“As casas para crianças em perigo não estão preparadas para as acolher”
O director para a Infância e Juventude da Misericórdia de Lisboa, Rui Godinho, deixa alerta: as casas para órfãos nunca foram adaptadas e precisam de técnicos.
Rui Godinho é psicólogo, com um percurso de anos no acolhimento e intervenção junto de crianças e jovens em perigo. Foi director da Casa da Alameda até 2014 e fez parte da equipa central que coordenou o Plano DOM - Desafios, Oportunidades e Mudanças criado em 2008 para capacitar as equipas e as casas de acolhimento. Esteve um ano no gabinete de Agostinho Branquinho, secretário de Estado da Segurança Social e Solidariedade do governo de Passos Coelho. Desde Abril de 2016, é o director para a Infância e Juventude da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). “Estamos numa fase de mudança muito significativa”, diz. O programa CARE - Capacitar (os técnicos), Autonomizar (os jovens), Reconfigurar (as casas) e Especializar, que está a ser lançado para a área de Lisboa, é muito semelhante ao Plano DOM, que foi concebido para todo o país mas foi interrompido em 2012. O CARE pretende mudar dinâmicas e “dotar as casas de um modelo terapêutico e efectivamente protector das crianças” em perigo.
Em 2008 foi lançado o Plano DOM – Desafios, Oportunidades e Mudanças para melhorar o acolhimento de crianças e jovens em perigo, mas o programa foi interropido a meio. O que garante que a melhoria prevista para o acolhimento da SCML não será também interrompida?
Com as alterações legais de 2015 deram-se passos muito significativos e o que estamos a fazer na SCML é operacionalizar essas mudanças. Por um lado, impulsionar o acolhimento familiar para as crianças com menos de seis anos, e por outro, no que diz respeito ao acolhimento residencial, converter a dinâmica da intervenção numa dinâmica mais terapêutica. O projecto CARE foi aprovado há seis meses para as casas de acolhimento da SCML. A nova lei de protecção diz que as crianças com menos de seis anos não podem estar em instituições, têm de estar em famílias de acolhimento. Mas não há famílias de acolhimento. Nós temos um projecto para desenvolver essa opção do acolhimento em famílias. Por outro lado, o objectivo é dotar todas as casas de um modelo terapêutico e de um modelo efectivamente protector destas crianças. Vamos ter dois meses, no início deste ano, para fazer a contratualização casa a casa. E vamos ter dois anos para aplicar essa mudança. O problema é que as casas cristalizaram nas crianças que já não existem. A casa é que tem que adaptar-se às necessidades e não as crianças à casa.
O que não está a correr bem?
De acordo com a lei que tínhamos antes de 2000, as casas de acolhimento estavam preparadas para acolher os órfãos, as crianças das famílias mais pobres ou numerosas, de famílias que não tinham dinheiro para os filhos estudarem, e que os colocavam na Casa Pia na esperança de lhes dar uma oportunidade. A lógica era dar o apoio social para pessoas desvalidas. Era esta a cultura das casas de acolhimento, na altura lares. A lei foi alterada e as casas de acolhimento passaram a ser para crianças em perigo. O problema é que nunca foi feita uma adaptação das casas à nova realidade.
O Plano DOM deu resultados em mais de uma centena de casas de acolhimento do país inteiro, mas foi interrompido. Foi por falta de verbas?
Não são só as verbas, é o conceito. As casas de acolhimento não estão preparadas para acolher e a ideia do Plano DOM foi fazer o processo de qualificação, contratar quadros superiores para as equipas técnicas e qualificar as casas. As pessoas que lá trabalhavam tinham as mesmas práticas de sempre, só que uma criança vítima de abuso sexual ou com comportamentos delinquentes ou com uma psicopatologia requer uma intervenção completamente distinta. Nós começámos esse processo com o Plano DOM. Depois houve mudança de Governo e foi escolhido um outro caminho. Houve mudança de estratégia. Não foi apenas uma questão de verbas. Abrir as portas à família, por exemplo, não custa dinheiro. É uma mudança de paradigma que está a acontecer em todos os países da Europa. Abrir as portas às famílias, não separar irmãos, prevenir a retirada da família e evitar que as crianças mudem de instituição. Por outro lado, muitas das vezes temos casas com equipas acolhedoras mas pouco qualificadas, pessoas que agem na base da boa-fé, da intuição, da boa vontade, e isso não chega.
De que tipo?
Temos de ter casas com menos crianças. Uma coisa é termos 12 jovens, outra é termos 20 jovens, outra ainda é termos 45 como acontece em muitas instituições. O efeito multidão é avassalador. É impossível, nem vale a pena pensar que é possível. Estes jovens precisam de uma intervenção individualizada, precisam de tempo, de disponibilidade, de competência técnica. O problema dos adolescentes é particularmente grave. E uma intervenção para adolescentes tem de ser uma intervenção especializada e terapêutica. Nós não podemos ter auxiliares e equipas muito reduzidas a intervir com estes adolescentes. Quando eles chegam com 16 anos, já trazem uma história muito prolongada de abandono, de maus tratos. Conforme foram crescendo, com o desamparo, eles próprios, que foram vítimas, passaram a agressores e a vitimadores.
O problema também é como se olha para estas crianças?
Estas crianças mesmo de 16 anos, com esses comportamentos graves, são crianças aflitas. Dentro delas têm um menino pequenino que não foi cuidado. E muitas vezes nós estamos preocupados com os comportamentos agressivos, e não estamos preocupados em reparar o que está lá atrás. Estes meninos não tiverem os pais a contar-lhes histórias quando adormeciam, não tiveram os abraços quando estavam tristes. Chegam aos 16 anos e não conhecem essa linguagem. Os comportamentos delinquentes são sintoma do sofrimento psíquico.Nós temos de reparar as agruras que ficaram para trás. Para isso é preciso termos equipas, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, adequadas. Temos de ter pessoas que saibam transformar as dinâmicas destes jovens.
Os próprios jovens rejeitam as casas onde estão acolhidos?
Há casas que são conventos e ninguém vive num convento. Há casas que parecem uma prisão. Temos de ter casas normalizadoras e não instituições. O próprio modelo de intervenção é um modelo punitivo. E há rejeição dos próprios jovens. As equipas, perante a incapacidade ou a frustração de não conseguirem alterar os comportamentos, defendem-se com modelos punitivos. Só que a punição não traz a aprendizagem. O que acontece com estes jovens é que, enquanto estão neste registo punitivo, nós conseguimos condicionar o comportamento, mas quando deixa de existir a punição, voltam ao mesmo. O foco não pode ser no comportamento e no sintoma, tem de ser na transformação interna e na reparação. Para isso, temos que ter equipas altamente qualificadas. Este é um problema transversal a todas as casas de acolhimento do país inteiro.
Mas as mudanças só estão previstas para Lisboa.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pelo peso histórico e responsabilidade social que tem, deve estar na linha da frente. Se a realidade se tornou mais complexa, também temos de adaptar-nos à realidade e imprimir essa dinâmica de mudança. A intervenção que nós queremos não é para tomar conta das crianças. É para que estas crianças tenham as mesmas oportunidades de facto para a vida que nós queremos que tenham os nossos filhos. Queremos uma intervenção que vá ao encontro não dos sintomas mas dos problemas e no sentido de impedir que se repitam os ciclos de exclusão que os seus pais e avós tiveram.