, que já fez os acertos recomendados pelos inspectores em Julho. Neste momento, tem 84 utentes em consulta, mas ainda sem data para cirurgia, e dois “já estudados, com terapêutica hormonal concluída”. Ao longo de 2016, realizou um total de 19 cirurgias: quatro mastectomias subcutâneas, três mamoplastias de aumento, duas faloplastias, seis vaginoplastias, uma rinoplastia, duas remodelações de mandíbula, um refinamento. Em geral, são precisas várias intervenções, para além das genitais, para concluir um processo de mudança de sexo.
Foi no auge desta polémica que o Centro Hospitalar de São João, no Porto, anunciou estar também a começar a fazer cirurgias de reatribuição sexual. Segundo Álvaro Silva, director do Serviço de Cirurgia Plástica, nesse ano foram feitas duas vaginoplastias, uma faloplastia e várias cirurgias complementares à mudança de sexo. Ao longo deste ano, deverão ser feitas “entre seis e 12, no mínimo oito”. O hospital não criou uma lista de espera específica para estas cirurgias. “Lidamos com um manancial de patologias”, frisa. Não lhe parece justo que estas pessoas possam ultrapassar outras. Tem, sim, uma consulta multidisciplinar específica, coordenada pela psiquiatra Márcia Mota.
No São João, diz a médica, estão a ser seguidas à volta de 35 pessoas. “Não estão todas na mesma fase. Algumas entraram há pouco. Estão na fase de diagnóstico. Outras já estão a fazer tratamentos hormonais. Outras já começaram a fazer cirurgias.”
Chegam ali pessoas das mais variadas zonas. Em Maio do ano passado, o Governo criou o sistema de livre acesso e circulação, que acabou com a regra de hospital de referência, o que quer dizer que os cidadãos podem fazer os tratamentos em qualquer unidade do SNS. Os médicos de família podem encaminhá-los, tendo em conta o interesse do utente, a proximidade geográfica e os tempos médios de resposta. Zélia Figueiredo, por exemplo, tem sugerido às pessoas que avalia e/ou acompanha que peçam aos respectivos médicos de família que as encaminhem para a endocrinologia do São João ou para serviços de cirurgia do Hospital Santos Silva, em Gaia, que tem feito operações complementares.
A psiquiatra já deu por ela a recomendar a URGUS, apesar de todas as críticas. Chegam boas notícias de quem lá fez vaginoplastias. Faloplastias, não, diz. E continua a ouvir queixas de exames desnecessários. Vão para fazer a cirurgia de reatribuição sexual, já percorreram um calvário, diz, e “têm de voltar a passar pelo psiquiatra, pelo psicólogo, pelo endocrinologista”.