Muito trabalho e pouco sono, a mistura explosiva
Casos de privação do sono chegam cada vez mais aos consultórios. O tema é desvalorizado, dizem os especialistas. Há quem proponha que o trabalho e as aulas tenham início mais tarde. Um livro que acaba de ser publicado em Portugal apela à “revolução” e sugere salas de sesta nos empregos.
Em 2007, Arianna Huffington, co-fundadora do site de notícias The Huffington Post, teve um colapso por falta de sono. O seu dia-a-dia, na altura, era passado como se o dia tivesse mais de 24 horas. “O trabalho era muito mais importante do que dormir”, escreve no seu livro A Revolução do Sono, que acaba de ser publicado em português pela Matéria-Prima. “É evidente que sou indispensável, portanto tenho de trabalhar a noite toda (...). Esta forma de trabalhar e de viver parecia servir-me bem, até deixar de o fazer”, conta.
O “momento eureka” que se seguiu depois serviu-lhe para escrever dois livros. Fundou uma plataforma sobre bem-estar, a Thrive Global, e hoje luta por um mundo que passe mais tempo a dormir. É um combate que existe, porque, diz, a nossa relação com o sono “está em crise”.
Com a apologia de uma revolução, como o título indica, o livro aborda como as contradições do nosso tempo se relacionam com a falta de sono: hoje temos mais informação do que nunca sobre o sono, devido às evoluções tecnológicas, mas são os aparelhos que prolongam o nosso dia de trabalho e não nos deixam desligar... nem dormir; a indústria do bem-estar prolifera, mas passamos noites em que dormimos quase nada.
“Evangelista do sono”, como se chama a si própria, Arianna Huffington, 66 anos, tira o pulso às consequências da falta de descanso do cérebro e explica, citando várias pesquisas, por que razão é um erro vivermos “na ilusão de que conseguimos fazer o nosso trabalho tão bem com quatro ou cinco horas de sono como com sete ou oito”. A privação de sono torna-nos mais vulneráveis a doenças e, acrescenta, a incidência de morte por qualquer causa sobe em 15%, quando dormimos cinco ou menos horas por noite.
Por isso, quando os funcionários de uma empresa estão cansados, “seria melhor para o negócio” eles chegarem mais tarde para ficarem a dormir, em vez de faltarem por razões de saúde uns dias depois. Ou então, prossegue ainda, devia haver um local no emprego onde pudessem fazer sestas — um “remédio de 30 minutos” que pode inverter “o impacto hormonal de uma noite mal dormida”. Os escritórios do The Huffington Post têm salas de sesta.
Arianna Huffington defende também que as empresas deveriam introduzir mais flexibilidade e controlo dos horários de trabalho, de modo a que os seus funcionários tivessem mais tempo para dormir. E que deviam estar mais disponíveis para que quem quer trabalhar em casa o possa fazer, ganhando tempo nas deslocações.
A regra “três vezes 8h”
A questão é que quando se olha para os exemplos vindos dos lugares de topo não falta quem se vanglorie do pouco que dorme e do muito que trabalha, comenta a autora sobre a realidade americana. Em Portugal são famosas as quatro horas de sono do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Os especialistas usam um termo para quem dorme pouco, como o Presidente: “short sleeper”.
Cerca de 20% dos portugueses têm dificuldade em adormecer, diz um estudo da Associação Portuguesa do Sono (APS). Mais de 60% têm problemas de sono, mostra um inquérito de 2016 da Deco, feito a mais de 1100 pessoas — e uma em cada quatro tinha tomado fármacos para a ajudar a adormecer. Joaquim Moita, pneumologista e presidente da APS, diz que os portugueses dormem mal por uma questão cultural. “O sono tende a ser desvalorizado socialmente. Há pessoas que voluntariamente dormem pouco, acham um desperdício de tempo dormir.”
