Truman, Kennedy, Ford e Clinton, os Presidentes que perturbaram Portugal
As relações bilaterais Lisboa-Washington atravessam os 240 anos de história dos EUA. Começaram mal, com o Marquês de Pombal furioso. E foram marcadas por quatro momentos.
Os embaixadores americanos em Portugal gostam de lembrar que a assinatura da Declaração de Independência dos EUA, a 4 de Julho de 1776, foi celebrada com vinho da Madeira, muito popular na colónia e o preferido de George Washington.
Há uns dias, Robert Sherman, que hoje deixa o seu posto de embaixador em Lisboa, manteve a tradição e, na festa de despedida, brindou ao “grande país que é Portugal” com um cálice de Madeira. Foi ele, contou aos convidados, quem ofereceu o Madeira bebido para festejar o acordo nuclear do Ocidente com o Irão, assinado há dois anos em Viena. A linhagem portuguesa desta história não acaba aqui. O “mensageiro” da garrafa foi o secretário da Energia norte-americano, Ernest Moniz, um físico nuclear neto de açorianos, e o destinatário foi o secretário de Estado John Kerry, casado com uma portuguesa.
Mas para além de fait-divers e laços familiares, banais num país construído por emigrantes, a nível político Portugal atravessa todos os 240 anos da história dos Estados Unidos.
Desde a desconfiança do Marquês de Pombal, que não gostou de ver as colónias britânicas na América tornarem-se independentes, receando um efeito de contágio ao Brasil — e que decretou logo a 4 de Julho de 1776 a interdição de navios americanos nos portos portugueses, declarando-os piratas —, à actual desvalorização da Base das Lajes, passando pela controversa Cimeira da Guerra, na base das Lajes, na qual George W. Bush, Tony Blair, Durão Barroso e José Maria Aznar anunciaram em 2003 a guerra contra o Iraque, Portugal foi e deixou de ser, alternadamente, uma prioridade na agenda americana.
Hoje, segundo Sherman resumiu ao PÚBLICO, os EUA olham para Portugal como "parceiro de uma aliança estratégica”, na qual os dois Governos estão "empenhados em tornar as já fortes relações bilaterais ainda mais fortes e profundas".
Mas nem sempre foi assim.
Há quatro momentos decisivos: a integração de Portugal no Bloco Americano a seguir à II Guerra Mundial; a oposição de John Kennedy ao colonialismo do Estado Novo; o apoio a Mário Soares durante o PREC em vez do isolamento de Portugal; e o frustrante abandono dos EUA em relação a Timor, cujo processo de independência acabou, apesar de tudo, com um gesto decisivo de Bill Clinton.
A integração no Bloco Americano
A seguir à II Guerra Mundial, com o início da Guerra Fria e a emergência do sistema internacional bipolar, Portugal fez um alinhamento claro ao pólo liderado pelos EUA. Para Tiago Moreira de Sá, professor do Departamento de Estudos Políticos da Universidade Nova de Lisboa, este é um dos momentos mais marcantes das relações bilaterais. O professor e investigador do IPRI destaca a assinatura dos novos acordos sobre o uso das bases militares dos Açores, a participação no Plano Marshall e a adesão à NATO. O convite para participar no Plano Marshall, escreve Moreira de Sá no seu último livro, História das Relações Portugal-EUA (1776-2015), “representava a integração internacional do Estado Novo”, que assim somava o campo económico (novo) ao militar (que vinha de trás).
Salazar resistiu até ao fim, mas em Setembro de 1948 acabou por pedir ajuda e Portugal recebeu do Plano Marshall 90 milhões de dólares, um valor modesto se comparado com o que países destruídos pela guerra receberam, mas significativo para as contas nacionais.
