Um lugar aonde nunca fui

A autora de Caderno de Memórias Colonial e de A Gorda voltou a Moçambique, 41 anos depois, à procura dos espaços onde a sua vida começou. As memórias que levou na bagagem e a impossibilidade de regressar a casa: a viagem doce e implacável de Isabela Figueiredo.

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É autora de Caderno de Memórias Coloniais (Angelus Novus, 2009, reeditado na Caminho em 2015) e de A Gorda (Caminho, 2016), esta semana chegado à 2.ª edição. Nasceu em Lourenço Marques, hoje Maputo, em 1963, e vive em Portugal desde 1975. Esta é a sua primeira viagem de regresso, passados 41 anos

É domingo e faz um calor insano. Almoço numa esplanada na Eduardo Mondlane, ex-Pinheiro Chagas, frente ao hospital central. Vejo um grupo de raparigas europeias entrar num chapa (1). Se elas podem, também eu. Vou a banhos à Costa do Sol. Tenho todo o tempo do mundo. Os autocarros passam do outro lado da rua. Apanharei um. É bom viajar de autocarro para conhecer as cidades. Levo o meu livro. Passarei a tarde na praia. Posto-me onde outros esperam transporte. Pergunto a um jovem, “é aqui que se apanha o machimbombo?” Sim, mas é domingo, “machimbombo precisa esperar, chapa é melhor”. Hão-de realmente aparecer muitos chapas, mas atulhados. O jovem justifica a situação com o excessivo calor e o facto de ser domingo. É tímido como quase todos os moçambicanos. Fala em voz baixa e sem levantar os olhos, de uma forma submissa. Esperamos quase uma hora ao sol, eu, ele, e outros rapazes que se vão juntando, até conseguirmos entrar num chapa que vai vazio na direcção do Alto Maé, e depois ali voltará a caminho da Costa do Sol. Pagamos dois bilhetes. O preço normal é de 5 meticais por viagem, portanto deveria ter pago 10, mas custou-me 20 para facilitar os trocos.

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Isabela Figueiredo no jardim de Marracuene, onde brincava em criança, e na casa da Matola, construída pelo pai

O chapa é uma carrinha Toyota Hiace com o destino assinalado no pára-brisas e vidro traseiro. A indicação A. Voador/Costa do Sol significa que a viagem começa num destes lugares e termina no outro, e o que fica pelo meio só Deus e os passageiros habituais sabem. As paragens não estão assinaladas, mas todos os utentes as conhecem. Formam grupos e vão entrando até caberem. Fora da cidade, estas viagens poderão ser feitas na caixa aberta de qualquer carrinha de carga e custarão cerca de 20 meticais, dependendo do percurso. Lugar sentado só se consegue com muita sorte. Arranjo um. Os rapazes no banco de trás metem-se com o cobrador, perguntando quanto me roubou. Fica encavacado. Picam-no. Pronuncio-me em sua defesa, respondendo que roubou, mas pouco. Cinco ou seis meticais, o que é isso?! Sim, o que é isso?, concordam. E pensam, sem o dizerem, “o que é isso para ti?!.” Depois tentam abusar. Pedem para beber água da minha garrafa. Exclamo: “Respeito, meninos”, e seguem-se risos abafados e conversa em changana, que não posso entender. Conheço esse hábito do passado. Um deles pergunta-me se sou casada. Quer-me namorar comigo. Digo-lhe que sou velha. Responde que nos anos 60 já existia. Replico que essa existência só terá sido possível na condição de espermatozóide. Riem-se. Deixam-me em paz até à paragem seguinte, na qual entra muita gente, e o cobrador me manda mudar de lugar, ou os passageiros que entrarão esmagar-me-ão. É uma deferência para comigo, percebo. Protege-me e aceito. Os passageiros sentados serão uma dúzia, nos quais me incluo, todos muito apertados, eu com a vantagem de estar ao lado da janela. Em pé, enlatados, curvados e abalroados pelas travagens, buracos da estrada e má condução, mais uma dezena de almas. Um dos homens que primeiro entram e se encosta a mim, comprime-me exageradamente a cintura com o cotovelo. Olho-o nos olhos, olha-me, medimo-nos, pergunta-me para onde vou, respondo “para o mesmo sítio que o senhor”, e ali se enceta uma conversa na qual fico a saber que é técnico de elevadores e não gosta de brancos e lhe digo o suficiente para que perceba que não sou exactamente como os brancos que conheceu, por isso vou ali, nem sou presa para o seu dente. Vale-me ser mais velha, “mãe”(2), como dizem, e reclamar o estatuto que a idade me concede, bem como o de professora e católica, que enuncio. Percebo que o problema não consiste apenas em ser diferente por ser branca, mas também no facto de ser mulher. Viajei para África esquecendo que a Europa fica longe, bem como todos os seus valores nos quais me formei.