Misturamos dois hábitos terríveis: começar o trabalho — e as aulas, nas escolas — muito cedo com a prática de atrasar o fim do dia laboral, o jantar e a ida para a cama. E até o início das actividades recreativas, como beber um copo, são arrastadas para de madrugada. Tudo isto “resulta num número de horas de sono reduzido”. O que acontece tanto com adultos, como com crianças — muitas começam a acordar às seis da manhã e depois nem sesta fazem na escola. Esta devia ser obrigatória até aos 6 anos, defende o especialista.
Teresa Paiva, precursora na área e fundadora de um centro do sono onde trabalham entre 20 a 30 pessoas, anda a alertar há mais de dez anos para a má relação dos portugueses com o sono. A neurologista, que já tratou de mais de cinco mil casos no consultório, e de outros 10 mil em hospitais, fala da “mania” portuguesa de “que trabalhar muito é bom e produtivo”. Lembra as estatísticas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, que atestam que Portugal é um dos países com mais horas de trabalho, sem que isso se traduza em produtividade (aparece em 9.º lugar, em 1.º está o México e em último a Alemanha). “Nos países do Norte as pessoas saem do trabalho às 17h, aqui é pecado sair antes das 20h.”
No consultório, quando lhe dizem “não tenho horário”, já sabe o que isso significa: trabalho a mais. As 40 horas semanais de trabalho implicam que, por dia, se trabalhe oito horas, se durma oito horas e se passe as outras oito horas em lazer. “Quando as pessoas mudam o paradigma do ‘oito vezes três’ estão, forçosamente, a reduzir o tempo de sono e de descanso”, afirma. “Os portugueses tendem a trabalhar de forma desorganizada, com interrupções. A ideia de fazer multitasking é disparatada: a energia que o cérebro dispende é muito maior do que se fizer uma tarefa depois da outra.”
Um estudo que Teresa Paiva fez com outra especialista em sono, Marta Gonçalves, indica que, em média, os portugueses dormem sete horas por dia, mas que esta média varia entre duas e 11 horas, ou seja, há muita gente a dormir menos de cinco. Isto significa um aumento de riscos: do colesterol, de diabetes, de doenças auto-imunes, de acidente, de cancro, de depressão, de insónia (e de um dia de baixa em breve).
Bancários, funcionários de multinacionais e de grandes empresas de advogados, jornalistas, profissionais dos media são das profissões em que há mais privação de sono, diz.
Dormir menos de cinco horas é claramente insuficiente, defende também Joaquim Moita. Aliás, todos os especialistas contactados dizem que menos do que sete em adultos não é recomendável. Os efeitos da sonolência podem manifestar-se de múltiplas formas, acrescenta: défice de memória, dificuldade de raciocínio, ataques de sono (que acontece muito nos condutores).
Autora de um estudo sobre os efeitos da privação do sono nos médicos, Inês Sanches defende que a privação crónica do sono deveria ser encarada como uma doença — justamente por causa dos efeitos, como a ansiedade e depressão. Com os seus doentes fala normalmente da necessidade de dormir, tenta convencê-los a cumprir as horas de sono mínimas. “Ao não dormir parece que vou estar a poupar tempo para trabalhar, mas no fundo vou ser menos rentável.”
Quanto ao número de horas de repouso que recomenda, varia. Há quem precise de oito, há quem precise de um pouco mais ou menos. São as pessoas que têm de ter a noção do seu perfil. “Quem dorme mais ao fim-de-semana é porque anda a dormir menos do que o necessário durante a semana.” É um bom teste.
Especialista em cronobiologia, ciência que estuda os ritmos circadiários, Cátia Reis diz que os efeitos de dormir menos de cinco horas por noite são vários, porque “há hormonas que só são produzidas durante a noite: a testosterona, a leptina, a hormona da saciedade (e por isso é que existem tantos casos de obesidade)”, por exemplo. É possível ter uma vida normal dormindo quatro horas? “Não”, garante. “Existem muito poucas pessoas” que ficam bem dormindo quatro horas. “No geral, menos do que cinco ou mais do que dez, é patológico.”