Nesta altura, surgiu o convite para integrar a NATO. Em 1948, a integração num bloco não era uma questão abstracta. A entrada de Portugal na ONU fora repetidamente vetada pela URSS no Conselho de Segurança. Mas Salazar não gostou da ideia. “Salazar recebeu a sondagem [informal feita pelo embaixador britânico] com surpresa e muitas reservas”, escreve Moreira de Sá. O ditador português receava que a NATO fosse “uma força americana disfarçada com o objectivo de obter bases permanentes na Europa; que a entrada de Portugal pusesse em causa as relações com Espanha, e que a NATO se tornasse um pacto não apenas anticomunista, mas antialemão". Esta posição não era consensual. O regime ficou dividido e Salazar colocou condições a Washington. Seis meses após o início das discussões, e depois de ver todos os pedidos recusados, o regime deu luz verde à adesão à NATO. “Pareceu difícil em tais circunstâncias estarmos ausentes”, explicou Salazar no Parlamento. Em 1949, Portugal é a única ditadura a integrar a NATO, uma liga de democracias, e para Tiago Moreira de Sá a razão é clara: geostrategicamente, os Açores tinham um papel central no novo sistema de segurança montado a pensar na ameaça soviética.
A adesão à NATO, embora relutante, foi a parte fácil deste novo ciclo. Tensa foi a renegociação sobre as bases açorianas. Logo em 1946, tornou-se claro que existia uma ambição renovada dos americanos em relação aos Açores e ao uso de bases em Cabo Verde. Harry Truman queria direitos de longo prazo – 99 anos. E Salazar queria, como contrapartida, “uma espécie de aliança militar defensiva”, nas palavras de Moreira de Sá, à semelhança da que existia com o Reino Unido. O acordo não avançou.
Ao mesmo tempo, um outro acordo a decorrer em paralelo, acabou por gerar uma crise de relacionamento bilateral grave, que exigiu a “intervenção directa de Salazar para ser ultrapassada”, escreve o investigador. Lisboa exigiu a transição gradual dos serviços feitos nas Lajes para técnicos portugueses (e portanto também de material americano), o que causou “grande perplexidade” em Washington. Se essa fosse a posição final de Lisboa, os americanos sairiam das Lajes numa questão de dias. Ao mesmo tempo que o Reino Unido e o Brasil faziam pressão para que se chegasse rapidamente a consenso, Salazar pôs água na fervura, reunindo-se com o embaixador americano em Lisboa.
Após meses de negociações, resolveram-se os principais pontos de discórdia: os EUA podiam usar as bases para os seus aviões em trânsito durante três anos renováveis e haveria um máximo de 550 militares dos EUA, corpo que seria “reduzido progressivamente na medida em que os portugueses se mostrarem aptos a substituí-los nas suas funções”. A aceitação de um “relacionamento preferencial com os EUA traduzia agora a constante da política externa portuguesa de alinhamento com a maior potência marítima e atlântica”, resume Moreira de Sá.
A oposição de Kennedy ao colonialismo
1961 foi um dos anos mais difíceis e tensos na história das relações diplomáticas entre Portugal e os EUA. Do princípio ao fim, literalmente. A 20 de Janeiro, John Kennedy toma posse como Presidente e assume uma nova “política africana” hostil ao colonialismo. E em Dezembro, Salazar acaba o ano a exprimir “amargura” em relação à posição norte-americana relativa à Índia de Nehru, cuja operação militar em Goa pôs fim, em 36 horas, a 500 anos do Estado Português da Índia. “É particularmente viva a revolta [de Salazar] contra a atitude dos Estados Unidos”, escreveu Franco Nogueira nas suas memórias (Salazar Vol. V – A Resistência). O investigador Tiago Moreira de Sá não tem dúvida: "Foi durante o curto tempo da presidência Kennedy que os dois países conheceram a mais grave crise de todo o pós-1945”. Desde as primeiras horas.