Ao longo do percurso o técnico de elevadores vai-me apresentando os locais por onde passamos. Ali é o mercado do peixe. Ali, o shopping Marés. Não reconheço a estrada da Costa do Sol. A que tenho na memória já não existe. O único ponto de referência é o mar e uma ou outra árvore na marginal. Estou num lugar onde nunca fui. Existe o edifício antigo do restaurante da Costa do Sol, onde se servem refeições, mas apenas no rés-do chão. O primeiro andar está em ruínas, desactivado, sem janelas.  Em frente já não existe o estacionamento para carros de banhistas, mas uma rotunda, e a rodovia continua em direcção a Marracuene. Existe, sim, a praia longa com a baixa-mar sem ondas da minha infância, e a possibilidade de andar um quilómetro com água pelo tornozelo, quente como não me lembrava que pudesse ser. O mar igual. Tudo o resto é diferente. Só quero que os meus companheiros de chapa me expliquem onde saem os moçambicanos para ir à praia. Indicam-me uma zona na qual construíram um campo de jogos sobre a areia. Saio. Um formigueiro de gente. Uma multidão no passeio, no areal e na água. Muita música, muito barulho, muito movimento. O passeio transformou-se numa extensa zona de vendas e de comes e bebes improvisada sob as escassas casuarinas. Vende-se tudo e assa-se peixe e galinha. Cheira a comida na grelha, que em todo o lado é servida aos clientes no passeio ou estendidos na areia. Destes aproximam-se jovens com garrafas que esguicham um jacto de detergente líquido dissolvido em água para a lavagem das mãos engorduradas de quem acabou de comer. Não compreendo se pertencem aos “restaurantes” ou se trabalham por conta própria. Trazem também um pano onde o cliente limpa as mãos.

Percebo existir um código de praia diferente daquele a que estou habituada. Dispo o vestido, sento-me com o meu livro, mas reparo que só exibe fato de banho quem vai para a água. A maior parte das mulheres encontra-se vestida. Não há muita nudez, embora à nossa volta tudo esteja impregnado de sexo implícito, de pessoas que procuram outras, que se conhecem, encontram e namoram.

Sou a única mulher sozinha. Sou a única mulher branca. Há uns rapazes que metem conversa comigo num inglês escolar. Respondo em português, mas continuam no mesmo registo. Parecem-me bebidos ou drogados. Enxoto-os. Surge um homem pedindo-me para ler o meu livro. “Ler o meu livro?” “Só fazer um skipping. Estou ali”, aponta a sua toalha. “Skipping?!”, interrogo. Deixo-o levar por instantes a minha Svetlana Alexievitch. Todos os olhos na praia estão pousados em mim. Enfio rapidamente o vestido pela cabeça, agarro nos meus pertences, passo pelo homem a quem emprestei o livro, peço-o de volta e dou início a uma caminhada pelo paredão da Costa do Sol apinhado de carros e ambientes mais ou menos ameaçadores onde me cruzo com magotes de gente que come, bebe, ri, dança e conversa.

Chegada ao mercado do peixe, construído sobre a praia, com uma zona de restauração adjacente, decido antecipar o jantar e mando vir uma travessa de camarões grelhados pela qual pago cerca de 12 euros. Sossego por uma hora. Incomoda-me não conseguir passar despercebida e misturar-me. Sinto a minha segurança em permanente risco num país onde o assalto, o rapto e a extorsão são uma profissão criminalizada por um lado, mas banalizada por outro. Há ladrões que roubam em determinadas zonas como se esse fosse o seu local de trabalho. Há-os nas Barreiras e no viaduto que liga a Ponta Vermelha à Baixa. Ser assaltado pelo ladrão A ou B num sítio expectável é culpa nossa, porque passamos por lá estando avisados. Sabemos que não se pode, portanto compreende-se que tenhamos de lhe oferecer os nossos pertences. É aborrecido, mas normal.

