A fragilidade dos homens em Tennessee Williams
A Noite da Iguana fecha o ciclo Tennessee Williams a que Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos se vêm dedicando desde 2014. Uma operação dura, onerosa e gratificante.
O plano inicial de Jorge Silva Melo com os Artistas Unidos passava por fazer, por ordem cronológica, três dos textos fundamentais de Tennessee Williams: Gata em Telhado de Zinco Quente (1955), Doce Pássaro da Juventude (1959) e A Noite da Iguana (1961). Era isso que estava previsto quando estreou Gata em Telhado de Zinco Quente, em Setembro de 2014, desperto para esta possibilidade graças à fortuna de ver os “seus” actores, Rúben Gomes ou Maria João Luís, na idade certa para se enfiarem debaixo da pele das personagens magnéticas criadas pelo dramaturgo norte-americano. “Quando tenho actores com a idade das personagens penso sempre: será possível eles fazerem esta peça, mostrarem-ma?”, diz o encenador ao Ípsilon. “E é como se nunca a tivesse visto, deixo-a correr, o texto é um íman a que me submeto, dançando ao seu compasso.”
Durante estes anos a braços com Tennessee Williams, foi tempo de encontrar “parceiros para co-produções, reunir traduções, acertar datas com elencos”. Uma operação de tal forma “dura e onerosa do ponto de vista da produção”, embora “gratificante artisticamente”, que Silva Melo duvida que tenha coragem para se meter em semelhantes trabalhos nos próximos anos. Acontece que, enquanto desenvolvia estes esforços, a indefinição em que se encontrava a situação dos Artistas no Teatro da Politécnica foi-se prolongando e, às três peças do plano original, juntou-se uma quarta, outro texto obrigatório: Jardim Zoológico de Vidro, cujos direitos estavam já adquiridos. Agora, que A Noite da Iguana encerra o ciclo com apresentações no Teatro São Luiz (Lisboa, 19 de Janeiro a 5 de Fevereiro), no Teatro Nacional de São João (Porto, 9 a 26 de Fevereiro), no Teatro Aveirense (Aveiro, 4 de Março), no Teatro Municipal Joaquim Benite (Almada, 25 a 27 de Março) e no Cine-Teatro Louletano (Loulé, 31 de Março), o fecho deste capítulo serve também para o encenador desabafar que “o tecido teatral está bastante desafinado e à palavra dada nem sempre tem correspondido o compromisso efectivo”. “Este ciclo permitiu-me ver quem está perto do que fazemos: e não somos já muitos, nem pensar.”
A recorrência de actores como Catarina Wallenstein, Américo Silva, Tiago Matias, Rúben Gomes, Maria João Luís, Vânia Rodrigues ou Isabel Muñoz Cardoso na totalidade ou em parte destas quatro peças investiu Silva Melo, momentaneamente, de uma ideia de companhia que está em extinção. “É como se vivêssemos juntos”, diz. “E creio que esse prazer se estende ao espectador – é tão bom ver os mesmos actores mostrarem outros aspectos de si mesmos.” Nuno Lopes, o ex-reverendo Lawrence Shannon que descobrimos no Hotel Costa Verde no Verão de 1940, situado sobre a enseada de Puerto Barrio no México, só tinha trabalhado com Silva Melo durante um único dia durante a rodagem do filme António, Um Rapaz de Lisboa, em 1999. Voltou a pensar nele quando, em finais de 2015, o Teatro São Luiz lhe deu datas para a estreia da peça. Depois foi espreitá-lo em cena durante a carreira de A Conquista do Pólo Sul, de Manfred Karge numa encenação de Beatriz Batarda, e a partir desse dia, lembra, “o Shannon passou mesmo a ser o Nuno”.
Na visita repetida a um mesmo autor, Jorge Silva Melo acaba por ver-se sempre surpreendido, mesmo quando, enganadoramente, julga já conhecer de cor as voltas do dramaturgo. Na escrita de Williams, “realmente indisciplinada, febril, desorganizada, em estado de permanente dor, ferida que não cicatriza”, não esperava encontrar uma cena entre pai e filho em Gata… que ocupasse mais de metade do espectáculo, assim como não supunha que este Shannon fosse um ser “tão frágil”. Terá sido esse o seu segredo, afirma em relação a Williams: “a tocante fragilidade dos seus homens, tão imperfeitos.” “O Shannon que está à beira de novo ataque de nervos somos nós, homens da Guerra Fria que já não éramos heróis olímpicos como o Errol Flynn.” No lugar da espada, um copo de rum-coco.
A este homem, com as fraquezas à vista, sem qualquer esforço em escondê-las, o espectador é quase tentado a dar a mão, a levantar-se e ampará-lo. Para esse abandono que é, para Nuno Lopes, uma imagem que o coloca em contacto com a ideia de que há hoje “pouco espaço para pessoas com moral”, o actor acabou por se inspirar também no recente anúncio do fim do Teatro da Cornucópia, onde se iniciou profissionalmente em 1997, no espectáculo Os Sete Infantes, depois de uma visita de Luis Miguel Cintra ao Conservatório para escolher quatro jovens actores. “A Cornucópia [que Silva Melo fundou com Cintra em 1973) acabou de uma forma horrível porque não a deixaram acabar com a dignidade e a moralidade com que devia acabar. Nem no anúncio do fim a sua ética foi respeitada. Este espectáculo fala também sobre uma ética que não se consegue cumprir – e daí vem a culpa.”
O rumor nazi que persiste no fundo de Iguana, “no momento dos bombardeamentos de Londres e quando a marcha do nazismo parece não ter fim”, considera o encenador, faz com que a família alemã instalada na pensão de Maxine seja “a única gente feliz naquele México a arder de culpa”. E, portanto, acredita, Tennessee Williams deixa-nos também com uma pergunta desmedida: “O que é a felicidade neste mundo imperfeito?” As respostas são quase infindáveis, claro. Mas não há como escapar à possibilidade de que possa, afinal, ser a ausência de culpa, a moral quebrada.