Henrique Galvão desvia o paquete Santa Maria a 22 de Janeiro de 1961, dois dias depois de Kennedy tomar posse. Portugal pede ajuda aos EUA para localizar e interceptar o navio, e prender Galvão, de modo a julgá-lo por “pirataria e homicídio”. Como fazem os aliados, Washington começa por concordar (havia 42 passageiros norte-americanos a bordo). Horas depois, no entanto, muda de posição. Com mais informação, Kennedy acaba por fazer uma leitura diferente da de Salazar: a captura do Santa Maria não era um acto criminoso, mas um acto político de oposição à ditadura.
E assim, a 25 de Janeiro, na primeira conferência de imprensa do seu mandato, Kennedy fala de Portugal e do Santa Maria. “O comportamento dos EUA em todo o episódio provocou um profundo mal-estar em Portugal”, escreve Moreira de Sá. Através dos canais diplomáticos, sucederam-se os protestos. Nada era inocente. Nem por acaso. “Para Henrique Galvão, Kennedy e os EUA representavam o regime democrático ocidental que ele ambicionava para o nosso país”, diz Francisco Teixeira da Mota, autor de Henrique Galvão – Um Herói Português. Do mesmo modo que, para Kennedy, “a aventura de Galvão permitia-lhe, logo no início do mandato, marcar distância em relação a um aliado que tinha um regime obsoleto e particularmente incómodo quanto à questão colonial”.
Neste contexto, quando Kennedy enviou um almirante falar com Galvão a bordo do Santa Maria, não espanta que Lisboa tenha dito que o gesto era um “reconhecimento” e “apoio aberto” a um traidor. Washington respondeu que era apenas uma manobra “táctica” para proteger os passageiros, mas o regime não terá acreditado, diz Luís Nuno Rodrigues, Director do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL e autor de Kennedy-Salazar: a crise de uma aliança.
No início de Fevereiro, o conselho de ministros português emite, apesar de tudo, uma nota de imprensa na qual exprime “o apreço da Nação portuguesa pela posição assumida pelo Governo dos Estados Unidos”. Mas a nota mascara a ira de Salazar. E esconde o descontentamento nos círculos políticos portugueses em relação aos americanos. Anos depois, o embaixador Pedro Teotónio Pereira classificou a posição de Kennedy como “espantosa”. Mas a acidez emergiu logo na altura, conta Luís Nuno Rodrigues: “Num regime com censura e controlo apertado do que se publicava, é revelador o editorial do Diário da Manhã de 4 de Fevereiro de1961, criticando o ‘chamado mundo livre’ pelo modo como, ao longo do episódio do Santa Maria, ‘falhou nos seus compromissos e interesses vitais colectivos, servindo, paradoxalmente, os objectivos ocultos do inimigo comum: o bloco comunista’”.
A mudança americana não terá sido uma surpresa total. Salazar conhecia certamente o relatório que Edward Kennedy escrevera com um grupo de senadores democratas que tinham viajado por África ainda em 1960, onde defendia que os EUA “deviam abandonar a atitude de meros observadores dos fenómenos africanos e assumir uma posição de apoio ao nacionalismo emergente”, diz Rodrigues. E dizia também que a nova administração americana, em colaboração com o Reino Unido, devia exercer “forte pressão sobre Portugal no sentido da emancipação dos seus territórios africanos”.
O professor do ISCTE acredita que Salazar sabia que a política africana dos EUA ira mudar. Porque “essas alterações já se tinham começado a verificar na fase final da administração Eisenhower” e porque logo a seguir à eleição de Kennedy, o embaixador de Portugal nos EUA, Luís Esteves Fernandes, enviou um telegrama para Lisboa no qual diz que a vitória de Kennedy é o começo dos novos “anos sessenta”. Novos anos que, diz o diplomata, iriam ser “certamente prejudiciais ao relacionamento entre Portugal e os EUA", pois a nova administração ia adoptar uma "política anticolonial subordinada ao princípio da libertação de todos os territórios dependentes”.
