Daesh levou a guerra da Síria para uma discoteca de Istambul
A Turquia continua mergulhada na insegurança, que Erdogan deverá continuar a utilizar para consolidar o seu já vasto poder.
A polícia turca está à procura de um homem natural da Ásia Central, com uma idade próxima de 25 anos, suspeito de ser o autor do ataque na discoteca Reina, em Istambul, às primeiras horas de domingo, no qual morreram 39 pessoas. O atentado foi reivindicado pelo Daesh, para penalizar a Turquia pela ofensiva em solo sírio. “O Governo turco deve saber que o sangue dos muçulmanos derramado com aviões e fogo de artilharia ateará um incêndio na sua própria terra”, declarou a organização jihadista.
A reivindicação do Daesh não foi surpreendente. A Turquia tem sido um alvo preferencial do grupo islamista nos últimos meses, apesar de ser raro haver uma reivindicação directa. O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla turca) rejeitou qualquer responsabilidade e os seus alvos são quase sempre elementos das forças de segurança ou políticos – e não civis.
A declaração do Daesh, divulgada na manhã desta segunda-feira e citada pela Reuters, fazia referência ao “Governo apóstata turco”. Classifica o atirador como um "soldado heróico" que "atacou uma das mais famosas discotecas onde os cristãos celebram o seu feriado infiel", diz a Reuters. No texto, o Daesh acusa ainda a Turquia de ser um país aliado dos cristãos por causa do seu envolvimento na guerra na Síria.
O Governo turco garantiu que irá continuar a ofensiva no país vizinho. “Este ataque é uma mensagem para a Turquia, contra as suas operações do outro lado da fronteira”, afirmou o vice-primeiro-ministro Numan Kurtulmus, numa conferência de imprensa em Ancara, acrescentando que a ofensiva na Síria vai continuar.
Pelo menos 25 das vítimas não tinha nacionalidade turca, segundo a agência estatal Anadolu. Eram sobretudo de países do Médio Oriente (Arábia Saudita, Israel, Líbano, entre outras). As autoridades detiveram oito pessoas sob suspeita de estarem ligadas ao ataque.
O autor dos disparos conseguiu fugir da discoteca. O jornal Haberturk cita elementos das forças policiais que dizem que os primeiros indícios apontam para um homem natural da Ásia Central, ou da província de Xinjiang, na China, onde é forte o movimento separatista da população de origem turca e muçulmana. Terá uma idade próxima dos 25 anos. O Governo turco revelou estar próximo de identificar o responsável pelo atentado e de dispor de informação relativa às “impressões digitais e aparência básica”.
A análise às imagens captadas pelas câmaras de segurança do Reina sugere, de acordo com especialistas em contraterrorismo, que o responsável pelo ataque teve treino profissional. “Ele provavelmente disparou balas daquelas em zonas de combate real. Não mostrou hesitação em disparar contra pessoas inocentes”, disse ao jornal Hurriyet o analista Abdullah Agar.
Terroristas todos iguais
No último ano, a Turquia foi alvo de vários atentados e tudo indica que a insegurança se vai manter nos próximos meses. O Presidente, Recep Tayyip Erdogan, tem englobado todos os ataques numa mesma narrativa cuja finalidade é sempre a mesma: desestabilizar a sociedade e, em última análise, derrubá-lo. É assim que o Governo turco e os seus apoiantes juntam o Daesh, os rebeldes curdos e a organização fundada pelo imã Fetullah Güllen na mesma categoria de inimigos do Estado.
No domingo, Erdogan acusou os autores do ataque de tentarem “desmoralizar” os turcos e “desestabilizar” o país. A insegurança que tem dominado o dia-a-dia tem sido usada pelo Presidente turco para limitar a acção da oposição e consolidar o seu poder. Na sequência do ataque, o primeiro-ministro, Binali Yildirim, deu indicações de que as penas para quem faça “acções de elogio ao terror” podem vir a ser reforçadas.
“Deve ser lembrado que acções de elogio ao terror são crime e têm sanções penais”, disse Yildirim, acrescentando que “não há diferença” entre os vários tipos de organizações “terroristas”. O Governo tem usado uma definição muito abrangente de grupos terroristas, especialmente após o golpe de Estado falhado de 15 de Julho, para justificar o afastamento de vozes críticas. Foi o que aconteceu com a detenção, em Novembro, de quase toda a cúpula do Partido Democrático do Povo (HDP), apoiante da causa curda e muito crítico de Erdogan.
Ao mesmo tempo, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, no poder) está a fazer avançar o projecto de revisão constitucional para transformar o sistema político turco de acordo com o modelo presidencialista. O objectivo de Erdogan é aprovar a reforma em referendo nos próximos meses.
Na sequência do golpe falhado, o Governo promoveu uma purga em quase todos os ramos da administração pública, incluindo as forças de segurança, as escolas e as universidades. A campanha, considerada excessiva pela União Europeia, destinou-se a afastar qualquer funcionário público com ligações ao movimento gülenista, mas é também encarada como uma forma de remodelar a própria sociedade turca, de acordo com um modelo islamista e nacionalista.
“Aproveitando a rejeição cidadã dos delírios golpistas de alguns militares e a impopularidade colhida pelo movimento gülenista elitista, [Erdogan] procura consolidar um modelo personalista de poder sem obstáculos”, escreve o analista do Instituto Elcano Jesús Villaverde.