O ano de Lutero
Em Portugal houve, como é sabido, Contra-Reforma sem haver Reforma. A Inquisição, que aqui chegou em 1536, era principalmente dirigida aos judeus.
Não sabemos o que se vai passar em 2017, mas sabemos o que se passou há 500 anos ou há 100 anos. A 30 de Outubro festejar-se-ão os cinco séculos da afixação das 95 teses do monge agostiniano Martinho Lutero na igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha. E a 7 de Novembro comemorar-se-á um século da tomada de poder pelos sovietes, em Petrogrado, na Rússia. Estou em crer que o primeiro evento foi mais determinante para o futuro da Europa e do mundo. Respaldo-me em Eduardo Lourenço, que, numa conferência em Coimbra, afirmou: “A Europa já existiu quando se chamava a Cristandade, antes do clash que é porventura o acontecimento mais importante da história europeia, que foi a Reforma. A Reforma traçou, dividiu a Europa, por dentro, em duas. É um drama, mas ao mesmo tempo é uma peripécia absolutamente extraordinária da História do Mundo, porque não há nada mais importante para a definição de uma entidade, (...) dum povo, duma nação, do que a sua inserção em qualquer coisa que nós poderemos chamar da ordem da crença”. O bater de asas da borboleta foi, em 1517, uma reacção contra o pagamento a Roma de indulgências para remissão dos pecados. Passados três anos, Lutero era excomungado, vendo-se porém protegido por sete príncipes alemães que assinaram a Confissão de Augsburg. O vendaval reformista que se seguiu levou à existência hoje de mil milhões de protestantes no mundo, cerca de 40 por cento da Cristandade. E, mais do que isso, à emergência de uma nova mundividência. O sociólogo alemão Max Weber defendeu, num livro tão famoso quanto controverso, a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo. Seja qual for a causa, o certo é que a Europa do Norte se desenvolveu mais rapidamente do que a do Sul e que, nos nossos dias, o futuro da Europa tem muito que ver com o modo como evoluirá essa clivagem.
Lutero foi um professor de Teologia (para o cardeal francês Yves Congar, “um dos maiores génios religiosos de toda a história, no mesmo plano que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino”) e, em particular, um devoto tradutor da Bíblia. A Bíblia luterana, que saiu do prelo em 1534, ajudou a formar o Hochdeutsch. Frederico Lourenço, na apresentação da sua recente tradução do Novo Testamento a partir do grego, chama a atenção para o atraso da tradução da Bíblia em português. Consta que o rei D. Dinis foi o primeiro tradutor de parte do Génesis para a língua portuguesa. Mas só – pasme-se! - em 1753 se acabou de publicar em Jacarta a primeira tradução portuguesa integral dos textos sagrados, pela mão principal de João Ferreira de Almeida, o pastor da Igreja Reformada Holandesa que, nascido em Mangualde, viveu na Indonésia. Existia, na época, uma interdição pela Santa Sé da leitura da Bíblia em qualquer língua que não fosse o latim da Vulgata, língua que poucos dominavam.
Em Portugal houve, como é sabido, Contra-Reforma sem haver Reforma. A Inquisição, que aqui chegou em 1536, era principalmente dirigida aos judeus, mas logo desde o início se encarregou de quebrar quaisquer veleidades aos luteranos. Um dos casos mais famosos foi o de Damião de Góis, condenado por ter falado, comido e bebido com o “maldito Martinho Lutero”. Outro foi o do egresso dominicano Fernão de Oliveira, autor da primeira História de Portugal e da primeira gramática de português, culpado por defender, inter alia, que o rei da Inglaterra não era herege. Outro ainda foi o de três lentes do Colégio das Artes de Coimbra - Diogo de Teive, João da Costa e George Buchanan, este escocês - que foram sentenciados por opiniões heréticas. Os estrangeiros eram vistos com especial suspeição e as prevaricações severamente punidas: William Gardiner, mercador inglês estabelecido em Lisboa, foi queimado vivo a mando do Santo Ofício por um atentado à Eucaristia na capela real.
Na Alemanha haverá numerosos eventos sobre Lutero. Um deles, na Casa de Lutero em Wittenberg, será a exposição “95 tesouros – 95 pessoas”, que falará da influência dele em Johann Sebastian Bach, Thomas Mann, Martin Luther King e até Edward Snowden, o mais moderno dos cismáticos. Em Roma o papa Francisco celebrará o ecumenismo. Em Lisboa realizar-se-á, em Novembro, o congresso internacional “Um Construtor de Modernidades: 500 anos das teses de Lutero.” Es lebe Luther!
Professor universitário (tcarlos@uc.pt)