O apoio a Mário Soares, o moderado
Os EUA começaram por não dar grande importância ao 25 de Abril de 1974. A sua atitude inicial foi de “surpresa e desinteresse”, escreve Tiago Moreira de Sá, cuja tese de doutoramento é sobre este período de transição. Por pouco tempo. Meses depois, Washington já descrevia o governo de Vasco Gonçalves como “radical e repressivo”, tinha Portugal entre as suas prioridades da política externa e era “o futuro do relacionamento de Portugal com os EUA, o Ocidente e a NATO” que estava em causa.
Foi a seguir à queda do I Governo Provisório que os alarmes soaram. Washington parece ter reparado então que havia membros do Partido Comunista Português no governo de um país da NATO e passa a recear uma revolução comunista.
A partir do Verão de 1974, Portugal passa a ser olhado como um “precedente perigoso” que podia “gerar um efeito de dominó em toda a Europa”. A seguir a Lisboa, seriam Roma, Paris, Atenas e Madrid. O “problema do comunismo em toda a bacia do Mediterrâneo”, como disse Kissinger ao embaixador americano em Lisboa, chamado aos EUA para discutir a situação portuguesa. “Mais tarde fui criticado, em conselho de ministros, por Álvaro Cunhal, ‘por ter deixado fascistas em grandes postos no Ministério’” dos Negócios Estrangeiros, conta Mário Soares, então chefe da diplomacia, em Um Político Assume-se: Ensaio Autobiográfico, Político e Ideológico.
Nessa reunião em Washington, Kissinger pede ao embaixador que diga ao general Spínola, Presidente, que os EUA “teriam bastante em conta” a forma como Portugal “lidasse com o problema” da influência comunista nas suas decisões futuras. Não eram ameças vãs. Logo em Outubro de 1974, o Presidente Gerald Ford suspende um programa de ajuda económica que estava a ser preparado. Spínola sai e entra Costa Gomes. É ele que Soares acompanha a Washington, pouco depois. “Os americanos não nos ocultaram a sua preocupação relativamente à deriva extremista da revolução, que começava a ser muito comentada na imprensa ocidental”, escreve Soares na sua autobiografia de 2011. Foi nessa viagem que Kissinger disse ao antigo Presidente socialista que ele seria “o Kerensky português", numa referência ao adversário de Lenine que saiu derrotado da revolução de 1917. “Respondi-lhe que Portugal não era a Rússia e que as situações não iam repetir-se. E que voltaria tranquilamente a Portugal, porque nada de definitivo estava ainda jogado, apesar das aparências.” Kissinger não ficou convencido e um mês depois os EUA dão início ao processo de isolamento de Portugal na NATO, retirando Lisboa do Grupo de Planeamento Nuclear.
Com o 11 de Março de 1975 (o falhado golpe militar de Spínola), Lisboa torna-se uma prioridade para Washington. O golpe foi “um ponto de viragem fundamental no PREC”, escreve Soares, “que entrou numa fase mais radical, perigosa e decisiva — nesse próprio dia”. “Era o começo do avanço do comunismo.” Três meses antes, no I Congresso do PS, Soares apresentara já o relatório Socialismo, sim, ditadura, não!. Agora, Soares denunciava “a nova censura” do PCP. A atmosfera era tensa e os rumores iam em todas as direcções: o PCP preparava uma “matança da Páscoa”, a CIA preparava um golpe contra a revolução.
Logo a seguir ao 11 de Março, Kissinger pediu ao seu novo embaixador, Frank Carlucci, que dissesse a Costa Gomes, “em termos fortes”, que os EUA estavam “preocupados com o tom estridentemente anti-Ocidente, anti-Estados Unidos e anti-NATO” que vinha de Lisboa. Expulsar Portugal da NATO foi uma hipótese “seriamente equacionada pelo executivo norte-americano”, escreve Moreira de Sá, mas que encontrou oposição dos aliados europeus — e do próprio embaixador americano. “Carlucci chega a Lisboa em Janeiro de 1975 com um mandato claro: acabar com o comunismo. Mas rapidamente percebe que Kissinger estava enganado e que era muito improvável que fossem os comunistas a definir o regime pós-25 de Abril”, diz Moreira de Sá ao PÚBLICO. "Carlucci viu Portugal deste modo: era muito longe da URSS; a esmagadora maioria das suas relações comerciais eram com a Europa Ocidental; de Lisboa para cima, a propriedade era privada, e a Igreja tinha muito poder.” O mais inteligente para os EUA, pensou Carlucci, era apoiar o Partido Socialista. “Carlucci percebeu que, depois de uma revolução que derrubou uma ditadura muito à direita, era normal que o processo político estivesse à esquerda. E por isso, a melhor forma de apoiar a democracia não era ajudar os partidos de direita, mas os partidos de esquerda não comunistas”, diz Moreira de Sá.
Henry Kissinger discorda. Em pleno Verão Quente, o secretário de Estado insiste na sua posição e diz que os EUA estão “muito preocupados com o futuro de Portugal”. Alinhado, Ford não vê “como se pode ter uma presença comunista numa organização criada para enfrentar o comunismo”. É neste momento que Carlucci decide usar a sua rede de contactos para impor a sua visão. O chefe de gabinete de Ford era Donald Rumsfeld, seu amigo e ex-roommate na Universidade de Princeton. Uma proximidade decisiva. Deste braço de ferro, Carlucci saiu vencedor. Os EUA não isolaram Portugal e apoiaram Mário Soares. A partir daqui, defende Moreia de Sá, Washington “contribuiu de forma bastante relevante para o resultado final do processo de transição democrática em Portugal”, influenciando a formação do novo governo, ajudando a acabar com o PREC e assumindo um papel liderante após o 25 de Novembro, que abriu a porta ao pluralismo democrático. Na prática, isto significou apoio económico e militar.
O empurrão contra — e a favor — de Timor
Na democracia portuguesa, Timor-Leste foi o problema diplomático que mais tempo esteve aberto — e sem fim à vista — nos Negócios Estrangeiros. E, paradoxalmente, foi o assunto que menos preocupou os EUA. Washington surge no início (da pior forma), durante os 25 anos seguintes (omisso e ausente) e no fim (rápido e eficaz).
Apesar de tudo, nesse quarto de século de inacção americana, há uma não-acção importante, como sublinha o antigo secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros Fernando Neves, que entre 1997-99 foi encarregado de missão para Timor junto do ministro Jaime Gama e por isso foi uma peça-chave nas negociações com a Indonésia, mediadas pela ONU, que resultaram no referendo e independência do país. “Para nosso bem”, diz o antigo embaixador, “os EUA nunca reconheceram a integração de Timor-Leste na Indonésia, o que ajudou a que ninguém mais, além da Austrália pelas razões sabidas, o tivesse feito”.
Isso ajudou a que Timor-Leste continuasse na agenda da ONU. Mas até Kofi Annan tomar posse como secretário-geral em 1997 — e falar sobre Timor na sua primeiríssima intervenção —, nem os EUA nem ninguém queria ouvir falar de Timor, incluindo os aliados europeus de Portugal. A antiga diplomata Ana Gomes, hoje eurodeputada pelo PS, acredita que até ao massacre no cemitério de Santa Cruz, em Díli, em 1991, “80% dos diplomatas portugueses davam a causa de Timor como perdida”.
A relação estratégica dos EUA com a Indonésia foi decisiva nesse pessimismo. Desde sempre se especulou sobre o Presidente Ford e Kissinger terem dado luz verde à invasão de Timor numa reunião em Jacarta, na véspera da operação, com o Presidente indonésio Suharto. Em 2001, a desclassificação do telegrama secreto enviado para Washington confirmou a suspeita sem margem para dúvidas.
Nesse encontro, Suharto diz a Ford que “a Indonésia não tem ambições territoriais”, mas que, por estar “preocupada com a segurança”, está a avaliar “o que pode fazer para estabelecer a paz” em Timor. “Espero que nos compreendam se considerarmos necessário tomar alguma acção rápida ou drástica”, diz o ditador indonésio. Ao que Ford responde: “Nós compreendemos o vosso problema e as vossas intenções.” Kissinger intervém para antecipar um problema legal: “O uso de armas de fabrico norte-americano”. “Teríamos problemas técnicos e legais, como tivemos em Chipre”, reforça Ford. “Depende de como o explicamos, se foi em auto-defesa ou numa operação no estrangeiro”, diz Kissinger, sugerindo uma solução mascarada. “É importante que seja o que for que façam se resolva rapidamente.” Idealmente, depois da sua partida para os EUA, de modo a poderem ajudar a comunicar a situação de viva voz. A seguir, vem a última pergunta de Kissinger: “Antecipa uma longa guerra de guerrilha?” Ao que Suharto, calado há alguns minutos, responde: “Será provavelmente pequena. A UDT representa os antigos funcionários de governo e a Fretilin os antigos soldados — que, tal como o Exército português, estão infectados pelo comunismo.”
Neste ponto, o ditador indonésio avança para um tema novo, o preço do petróleo. Na breve conversa sobre Timor — tudo se resume a 13 frases — nenhum dos três fala de forma explícita em “invadir” a ilha que ainda era uma colónia portuguesa, mas nada fica por dizer.
No dia seguinte, começou a Operação Komodo. Mais de 200 mil timorenses terão morrido nos primeiros anos da anexação.
Já a 5 de Julho desse ano, quando Suharto e Ford falaram em Camp David, os interesses e a posição de Portugal em relação a Timor tinham sido a última preocupação dos americanos. Em pleno Verão Quente português, os EUA olhavam para Portugal com enorme desconfiança. Depois da derrota americana no Vietname, o futuro de uma minúscula colónia com líderes comunistas era mais do que irrelevante quando comparado com o futuro de um gigante anti-comunista. Devia ser esmagado.
Tal como Kissinger previra, a questão das armas tornou-se um problema. Em 1977, pressionado pela opinião pública, o Comité de Relações Internacionais do Congresso americano fez audições sobre o papel dos EUA na invasão de Timor e revelou que várias armas americanas foram de facto usadas na operação, entre as quais 16 aviões Rockwell OV-10 Bronco, três Lockheed C-130, 36 carros blindados Cadillac-Gage V-150, para além de helicópteros S-61, metralhadores M-16, pistolas e morteiros.
Durante anos, os EUA continuaram a apoiar e a vender armamento ao regime indonésio. Havia congressistas que defendiam Timor-Leste, mas eram poucos. “O Departamento de Estado norte-americano recebia-nos, mas sempre a baixo nível”, conta Ana Gomes, que anos depois foi a primeira embaixadora de Portugal em Jacarta. Já nos anos 1990, quando os direitos humanos ganharam “uma considerável relevância na política internacional", Kofi Annan anuncia que quer resolver Timor e nomeia um representante pessoal para Timor-Leste logo nos primeiros dias do seu mandato, um facto inédito. “Nessa altura, tivemos a clara percepção de que devíamos aproveitar o facto de em Washington estar uma geração que já não tinha nem a memória, nem razões para o apoio que os EUA tinham dado à anexação e que seria sensível aos valores dos direitos humanos", diz Fernando Neves.
E assim, antes de iniciarem as negociações com a Indonésia, Fernando Neves foi a Washington encontrar-se com Stanley Roth, então um novo sub-Secretário de Estado para a Ásia e Pacífico que, na leitura da diplomacia portuguesa, era “o menos pró-indonésio” de sempre. “Os americanos partilhavam, talvez menos do que Londres, a visão australiana de que o problema de Timor-Leste só existia porque nós insistíamos em falar nele e incitar os timorenses à resistência”, diz Fernando Neves. “Roth ouviu as nossas ideias (negociar um estatuto especial em Timor que pusesse fim à violência e deixasse em aberto o exercício da autodeterminação) com ar de quem as achava uma fantasia, mas disse que se conseguíssemos não teriam nada a opor.”
A chave da mudança, todos concordam, “é a transição indonésia, depois da demissão de Suharto [em 1998], que se torna inseparável do processo de autodeterminação timorense a partir do momento em que o Presidente Habibie aceita a realização de um referendo”, resume Carlos Gaspar, investigador do IPRI e na altura assessor político no Palácio de Belém.
Para surpresa generalizada, o novo Presidente B.J. Habibie altera a política em relação a Timor apenas seis meses depois de tomar posse. O Presidente australiano enviara uma carta a sugerir que a Indonésia resolvesse Timor como a França resolvera a Nova Caledónia “e Habibie fica furioso”, conta Ana Gomes. “Porque achava que os australianos não tinham de se meter e porque achava os timorenses um bando de católicos ingratos.” Sem discutir com ninguém a alto nível, Habibie disse que estava disposto a dar um “estatuto especial” a Timor — autonomia dentro da República Indonésia — e que seriam os timorenses a escolher. “Isso ou a independência”, relembra a antiga diplomata. “Nós não queríamos acreditar. Os próprios indonésios foram apanhados de surpresa. Encontrei-me com o ministro [dos Negócios Estrangeiros] Ali Alatas dias depois e ele ainda estava perdido. Nós, claro, sentimos que era uma janela de oportunidade que não podíamos perder. Estávamos a negociar a bicicleta e eles oferecem um Mercedes! Foram os indonésios que introduziram a palavra ‘independência’!”
Depois desta viragem, tanto os EUA como a Austrália alteram as suas políticas “para poderem responder à nova situação”, uma vez que se esperava que o referendo tivesse como resultado a independência de Timor-Leste, diz Carlos Gaspar.
É depois do referendo e da destruição radical do país que os EUA têm uma intervenção positiva e pela primeira vez alinhada com os interesses de Portugal. “Quando começou a violência, os americanos foram impecáveis, com particular destaque para o embaixador em Portugal, Gerald McGowan, e do n.º2 de Roth, a quem eu falava a desoras”, conta Fernando Neves. Mas o decisivo veio depois, no Verão de 1999. "Washington foi crucial para assegurar o reconhecimento indonésio do resultado do referendo”, diz Gaspar. “E a retirada das tropas indonésias e a intervenção da ONU com a INTERFET, que é, no essencial, uma intervenção dos Estados Unidos, da Austrália e da Nova Zelândia”.
Foi o embaixador Freitas Ferraz, na altura assessor diplomático de António Guterres em São Bento, quem, às 4h da manhã, ligou para o Situation Room da Casa Branca a dizer que o primeiro-ministro de Portugal precisava de falar com o Presidente com urgência. O diplomata acabara de ler no site do New York Times que tanto o secretário de Estado americano como o Conselheiro para a Segurança Nacional não acreditavam no envio de capacetes azuis para Timor, cuja destruição era transmitida live nos ecrãs da CNN. “Disseram-me que o Presidente ia viajar para o leste, mas a conversa acabou por acontecer horas depois”, conta o embaixador. Guterres disse a Bill Clinton que Portugal não compreenderia que os EUA e a comunidade internacional não apoiassem o país num momento destes, quando Portugal tinha até tropas no Kosovo. “Clinton deu-nos o apoio, mas tivemos de sofrer até ele obter o sim do Pentágono”, diz Fernando Neves. “Não é só a Europa que tem mais de um número de telefone…”. Dias depois, as tropas entraram em Díli e Clinton cortou o apoio militar dos EUA à Indonésia, contrariando uma política de cooperação de décadas.