Casos de quem dorme pouco são cada vez mais comuns nos consultórios. “As pessoas acabam por ter imensas actividades e não desligam. Algumas vão para o ginásio à noite o que é um problema: é suposto a temperatura corporal descer à noite.”
Dormir para quê?
Por que é que precisamos, afinal, de dedicar uma parte tão grande da nossa vida a dormir? Diogo Pimentel integra uma equipa de investigadores da Universidade de Oxford, em Inglaterra, que fez um estudo sobre o sono, e responde ao PÚBLICO: continua a ser “um mistério”. Já os efeitos negativos da falta de sono estão “bem documentados”.
Explica: a dopamina consegue interromper o sono. Certas drogas psicoestimulantes (cocaína ou anfetaminas) aumentam os níveis de dopamina no cérebro, diminuindo a necessidade de dormir. “Parece-me que o stress, as preocupações, instabilidades, o excesso de trabalho e os prazos apertados que, muitas vezes, temos de cumprir podem fazer algo semelhante através do aumento de hormonas ou activando sistemas (dopamina e não só) que tenham um efeito supressor do sono.”
Cátia Reis trabalha com doentes com “atraso de fase”, os chamados “mochos”, e que muitas vezes têm privação de sono crónica por causa dos seus compromissos sociais. É o caso de António (nome fictício), que precisa de dormir dez horas por dia. “As pessoas não levam a sério a questão do sono”, queixa-se. Há 15 anos, sentiu problemas e pediu ajuda. Primeiro tentou o apoio do Serviço Nacional de Saúde, mas quando percebeu que tinha de esperar três anos para uma consulta foi ao privado. Decidiu também “respeitar” o seu corpo, ir viver para fora de Lisboa e ter uma vida saudável. Professor universitário, conseguiu passar a dar aulas apenas no período da tarde, depois de “negociações” com a direcção.
Já Maria Almeida, 27 anos, trabalha na área de marketing da Beta-i, uma organização que apoia start-ups. Normalmente, chega por volta das 9h e sai pelas 20h, altura em que quase começa um “outro dia de trabalho” com os seus três part-time: o cão, o site Startupship e o podcast É Apenas Fumaça. Dorme mais ou menos cinco horas por noite, porque se desdobra nestas “mil coisas”. O ritmo intensificou-se nos últimos seis meses, ao fim-de-semana tenta recuperar, “mas há sempre interrupções”. Como é que esta privação do sono a afecta? “Sou das pessoas mais maldispostas de manhã”, conta. “Só me apetece deitar o despertador pela janela.”
Tem noção das implicações do cansaço no seu dia-a-dia. Entusiasma-se, quer fazer muita coisa ao mesmo tempo. Mas sente que está “a chegar ao limite”: “Sempre dormi bem e tive a capacidade de desligar. Agora não. E tenho mais dores de cabeça, mais dores de estômago, deixei de comer algumas coisas, porque não me caíam bem.” Por isso, está a pensar em diminuir o volume de trabalho no seu emprego oficial.
Como se altera esta cultura? Com medidas concretas, respondem os especialistas. Em França instaurou-se recentemente uma norma de “direito a desligar” — consagrou-se o direito do trabalhador não responder a emails ou telefonemas depois do horário de expediente (o assunto está em discussão em Portugal).
“Seria um bom começo”, diz Teresa Paiva. Mudar o início de horários escolares e de horários de começo de trabalho seria outra boa ideia. Joaquim Moita, presidente da Associação Portuguesa do Sono, sugere as 9h30 para o ensino básico e as 9h para as universidades.
Teresa Paiva defende que deveria haver uma discussão pública sobre as políticas do trabalho, do descanso e do sono. “Se não se fizer nada, caminhamos para uma sociedade com mais risco de obesidade, depressão, doenças auto-imunes, cancro.”
A questão é convencer uma sociedade inteira de que o sono é tão importante quanto o resto. Vamos, pelo menos, dormir sobre o assunto?