Crescer triste
Dois livros do norueguês Karl Ove Knausgård: o quarto volume da saga autobiográfica parece ser o mais ficcionado de todos os publicados; e um livro de narrativas curtas onde se encontra pouco do autor de A Minha Luta.
Ao quarto volume — Dança no Escuro — da sua saga autobiográfica, a luta do norueguês Karl Ove Kanausgård (n. 1968) continua para responder às perguntas que formula neste livro: “Quem somos quando não sabemos quem somos? Quem somos quando não nos lembramos de que existimos?” Depois de um primeiro volume (A Morte do Pai), profundo e doloroso, em que conta a história de um progenitor frio, alcoólico, e desapegado dos filhos, seguido de um segundo (Um Homem Apaixonado) em que narra a experiência do seu segundo casamento, e de um terceiro (A Ilha da Infância) em que escreve uma espécie de tratado do medo para apresentar a infância como um tempo ferido, surge Dança no Escuro para começar a completar (faltam dois volumes) o mapa íntimo de um homem que procura sentido para a sua experiência de vida através do poder introspectivo trazido pela escrita. Muito à semelhança do que Rousseau fez em Confissões há quase 300 anos, também Knausgård conta a história de um homem a partir dos sentimentos que o foram moldando por dentro e que acabam por o definir.
O epicentro deste quarto volume é o período da adolescência. O jovem Karl Ove tem dezoito anos, acabou os estudos secundários, ouve as músicas que todos ouvem, e descobriu recentemente a vocação da escrita — por causa disso opta por não ir estudar para a universidade e adiar o serviço militar, mas sim trabalhar como professor num pequeno lugar perdido nos fiordes do norte da Noruega, Håfjord. Os seus alunos são apenas quatro ou cinco anos mais novos do que ele. A pequena aldeia é a promessa de sossego e de tempo para se dedicar à escrita e à leitura, sobretudo dos livros com história de jovens que “viajavam, embriagavam-se, liam e sonhavam com o grande amor ou o grande romance”. Mas depois das promessas chega o desengano. O rapaz Karl Ove é empurrado em todas as direcções por causa da sua sensibilidade: ele é um jovem ansioso por beber a vida, que vive em busca de um qualquer sentido. Quer sentir-se adulto, um homem, e afirmar a sua masculinidade (o que não lhe traz qualquer sossego); apanha bebedeiras e o seu interesse por raparigas parece exacerbado. Para piorar as coisas elas não lhe dispensavam o interesse que ele desejava, havia um abismo (que o torturava) entre ele e as raparigas, mas não desiste daqueles ‘corrosivos’ alvos de desejo: “Vi-lhe as nádegas firmes, esbeltas e perfeitamente talhadas, e senti uma espécie de abismo abrir-se dentro de mim. (…) Eu amaldiçoava o abismo: Amaldiçoava-me a mim próprio. Mas, por mais frustrante que tudo fosse, gi por mais deprimente que se tornasse, as mulheres mantinham o seu esplendor intacto.” O estado amoroso era para Karl Ove uma agonia, uma contínua exaltação e frustração que levava a um retraimento carregado de humilhação, uma efervescência nem sempre hormonal nem mergulhada em desejo sexual: “Tudo girava à sua volta, tudo o que eu queria era estar ao seu lado, não para ir para a cama com ela, nem sequer na esperança de um beijo ou de uma carícia, não, não era isso gi, era a luz e a exaltação que me enchiam quando a via o que me atraía nela.”
Ao mesmo tempo que narra o tempo passado na aldeia, Knausgård conta episódios da sua vida passados nos anos anteriores, e sempre com uma paisagem familiar algo perturbante: os silêncios da mãe, o irmão mais velho que se afastara, e o pai que “continuava igual a si próprio, com a mesma frieza e a mesma dureza” com que o tratara no passado, causando-lhe um medo que ele não deixara ainda de sentir. Este volume é provavelmente o mais ‘ficcionado’ dos quatro publicados, não apenas pela profusão de diálogos mas igualmente pelas descrições feitas (o que de forma alguma lhe retira o carácter fortemente autobiográfico), e também o menos ostensivamente reflexivo — a reflexão, de certa forma, passou para os actos descritos e conversas, em vez das longas divagações, como se fossem àpartes, que se encontravam nos livros anteriores.
A escrita de Karl Ove Knausgård transforma o tempo em palavras, como se com a sua subtileza de narrar, de poder introspectivo e visceral, se libertasse de incomodidades obscuras; não apenas ele (autor e narrador) mas também o leitor é arrastado neste processo de emersão catártico de que nenhum dos dois sai ileso: por vezes a agonia de ser Karl Ove é também a agonia do leitor, a agonia da nossa relação com o mundo e com nós próprios. Camilo José Cela, a abrir o genial livro que é Ofício de Trevas 5 (Bertrand, 1978), escreveu: “evidentemente que isto não é um romance mas a purga do meu coração”; poucos livros merecerão esta abertura, os seis volumes do ‘romance’ A Minha Luta merecem-na inteiramente.
Ao mesmo tempo que foi publicado Dança no Escuro, veio também a público, do mesmo autor (com algumas ilustrações de Vanessa Baird), a tradução de No Outono, o primeiro de quatro volumes titulados com as estações do ano. São narrativas curtas, apressadas, de duas a três páginas. A abrir o livro pode ler-se “carta a uma filha que vai nascer”, e o primeiro texto é isso que deixa parecer, mas logo os que se seguem mudam de registo, passando a ser uma espécie de ‘descrição do mundo’ em redor do autor, que tem como alvos assuntos como as pastilhas elásticas, os sapos, molduras, golfinhos, víboras, urina, igrejas… Quem leu os volumes de A Minha Luta pouco reconhecerá de Knausgård nestas narrativas curtas, nem o estilo introspectivo, nem a reflexão, nem aquela espécie de prosa tentacular que arrasta o leitor. No entanto, e apesar da ligeireza dos escritos, o leitor ainda é surpreendido de vez em quando com algumas frases de efeito ou com reflexões interessantes, como a que faz sobre a criação de animais domésticos: “O problema do apicultor é que nada se possa oferecer às abelhas que elas não possam arranjar, são completamente autónomas, e que elas se mantenham precisamente ali, nas colmeias do apicultor, não é certo.”