Põe-se o sol e preciso de voltar a casa com segurança. Do lugar onde janto vejo os chapas regressarem repletos. O terminal onde poderia conseguir fazer-me transportar para a cidade ficou muito para trás, portanto o chapa é de excluir. Não devo fazer o percurso a pé e muito menos ao cair da noite. Não vejo táxis nem autocarros a não ser em circulação, cheiíssimos. Não consegui localizar paragens no caminho até ali. Não trouxe telemóvel por questões de segurança. Sinto-me bloqueada por um medo repentino. Como sair da Costa do Sol? Ocorre-me pedir boleia. Numa mesa ao meu lado, uma numerosa família moçambicana acabou também de jantar. Destaca-se um português jovem, com sotaque do Porto, pai do bebé que parece ter motivado o encontro. Aniversário ou baptizado. Aproximo-me do português e peço-lhe boleia para a cidade. Não vai ainda. Estranha o pedido, mas acaba por se dispor a ajudar e acompanha-me pela marginal até arranjarmos um táxi. Afinal há praça quase em frente ao restaurante. Não a tinha avistado. Explica-me, envergonhado por mim, que as mulheres não circulam sozinhas no Maputo, muito menos se forem brancas. Entro no táxi, respiro fundo.

Segurança omnipresente

A segurança em Maputo é um bem de primeira necessidade. Havia um motivo para a minha mãe, com base em informações de quem tinha regressado, me desaconselhar firmemente um retorno tantas vezes sonhado. Não era apenas conversa de branco colonialista e saudosista. Não é seguro andar sozinha a pé à luz do dia pelas ruas do Maputo fora da área nobre da Polana e 24 de julho até ao supermercado Spar, antigo Interfranca, situado um pouco à frente do café Mimmo’s Princesa. Percebo que há olhares que se fixam no meu saco a tiracolo e no telemóvel. Os populares alertam-me em língua changana para a possibilidade de ser roubada. Percebo que me dizem algo como “olha o telemóvel” ou “não tenhas cuidado, não...”.

Nas zonas nobres e por toda a cidade, as casas e prédios têm um ou dois guardas fardados com ou sem armamento, dependendo do carácter das instalações. A polícia avista-se esporadicamente, mas os guardas são omnipresentes. Alertam-me para que tenha especial cuidado com os polícias. São regra geral corruptos. Apropriam-se dos nossos documentos e exigem dinheiro para no-los devolverem. Desconfio do que dizem, porque no Maputo o boato sempre teve pé ligeiro, mas confirmo a má fama policial quando um dos meus motoristas estaciona na 24 de Julho, enquanto aguarda que eu venha das compras e vê os documentos apreendidos pela polícia sob alegação de estar a fazer praça em local indevido. Conseguiu recuperar o que lhe tinham tirado mediante suborno. Explica-me que é obra da Polícia Municipal, que vigia os vendedores ambulantes e não tem jurisdição sobre o trânsito. Indigno-me, mas deparo-me com a sua aceitação. “Aqui é assim. A única maneira de resolver os problemas rapidamente é dar dinheiro.”

A segurança das casas é alvo de grande atenção. A paisagem urbana está pejada de gradeamentos nas portas, janelas e vãos. Tudo o que possa constituir uma possível entrada do exterior está protegido por ferros. Muitos prédios assemelham-se a jaulas. Há gradeamentos até ao 13.º andar, porque os ladrões podem e conseguem trepar. Para além disso, regra geral cada casa ou prédio tem os seus guardas. Parte significativa da força de trabalho no Maputo labora nesta actividade, que aparenta exercer com gosto. Os guardas permanecem sentados às portas, contemplando, dormitando ou jogando cartas ou damas. As peças do jogo são tampas de garrafas de água. As azul-escuras fazem de pretas e as claras de brancas. Nisto passam o dia, jogando, observando os transeuntes e conversando. São ruas inteiras com os passeios ocupados por grupos de guardas que ali comem e vivem.

Percebo, pelas conversas que escuto, que muitos se queixam de trabalhar 24 horas seguidas, sem folga. Escuto, também, os diálogos estabelecidos com outros pelo guarda do meu prédio que acumula a função de vigilância com a manufactura artesanal de cestos de palha que pendura no gradeamento que circunda o prédio. Do lado de fora ouço os passantes apreciarem os artigos. Descobri que dorme no átrio do prédio. Moro no rés-do-chão e logo nas primeiras noites escuto um restolhar de palha fora da porta do apartamento. Atento no barulho e compreendo ser um corpo voltando-se sobre uma esteira. O homem espera que todos os moradores entrem no prédio e, tarde na noite, acosta-se ali. Qual será a sua história?

Um guarda do outro lado da rua senta-se numa cadeira que tem apenas as pernas da frente. Equilibra-se encostando o espaldar ao muro, assim compensando as de trás. Na 24 de Julho, os guardas do Edifício Belver ocupam o tempo vendo telenovelas brasileiras numa televisão de rua. Na mesma artéria encontro um guarda que ouve rádio com um dispositivo composto por uns altifalantes ligados a um mecanismo eléctrico, ligado a uma antena, ligado a pilhas. Não é um rádio, mas compõe-se de peças que antes pertenceram a esses aparelhos e que ali reunidas emitiam som. É engenharia electrotécnica sem design.

O que quer ser encontrado

Homens, mulheres e crianças dormem pelos passeios no Bairro da Polana, zona nobre da cidade, onde estou alojada. As ruas confundem-se com espaço doméstico. Nelas se come, dorme e vive. Não apenas os sem-abrigo, mas o povo que enche a cidade durante o dia e depende das relações comerciais que aí estabelece. Os populares que vêm dos bairros limítrofes usufruem do espaço urbano irregradamente. A cidade enche-se cedo e esvazia-se a partir das 17h00.

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Da esquerda para a direita: Estrada do Aeroporto, Avenida 24 de Julho, Av. Friederich Engels, antigamente designada como Duques de Connaugh, chapa

Noto homens e rapazes remexendo nos contentores do lixo a partir dessa hora. Alguns comem o que de lá tiram. Desvio o olhar por pudor, como fazem todos os outros, tentando não ver, não fixar e não lembrar. Há pessoas destituídas de quaisquer bens, rotas, rasgadas, de uma miséria e sujidade aparentemente endémica que estendem um pano no chão e se deixam ficar; indigentes curtem bebedeiras estatelados ao sol ou à chuva, mas também há pelos passeios muita gente sóbria, que apenas descansa. Vendedores de rua dormem sestas à sombra sobre capulana ou esteira, e sentados no chão ou em bancos improvisados esperam clientes que lhes comprem o amendoim, a castanha de caju, a fruta ou os sapatos. Tudo se vende nas ruas. Na esquina oposta à da casa onde estou alojada, na Rua Ahmed Sekou Touré, ex-Afonso de Albuquerque, há o rapaz da fruta, que me engana no peso e já me conhece, “és a mãe que mora ali”, e na esquina que se lhe opõe, chega depois do almoço a mulher do amendoim torrado, que vende a cinco meticais o monte pequeno, a dez o grande, sempre no chão. Recordo os meus censurados hábitos à chegada a Portugal. Também fui sempre de me sentar no chão com as pernas cruzadas ou nos degraus das escadas, com naturalidade, adaptando-me em permanência, improvisando e não vendo nisso o mal que os portugueses lhe encontravam à minha chegada. Agora reparo eu. Agora estou muito portuguesa na contemplação do chão sujo e dos passeios rebentados do Maputo. Ocorre-me que na infância montei a banca para vender mangas à porta da casa na Matola. Nessas alturas sentei-me no chão ou improvisei um banco de caixote? A minha memória trai-me. Também ela reescreve, ajeita, deslocaliza, compõe ou esborrata. Confronto-me com a necessidade de me reposicionar na cidade. A minha ideia dos tamanhos e dimensões não corresponde ao real. Na memória tudo me parece maior. A cidade, as ruas, as casas onde vivi. Talvez porque fosse pequena. Talvez o meu pai, afinal, não fosse tão grande como o vejo na memória pura que dele quero manter e pela qual devo velar. Nessa minha memória limpa de um espaço-tempo que só aí reside.

Coisas que só têm valor para mim

Avisto a minha primeira casa no dia da chegada. Faço-me à Avenida 24 de Julho e percorro-a à cata do quarteirão do Jardim 28 de Maio. Demoro a encontrá-lo. Reconheço o prédio, mas receio entrar. A zona encontra-se bastante degradada, com passeios rebentados, muito comércio de calçado e telecomunicações na berma da estrada, o que obriga a um sério esforço de circulação para não se tropeçar. Não devo mostrar interesse nem cruzar olhares. Quero que pensem que sou dali, que circulo entre emprego e casa. Mais tarde perceberei que não é possível caminhar na rua sem ser notada. Passo frente à porta do prédio onde vivi evitando fitá-la. O ambiente não é favorável. Realizarei segunda tentativa de visita com o motorista de táxi que se assumirá como guarda-costas, condição implícita para que me possa mover à vontade. Não peço protecção, mas ao acompanhar-me quando abandono o carro o motorista age desse modo. Consigo entrar no átrio sujo e escuro do meu prédio. O elevador e o monta-cargas não funcionam, as portas pendem, há um homem dormindo no interior de um deles. Afasto-me. Receio. Não há forma de subir até ao sétimo andar onde vivi. Posso tentar as escadas, mas temo fazê-lo. A captação de fotos é muito desencorajada. Fotografo as imediações porque estou acompanhada e posso expor-me mais. Rapidamente sou advertida pelos passantes de que não posso fazê-lo. O motorista explica-me que é um hábito que ficou do passado. Foi proibido nos tempos da guerra civil e o povo assume que continua em vigor. Sempre que empunho a máquina fotográfica, arrisco-me. Não gostam. Ficam arreliados quando percebem.

No alto do prédio avista-se um tanque de cimento. É a caixa do elevador. No acesso a essa caixa sentavam-se os empregados do meu pai, ao sábado à tarde, para receber. Isto não tem valor para ninguém, a não ser para mim.

Na primeira viagem que realizo à Matola não consigo localizar a minha antiga casa. Reconheço o Cine 700, a escola secundária e a igreja onde fiz a primeira comunhão. Volto na semana seguinte, após estudo de terreno no Google Maps. Aí descubro um telhado do que julgo ser a cantina onde a minha mãe me mandava às compras. Com base nessa referência e nas que obtive na primeira incursão refaço os meus percursos no actual traçado da Matola: após a portagem, virar à direita na Joaquim Chissano, depois na quinta rua à esquerda, logo no primeiro quarteirão à direita onde identificarei a casa do meu tio M. Avançando 200 metros, a casa da Matola há de ficar na terceira rua à direita. Encontro-a, intacta, muito cuidada e bonita! A minha velha casa! O terreno circundante bem ajardinado, flores, árvores altas, muita sombra, que boa surpresa! Esperava o pior. A proprietária, amigável e disponível, mostra-me a factura da luz ainda em nome do meu pai. Sinto-me aturdida pela permanência do passado. No regresso à cidade não me apetece falar.

Outro mundo é possível

Ultrapassada a desconfiança e estranheza que sentem inicialmente, as pessoas são calmas e afáveis sem estardalhaço. A partir do momento em que se sentem à vontade comigo, podem demonstrar comportamentos exagerados para os meus padrões de familiaridade. Há um motorista de táxi que em determinado ponto de visita me assenta uma palmada na barriga da perna para matar um mosquito e no regresso a casa me bate no antebraço perguntando: “Era isto que querias ver?” Não existe o tratamento por você. Somos todos tu. Começo por estranhar que os patrões tuteiem os empregados, mas percebo que são tratados da mesma forma. Poucos dias após a chegada, constato que não vim apenas de fora. Sou de fora. Sinto-me desajustada e sozinha. Penso que me tenha sentido desta forma quando cheguei a Portugal, em 1975. Sei que foi um tempo estranho, mas ultrapassei-o e adaptei-me a uma vida nova, como teria de me adaptar à de Maputo, se tivesse vindo para ficar. Felizmente tenho hoje telemóvel, Whatsapp, Skype, Messenger e posso desabafar com os amigos que à distância me vão dando apoio. Como é que nos aguentámos todos naquele tempo? E como se aguentou quem escolheu ficar em Moçambique para ajudar a construir uma nova nação? Há que falar com pessoas. Estabeleço contactos.

Encontro-me com portugueses que trabalham no Maputo, com moçambicanos que nasceram após a independência, com pessoas da minha idade ou um pouco mais velhas que permaneceram no país após a independência, suportando tempos duríssimos de incerteza, insegurança e fome. Escuto as suas histórias e através do que me vão contando posso reviver os últimos dias do Império e os primeiros da revolução, na qual também acreditei, mas cujo fim testemunhei à distância. Relatam-me a provação que foi a guerra civil. Disfarçam mal a actual descrença nas instituições. Percebe-a pelos não-ditos e pelos hábitos. É-me confirmada quando enuncio a constatação. O país não funciona. A educação é ineficaz. Chega-se ao 12.º ano mal sabendo ler e escrever. A saúde não tem capacidade de resposta, pelo que os moçambicanos com algum poder financeiro escolhem tratar-se na África do Sul e aí ter os seus filhos. Os curandeiros ocupam-se da saúde. Os feiticeiros da Justiça. O tribalismo voltou em força, tal como o lobolo e a poligamia, após os anos de proibição marxista.

