May precisa de Trump para negociar com a Europa. A questão é saber a que preço

Para May é uma vista de alto risco que hoje faz à Sala Oval. Sem a “relação especial” com os Estados Unidos, que ela quer renovar, o Reino Unido pode ficar sozinho em matéria de livre comércio, mas também de segurança.

Foto
Um encontro de alto risco, mas essencial para Theresa May e o Reino Unido Eric Vidal/Reuters

Theresa May, a primeira líder estrangeira a ser recebida por Donald Trump na Sala Oval, sabe até que ponto esta visita é fundamental na sua estratégia para o "Brexit". Sair da Europa sem garantir um acordo privilegiado com a América no comércio e na segurança deixaria as Ilhas Britânicas à deriva, no meio (geopolítico) do Atlântico. Precisa urgentemente de um amplo acordo de comércio com os Estados Unidos, que esteja pronto a entrar em vigor no dia em que perder o Mercado Interno. E sabe também que a NATO é vital para um país que vai deixar de poder interferir na política europeia de defesa, no momento em que perder o seu lugar no Conselho Europeu. Para ela, recuperar a “relação especial” forjada desde a II Guerra entre os dois países é o contraponto necessário à dispensa da Europa e a melhor alavanca para conseguir um bom acordo com os seus parceiros da União Europeia.

Nem uma coisa nem outra rimam com a política do novo Presidente em matéria de comércio livre e de Aliança Atlântica. Mas também é verdade que o Presidente já disse que quer fazer de May a sua “Maggie”, invocando a parceria entre Ronald Reagan e Margaret Thatcher nos anos 80 do século passado, que “revolucionou” o mundo. Trump foi e continua a ser um defensor entusiástico do "Brexit", cortando radicalmente com a política americana nos últimos 70 anos. Fez da Alemanha o seu “adversário” principal, como deixou claríssimo na entrevista que deu ao Times e ao Bild. O seu grande amigo britânico chama-se Nigel Farage, o anterior líder nacionalista do UKIP, que foi a “alma” do "Brexit". Mostrou desde o primeiro dia que fala a sério quando fala de proteccionismo, anulando a Parceria Transpacífica de Comércio (TTP) negociada pelo seu antecessor com 11 países da Ásia e do Pacífico. Vai rever o NAFTA (acordo de comércio livre com o Canadá e o México, de 1994), deixando o México, para além do muro, numa situação muito difícil. May é tudo menos proteccionista e a aspiração de manter um papel “global” para o seu país depois da saída da União passa também pela abertura da sua economia ao mundo.

Abrir uma excepção?

Os sinais vindos da Casa Branca indicam, todavia, que Trump pode abrir uma excepção. A questão é saber qual o preço que o Reino Unido pagará por ela. Trump falou de um acordo “rápido”. O seu conselheiro para o Comércio, Anthony Scaramucci, disse em Davos que poderia ser finalizado em seis a doze meses. Será, dizem fontes da Casa Branca, um acordo ambicioso que pode “esmagar” ou mesmo anular as tarifas alfandegárias entre os dois países em todos os sectores em que já haja trocas comerciais. Do lado de cá do Atlântico, as previsões são menos optimistas. Alguns analistas advertem para que o “estado de necessidade” em que May se encontra não é a melhor receita para uma negociação que será dura, permitindo aos Estados Unidos conseguir o máximo de concessões. Adam Posen, presidente do Petterson Institute of International Economics, chama a atenção, no Guardian, para outro lado da questão: “Seria necessária uma relação com os EUA muito mais ampla e profunda para compensar o declínio do comércio com a Europa.” “Em última análise, será sempre uma negociação muito dura”, acrescenta o antigo comissário europeu do Comércio, Peter Mandelson, lembrando a máxima preferida de Trump: “America way or no way”. Theresa May sabe que vai ter de engolir alguns “sapos”. A garantia de um acordo de comércio livre entre os dois países é, porventura, a sua arma mais forte nas negociações muito difíceis com a União Europeia. Ficar sem o Mercado Único e sem o mercado americano seria, para ela, uma tremenda derrota.

Que NATO?

Falta a questão da segurança, o outro dossier fundamental para Theresa May. Teve o cuidado de falar com o secretário-geral da NATO, Jen Soltemberg, antes de partir para os EUA, para levar a Trump alguma coisa de concreto. São significativas as declarações do seu gabinete sobre o resultado da conversa. “Ambos concordam que a NATO tem de evoluir no sentido de enfrentar as ameaças actuais, nomeadamente o terrorismo e a ciberguerra”. Trump já disse que a NATO só lhe interessa se for capaz de combater o terrorismo, deixando de fora a pedra angular da aliança: a defesa colectiva. May deixa cair uma referência à Rússia, que os europeus vêem hoje como uma ameaça séria à sua segurança, para a qual a NATO deve estar preparada.

O Reino Unido está presente no reforço militar da Aliança nos países mais expostos a qualquer aventura de Moscovo: os Bálticos e a Polónia. Obama reforçou igualmente o número de tropas americana nesses países. O que vai fazer Trump, ninguém sabe ainda, mas a sua amizade com Putin faz temer o pior. A primeira-ministra argumentará que a NATO continua a ser fundamental para a segurança transatlântica e levará consigo os 2% do PIB que o seu país gasta com a defesa, sendo um dos poucos que cumpre a meta estabelecida pela organização para todos os seus membros. Trump insiste em que os aliados europeus têm de pagar muito mais se quiserem garantir a sua segurança. O maior receio é que não seja apenas uma questão de preço. May, também aqui, pode ficar isolada. Em Berlim ou Paris a palavra de ordem é reforçar a capacidade militar europeia em face da mudança verificada em Washington. Até hoje, Londres foi decisiva para vetar qualquer tentativa (mais teórica do que prática) de pôr de pé uma defesa europeia autónoma, alegando que enfraqueceria a NATO. O "Brexit" vai tirar-lhe esse poder. Se perder o aliado americano fica mais uma vez isolada.

Renovar a “relação especial”

Ontem, antes de chegar a Filadélfia, onde participou no retiro anual dos Republicanos para definirem a sua estratégia politica, a líder britânica levou ainda mais longe o seu entusiasmo pela renovação da “relação especial”, anunciando que ela pode voltar a liderar o mundo. “No momento em que estamos a redescobrir a nossa confiança – quando vocês estão a renovar a vossa nação, tal como nós estamos a renovar a nossa –, temos a oportunidade, e a responsabilidade, de renovar a nossa relação especial para uma nova era.” Mark Leonard, director do European Council on Foreign Relations de Londres, comentava recentemente que o que mais o impressionava no discurso de May sobre o "Brexit" (17 de Janeiro) era o facto de partir do princípio “de que o mundo vai manter-se tal como está.” “Não há nela a mínima consciência de que Trump vai acelerar a dissolução da ordem internacional liberal, mudando as circunstâncias que estão implícitas na negociação”.

Para Theresa May, esta é uma visita de altíssimo risco político que ela precisa que corra bem. Não será fácil. Ontem, viu-se confrontada com as declarações do Presidente americano a favor da tortura, obrigando o seu gabinete a esclarecer que é radicalmente contra. Mais uma prova de que, sem os valores comuns que uniam os dois lados do Atlântico, sobra pouco para sustentar uma aliança como aquela que europeus e norte-americanos mantiveram durante tanto tempo. O mesmo se pode aplicar ao seu país.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários