E agora, José Gardeazabal?
Escreve prosa, poesia, teatro, tem vários romances em diferentes fases de maturação. Num ano publicou dois livros e ganhou um prémio. E agora, José? A pergunta é o mote para uma espécie de biografia de um escritor que acredita que o tempo e o silêncio são a base da literatura e o riso o seu aliado.
Leitura e tempo estão no princípio da escrita como a entende José Gardeazabal. Quem é? Pseudónimo literário de José Tavares que parece não ter grande explicação: “O nome não é importante. Mas o nome cria um espaço para a literatura respirar, é uma forma de respeito para com os leitores e para comigo. O importante é a literatura, já não é mau que se trate de um nome relativamente fácil de pronunciar.” Foi com esse nome que venceu o Prémio Imprensa Nacional Casa da Moeda/Vasco Graça Moura com o primeiro livro, história do século vinte, volume de poesia publicado em 2015, “um olhar o século de fora para dentro, como se fosse coisa viva”, diz numa conversa com o Ípsilon quando sai o seu segundo título, Dicionário de Ideias Feitas em Literatura (Relógio d’Água), prosa fragmentada que materializa em palavras essa relação inicial: o escritor que nasce da experiência do leitor. Ele esclarece: “Os textos do Dicionário partem de uma palavra, de parte de uma frase de um autor, ou uma nota minha a respeito desse autor, e depois abrem para a escrita sob a forma de prosa curta. O único critério foi partir de autores que me proporcionaram alegria enquanto leitor.”
São 176 entradas. Uma chama-se Agora e parte da leitura de Carlos Drummond de Andrade. Nela o narrador pergunta: “E agora, José? Queres prosa? Queres poesia?” Pega-se na pergunta e, dois livros diferentes num ano, dirigimo-la a Gardeazabal. E agora, José? Ele responde: “Prosa, poesia, teatro, outros textos. O Dicionário... foi catalogado nas livrarias como ‘outras formas literárias’. Há neste livro e nesse excerto uma certa brincadeira com o desafio da feitura da literatura. Um olhar de desafio e de empatia. Como se alguém estivesse no chão de um circo a observar-se a si mesmo como escritor no trapézio, e perguntasse: ‘Prosa? Poesia?’ Anda lá, despacha-te, faz o que tens a fazer.’ A literatura como processo, o Feitas do título também se refere a isso. Para mim a literatura vem antes da forma que a literatura toma. Claro que uma peça de teatro e um romance são meios diferentes, que podem alcançar lugares diferentes. Mas certas ideias começam como projectos de prosa e transformam-se em teatro, e vice-versa.”
Além das já publicadas existem outras numa grande gaveta e em fases diversas de maturação ou conclusão. Entre elas romances. “Eles estão lá. Se vão ser publicados este ano ou daqui a dez anos, não depende só de mim. Mas existem e dizem-me coisas enquanto romances.” Fala-se de outro fôlego, de menos fragmentação. “Até agora a escrita de romance é para mim uma questão, mais uma vez, de tempo e de recuo. Não sei se será ortogonal ao método do teatro e da poesia. Não programo o romance, ele vai acontecendo. A única programação, a importante, é reservar um tempo específico, que é mais longo, e navegar durante um tempo maior um universo próprio.”
Entre a possibilidade e a fábula
José Tavares nasceu em Lisboa em 1966 e resume de modo breve a sua biografia fora da literatura. Passou “a primeira infância em Luanda”, viveu em Aveiro “até ao fim da adolescência” e frequentou a universidade em Lisboa. É doutorado na Universidade de Harvard com uma tese sobre a relação entre democracia e política económica. Ensinou na Universidade da Califórnia, Los Angeles, e em 2002 regressou a Portugal, onde é professor e investigador em temas “como a democracia e o crescimento, as causas da corrupção e os custos da discriminação de género, entre outros”. É, acrescentamos nós, irmão do escritor Gonçalo M. Tavares. Mas disso não se falará mais aqui. Sobre o seu livro de estreia o poeta José Tolentino Mendonça, júri do prémio, disse que estávamos perante um exercício que conduzia a literatura para um “lugar novo”. Que lugar pode ser esse? “Gosto muito de literatura e tenho apetência pelo novo. Não imagino esse lugar, nem programo o caminho. A minha relação com a literatura é de trabalho e de prazer, os lugares novos vão aparecendo à medida que vamos chegando lá”, diz. E pega-se então noutra entrada do Dicionário — Autobiografia —, a partir da leitura de Andrei Béli, para indagar um pouco mais sobre José Gardeazabal. No texto, pede-se a alguém que escreva sobre “o próprio” e fale do nome com que assina. Na conversa com o escritor pergunta-se o que diz isso de si. “O mundo sempre foi importante para mim. A compreensão do mundo, a sua imperfeição. Aí a política, a economia, as ciências sociais são uma das chaves. Não uma chave que fecha, não procuro arrumar o mundo dentro de conceitos, mas uma chave que abre, que sobrevoa a nossa relação pessoal com o mundo e acrescenta-lhe sentidos colectivos, sentidos de tempo. Socialmente vivemos entre a possibilidade e a fábula. Precisamos das duas. As ciências sociais dão-nos uma possível álgebra de compreensão do mundo. Não nos oferecem um resultado fechado e ainda bem. As ciências acrescentam linguagem à literatura. Isso é bom.”
Ainda em Autobiografia há um “prisioneiro” intimado a escrever sobre o corpo, exigem-lhe que seja autobiográfico. De repente percebe que o objecto cortante na mão já não se assemelha a uma caneta. Diz Gardeazabal: “O exercício da literatura é demasiado profundo para discutir o que é pessoal e o que não o é. Claro que a literatura não é só literatura, é vida. Vida vivida e vida a viver. Uma espécie de autobiografia não autorizada, se correr bem. Nesse sentido fere e aumenta.” O prisioneiro da história não sabe o que é escrever. E Gardeazabal? “Não sei o que é saber escrever”, responde. E é então que afirma: “Mas leitura e tempo são o princípio. O método envolve muita leitura e alguma inteligência...” Faz-se a pergunta de forma mais directa: como nasceu José Gardeazabal, escritor? “Decidi dedicar-me à literatura no momento em que entendi, simultaneamente, a sua afinidade e infinitude. Algo de significativo que nos pode acompanhar para sempre, que não acaba. Um mundo dentro e ao lado do mundo. Não é um mundo melhor, mas é um mundo com mais sentidos. Não sentido, sentidos.”
Nesse modo de ser onde a literatura aparece como “um centro”, qualquer coisa “de essencial”, já há quase uma rotina. “Passa por ler primeiro e depois escrever. Começa na leitura e após uma hora ou assim a leitura e a escrita misturam-se: sublinho, escrevo nas margens, tomo notas para o futuro. E depois só escrevo. Idealmente umas quatro a cinco horas a ler e escrever. Muito de manhã. Durante o resto do dia posso ler e tomar notas, é raro escrever continuadamente.” Confessa, contudo, a dificuldade em se ver só como escritor no sentido em que diz sentir “muita dificuldade com a ideia de sentido único, na vida social e política”. “Um dos prazeres da literatura é a de correr ao lado da vida, mas multiplicando-lhe os significados. A boa literatura multiplica os sentidos. A vida também o pode fazer.”
E tem sido uma vida meio nómada, mas com um centro bem definido. “Num certo sentido a centralidade da língua, e da língua portuguesa, foi sempre evidente para mim. A identidade é o resultado das partidas e das chegadas, resulta naturalmente da língua e do pensamento, muito menos da geografia, das nações. A língua portuguesa esteve sempre presente e isso é fruto do movimento: a língua movimenta-se mais facilmente do que a geografia.” E acrescenta: “Também é certo que os contactos nómadas, por assim dizer, me obrigaram a novos sentidos para a escrita. Sentidos que se somam até serem literatura, tal como a ciência e a política.”
Em Adeus, outra vez no Dicionário, e a partir de Roy Miki, fala da condição de bilingue. Tem dito que escreve e fala em várias línguas, mas a literatura é em português. “Não sou bilingue. Apenas estive exposto por muitos anos a um dia-a-dia em inglês, o tempo suficiente para começar a gozar da respiração da língua inglesa. E depois, por razões profissionais, estive sempre próximo de ambientes em que o português era um eco, um eco importante, mas um eco. Talvez isso tenha adiado o surgir da literatura em português. Por outro lado, percebo que a minha empatia pelo som e pelos significados em outras línguas me afasta da esfera do português e me aproxima do literário em outras línguas. Acabei por conciliar as coisas escrevendo por vezes em inglês e em espanhol. Mais em inglês: contos, poesia, teatro.”
