Adeus América

Já não tínhamos um dono tão benévolo desde os romanos, que nos escravizavam os filhos mas nos deixaram pontes que ainda se mantém de pé

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Kai Pfaffenbach/Reuters

E depois da última grande guerra civil europeia ainda tivemos quarenta e poucos anos em que não sabíamos a que soaria a voz do novo dono. Nós cá na chafarica, porque o Botas era um macacão e o Melo Antunes um macacão ao cubo, apostámos no inglês ianque em detrimento do cirílico de para lá dos Urais; em 1989 caiu o muro e tivemos a certeza de ter posto o dinheiro no cavalo certo, pigarreámos chico-espertos e fizemo-nos bons alunos da NATO e da União, a escorrer bilateralismo e disciplina orçamental por todos os poros à mostra.

Numa geração o francês era uma língua tão morta como o aramaico, em duas era só “Rambo” no cinema e “Family Ties” na TV, em três reduzimo-nos ao novo soul, “nails”, “caps” ainda com os autocolantes da marca colados, todos os tiques de South L.A. por mais que encenados por netos de cabo-verdianos ou filhos de moldavos. Sem stress, é sempre assim com a ideologia imperial, seja lá qual for o império, sejamos nós tão periféricos como somos.

A bem dizer há que dobrar a língua com as queixas sobre o imperialismo ianque: os chilenos, os vietnamitas e os sul-africanos têm senhas com números bem mais próximos de ser atendidos se essa bicha algum dia se movesse. Já não tínhamos um dono tão benévolo desde os romanos, que nos escravizavam os filhos mas nos deixaram pontes que ainda se mantém de pé; os ianques ao menos, a troco das Lages e da desregulamentação do mercado financeiro, deixaram-nos em sossego para fazermos todas as asneiras que escolhemos fazer. E se formos a fazer as contas às maravilhas que semeámos por duas costas africanas e uma sul-americana (sem falar no Afonso de Albuquerque) é melhor irmos com calma com as bocas sobre imperialismo de toda a maneira.

E todo o modo os ianques eram fascinantes... moíam-nos com o politicamente correcto enquanto continuavam a executar negros na rua como se fosse refresco, ensinavam-nos a reciclar a partir dos seus SUV, peroravam sobre direitos humanos em cima dos ossos dos mortos nativos e dos escravos do algodão, das vítimas de todas as ditaduras apoiadas pela “realpolitik” do Kissinger, sorridentes como se não fosse nada em frente das grades e vedações electrificadas de Guantánamo.

O império egípcio durou 3000 anos, o romano 1000 sólidos do Rómulo à queda da Urbe, o império franco uns 700, o Sacro Império Germânico 600 à vontade, nós e os espanhóis uns 200/300 de absoluta preponderância, até os ingleses se aguentaram mais de 100 anos a dominar a maior parte do mundo conhecido e os ianques ao fim de 70 anos enfiam a cabeça na areia, agarram-se à semi-automática e à diabetes e elegem como “princeps” um troll do Twitter... já não se fazem impérios como antigamente!

E os nossos reaças a pataco da TV (os mais vivaços), ainda crentes no excepcionalismo de que os excepcionais já desistiram, já choram as cebolas do Egipto, abanando os espantalhos do Putin e da Le Pen enquanto nos ameaçam com o jugo de chineses ou angolanos, como se o medo da hipotética bota futura aliviasse a asfixia da bota presente... como se o nosso problema fosse um anti-americanismo primário, como se o problema de comer merda fosse uma questão de tempero.

E eles que continuam fascinantes, brilhantes (nem que seja só o brilho da auto-combustão)... e eu que até simpatizava com estes, sempre tão infantilmente inocentes nas mentiras que contavam a si próprios (land of the free, home of the brave), adoráveis mais que não fosse por causa do Thoreau, da primeira emenda, dos blues...

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