Terminados o colonialismo português e a guerra civil, os moçambicanos permaneceram vítimas de conflitos armados, fome, miséria, ausência de liberdade de expressão e domínio das potências estrangeiras de cujo financiamento dependem.

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O pai de Isabela Figueiredo, nos anos 50, na margens do rio Incomati, frente à estação de caminho-de-ferro de Lourenço e Sé Catedral da mesma cidade e os mesmos locais no Maputo de hoje

A crise económica e política que se reflecte no tecido social e no estado geral da nação não agrada a ninguém. As pessoas estão descontentes com o partido no poder, inclusive a elite que dele depende directa ou indirectamente. Todos culpam a prevalência da corrupção como foco de subdesenvolvimento, energias que mutuamente se alimentam, mas pactuam com ela na medida em que seja necessário agilizar procedimentos. Todos esperam que a trégua nas hostilidades entre a Renamo e a Frelimo que se negociou no Natal e foi prorrogada por dois meses se transforme num cessar-fogo efectivo. Os jornais fazem eco da opinião popular.

O povo que paga todas as contas não deseja o actual estado de coisas. O povo não merece e está farto. Ninguém acredita no regime. “Há que aguentar, há que ir passando entre os pingos da chuva.” E as eleições? “Os votos são roubados. Não interessa em quem votamos. Isto não vai mudar”, dizem-me. Transmito estes ecos à elite com a qual me encontro. Uns confirmam-me que ocorreu desvio de votos no passado, outros mencionam a circulação de boatos. Pergunto a todos os lados se a Renamo, de quem o povo fala, é a alternativa democrática possível. Não divergem na resposta: “A Renamo é igual ou pior”. Surgiu um novo partido, mas ainda não se percebeu bem o que quer nem quem congrega. Qual é então o futuro deste país? “Sangue. Muito sangue.” Calo-me. Não me atrevo a dizer seja o que for. Que voz têm os intelectuais moçambicanos? Que contributo podem dar? “Viste o monumento que ergueram à memória do jornalista Carlos Cardoso na Avenida dos Mártires da Machava?! Quem fala, morre. Todos sabem.” Na conjuntura actual o papel dos intelectuais é, por isso, diminuto. Em que medida o actual Presidente Filipe Nyusi atraiçoou o discurso de tomada de posse proferido há dois anos, comprometendo-se com a paz e o progresso com que os moçambicanos sonham? “O Presidente é um homem pacífico e bem-intencionado, mas não possui a força e as qualidades de liderança necessárias.”

O cenário é propício à reserva e desconfiança. Cada um vive no óasis da sua casa sem manutenção de laços sociais relevantes. Não há acontecimentos culturais significativos onde possam encontrar-se. Brancos e negros de classe média e alta, quadros do partido ou de empresas estatais ou internacionais, afectos ao Governo e/ou Frelimo vivem retraidamente nos seus guetos casa-trabalho-supermercado, entre os quais circulam de automóvel, cuja segurança têm de garantir quando estacionam fora de portas —o roubo de peças é frequente, e o destino das mesmas é quase sempre o Mercado Estrela Vermelha. Passo por lá de txopela (3), sem parar. Vejo homens a desmontar monitores de computador no passeio, usando primeiro o martelo, lançando depois o fogo ao PVC para mais facilmente chegar ao material que lhes interessa.

A desesperança que testemunhei ao longo das semanas que passei no Maputo não é compatível com a realidade de uma terra tão agraciada pelos deuses em condições naturais. Ter regressado 41 anos depois ajudou-me a compreender melhor onde e a quem pertenço. Não sei se poderei voltar, ou se o desejarei no futuro, mas na minha terra adoptiva gozo da liberdade de expressão pela qual os moçambicanos anseiam e posso ao menos falar em nome daqueles cujo testemunho escutei, esperando ser escutado por quem toma decisões na terra que um dia também foi minha. Não por ter aí nascido, mas porque a nobreza do povo com o qual contactei na infância merece ser honrada.

As ruas continuam semeadas de acácias, jacarandás e frangipanis que exalam o seu perfume ao final da tarde. Por todo o lado, as frutas, a cor e o caos que eu também sou. A mesma terra igual, mas tudo é outro.

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