O presente visto de esguelha
Sobretudo em história do século vinte, mas também no Dicionário, tem explorado a relação do homem com o tempo. Refere que não tinha consciência dessa recorrência, que não procura temas, “eles surgem e surgem naturalmente compostos”, nota. Exemplos: “Deus, homem, sexo, literatura, ressurreição, democracia, capitalismo: são temas importantes, não porque são pensados, mas porque são importantes.” Acredita que os temas “são gavetinhas que usamos para nos arrumar a vida, para nos facilitar a vida — capitalismo mau, democracia boa, por exemplo”. E afirma: “A literatura deve desarrumar, acrescentando sentido. Desarrumar não é o fim, é o método.” Olhar a história do século XX em poesia foi isso? Quando escrevi história do século vinte, o século tinha terminado e tínhamos todos sentimentos fortes acerca dele. Mas à medida que escrevia percebi que o século morto ia mudar e este poema podia ser parte dessa mudança. No sentido em que seria lido de forma diferente por pessoas diferentes em tempos diferentes. Quando tive de rever o texto, percebi que isso já acontecera, o texto era o mesmo, mas dizia coisas novas, porque o século morto mudara muito. Acho que vai continuar a mudar, o século e o texto. Para mim tem-se transformado numa espécie de carinho pelo século, a sua ingenuidade e a sua ambição.”
Se há um tempo na sua escrita, talvez seja o presente, apesar dos riscos, das interferências. Mas é um presente “visto de esguelha”, precisa. “Não distorcido, mas revelado, por sobreposição e multiplicação de sentidos. Essa sobreposição de sentido usa o passado e o futuro, ou melhor, a vontade de futuro, mas trabalha muito o presente.” A utopia interessa-lhe, tal como a distopia. Considera-os “exercícios de terapia” e um e outro “apelam ao melhor de nós”. Qual? “A vontade de melhoramentos definitivos, a ironia confortável do realismo.” Como se vê nisso? “Sou naturalmente céptico e encantado com as utopias, acho-as naturais e perigosas ao mesmo tempo. As distopias dizem-me muito pelo lado da ironia, pelo lado do ‘estão a ver, a vida é mesmo isto, só muda devagarinho’.”
Mas o tempo pode ter vários nomes. Um deles é silêncio, “dá densidade ao tempo” e por isso a literatura “alimenta-se” dele. “O tempo é o esqueleto e o silêncio a carne”, afirma. É condição para a escrita? “Também é possível falar de atenção, recuo calculado para alcançar uma nova proximidade e empatia. Silêncio, tempo, atenção, quem sabe por esta ordem. Dito isto, até agora tenho escrito sobretudo em cafés, onde beneficio do burburinho.”
E há sempre a política. Nesta conversa, na escrita, uma relação próxima com a literatura. “Aquilo de o homem ser um animal político reverbera. O homem também é um animal, tout court. A literatura alimenta-se de animais especiais, e o homem é um óptimo candidato. Por outro lado, a política enquanto objecto social também é um lugar de preguiça, de maniqueísmo, de simplificação e eu gosto de a trazer para a literatura para a desvelar, confrontar com o seu próprio discurso.”
Sobre Deus diz ser “uma presença hesitante”, na vida e por isso na escrita; e a vida e a morte considera serem “tudo o que não sabemos”. Já o corpo... “É uma personagem que não tem uma relação fácil com a literatura e quase sempre a culpa é da literatura. Miller, Roth, Nabokov são excepções. Facilmente as incursões literárias pelo corpo e pela sexualidade são vítimas de um pudor intuitivo, e defensivo, por parte da literatura. Talvez não tanto na poesia, mas na prosa com certeza. A prosa é mais puritana do que a poesia, mas o corpo precisa tanto de prosa como de poesia.”
E em tudo isto de literatura, fiquemos pelo riso, “um aliado da verdade, especialmente enquanto ironia”.