“Não podemos obrigar os médicos a ir, não é?"

Incentivos financeiros poderão fazer médicos pensar na mudança para longe dos centros urbanos. Quinto de seis artigos sobre desenvolvimento do interior.

Raluca Saramet nada sabia sobre Beja. Beja era sinónimo de vaga-para-formação-especializada-em cirurgia-mais próxima de-casa. No Hospital Joaquim Fernandes encontrou “um sítio bom para trabalhar”. Assinou contrato, apesar de morar em Setúbal. São 150 quilómetros para trás e para a frente.

Há anos que o distrito se bate com falta de profissionais de saúde. O presidente distrital da Ordem dos Médicos, Pedro Vasconcelos, senta-se numa poltrona e põe-se a fazer a lista da insuficiência ou inexistência de especialistas: cirurgia, pediatria, obstetrícia/ginecologia, cardiologia, urologia, otorrinolaringologia, anestesiologia, gastroenterologia, endocrinologia, reumatologia.  

O problema vem de longe. Para assegurar equidade no acesso a cuidados de saúde em todo o território, em 2015 o Governo lançou um pacote de incentivos à mobilidade geográfica de médicos especialistas. De acordo com a Administração Central do Sistema de Saúde, só convenceu 35. Já em Setembro deste ano, o novo Governo decidiu reforçar a medida (o diploma está em consulta pública).

Um daqueles 35 contratos de trabalho tem o nome de Raluca. Assinou-o em Agosto. Recebe mil euros extra no final de cada mês. O valor cairá para metade decorridos seis meses. E para um quarto volvidos outros seis. Ao fim de cinco anos, para nada. “Por enquanto está a notar-se no ordenado. Quando chegar aos 250 euros, com os descontos, não sei”, comenta ela, no fecho de mais um dia atarefado. 

A população continua a envelhecer no Alentejo Adriano Miranda/Público
Aldeia da Trindade, Beja Adriano Miranda/Público
Dulce Nutel, Neurologista no hospital de Évora Adriano Miranda/Público
Aldeia de Albernoa, Beja Adriano Miranda/Público
Adeia de Albernoa, Beja Adriano Miranda/Público
Luís Carlos Paixão, médico no Centro de Saúde de Beja Adriano Miranda/Público
Aldeia de Albernoa, Beja Adriano Miranda/Público
A população de Albernoa é maioritariamente reformada Adriano Miranda/Público
Hospital de Beja Adriano Miranda/Público
Raluca Saramet, Cirurgiã no Hospital de Beja Adriano Miranda/Público
A agricultura teve um novo impulso com o Alqueva Adriano Miranda/Público
Estão a ser requalificadas vias rodoviárias em Beja Adriano Miranda/Público
Pedro Vasconcelos, Presidente da Ordem dos Médicos do distrito de Beja Adriano Miranda/Público
Beja Adriano Miranda/Público
Carolina Santos, médica no Centro de Saúde de Beja Adriano Miranda/Público
Posto médico da Trindade Adriano Miranda/Público
Fardos de palha Adriano Miranda/Público
Uma das maiores queixas da população é a falta de transportes colectivos Adriano Miranda/Público
José Robalo, Presidente da ARS Alentejo Adriano Miranda/Público
Nem todas as especialidades existem nos hospitais centrais do Alentejo Adriano Miranda/Público
Aldeia da Trindade, Beja Adriano Miranda/Público
Aldeia de Albornoa, Beja Adriano Miranda/Público
Pastor Domingos António da Silva, Beja Adriano Miranda/Público
Muitos estrangeiros fixam-se no Alentejo Adriano Miranda/Público
Adeia da Trindade, Beja Adriano Miranda/Público
Adriano Miranda/Público
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A população continua a envelhecer no Alentejo Adriano Miranda/Público

Vinha no domingo e voltava na sexta

No início, não tinha carro, nem carta de condução. Viajava de camioneta. Vinha no domingo e voltava na sexta. “O hospital tem quartos de função, que aluga a preço acessível”, esclarece. Cem euros a que acrescem despesas correntes. Mal tirou a carta, entrou no vaivém diário – a menos que “esteja de banco ou faça noite”. Privilegia a estrada nacional. Demora mais, mas evita portagens. “Todos os dias, ir e vir, é um bocadinho no final do mês.” Ainda gasta 350 a 400 euros nisto.

O ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, esteve em Beja a falar na estratégia para cativar mais especialistas. “Estamos a falar em cerca de mil euros de remuneração adicional para os médicos se deslocarem para onde fazem falta”, enfatizou. E de dois dias de férias extra. E de 15 dias para investigação ou aperfeiçoamento profissional com ajudas de custo. E de apoio à integração de cônjuge e filhos. Isto enquanto o médico permanecer na zona carenciada.

O presidente do Conselho Nacional do Internato Médico, João Paulo Frias, acha que é preciso agir mais cedo.  A formação médica especializada parece-lhe decisiva. Outros médicos dizem o mesmo. É que o percurso é longo.

Terminada a licenciatura com mestrado integrado, há que cumprir o “ano comum”, o primeiro ano de internato, o que permite circular pelos vários serviços. Segue-se a especialidade, que dura cinco a sete anos. “Acabamos por volta dos 30 anos. Ora, com 30 anos, a maioria já iniciou ou está a iniciar vida familiar”, refere Luís Carlos Paixão, médico de família no centro de Saúde de Beja. E quando se partilha a vida com alguém ou se tem filhos tudo se complica.

Vagas desertas no interior

Ficam desertas dezenas de vagas abertas em Trás-os-Montes, Beira Interior, Alentejo ou Algarve. Não serão só instalações nalguns casos degradadas, nem equipamentos nalguns casos obsoletos ou em falta. A capacidade formativa nem sempre existe. E “há factores que não se limitam à saúde, que têm a ver com a comunidade, o comércio, as actividades lúdicas e culturais, os serviços públicos, que vão sendo varridos”, observa Pedro Vasconcelos. “Uma remuneração que compense esta interioridade, que é uma insularidade sem mar, poderá fazer pensar duas vezes, mas os territórios têm de ser atractivos”, adverte.

Em Beja, como em toda o interior, esvaziam-se aldeias inteiras. A cidade, porém, “mantém a centralidade administrativa e funcional, agrupa serviços de vocação urbana”, lembra Miguel Quaresma, do gabinete municipal de desenvolvimento. O concelho, no seu todo, não tem perdido população. Prevê-se até que a ganhe nos próximos anos – a reboque do aeroporto, da agricultura, do turismo.

José Robalo, presidente da Administração Regional de Saúde do Alentejo, julga que nada pesa tanto como a vontade. “Não podemos obrigar os médicos a ir, não é? Fazemos concursos. Muitas vezes até aceitam o lugar e passado algum tempo vão-se embora.” São aliciados por privados ou por serviços de saúde estrangeiros.

Tempo houve em que eram mesmo obrigados a ir. Para expandir o Serviço Nacional de Saúde, entre 1975 e 1982 fez-se “serviço médico à periferia”. Quer isto dizer que, pelo menos, durante um ano os jovens médicos tinham de trabalhar fora dos grandes centros. Havia uma proximidade, uma delicadeza no trato, que ia tocando muitos. “Punha-se a possibilidade de ficar”, recorda Robalo. Foi assim que ele próprio trocou Lisboa por Évora. Não sabe se seria uma solução para o interior, mas crê que seria “muito interessante para a formação profissional criar um espaço para os médicos terem oportunidade de vivenciar o interior”.

Havendo capacidade de formar especialistas, o interior pode mesmo impor-se. Raluca estudou no seu país de origem, a Roménia. Apaixonou-se por um português ao fazer Erasmus em Portugal. Queria estar perto dele. Julgava que em Portugal conseguiria trabalhar “um bocadinho melhor e ser recompensada por isso”. Quando abriu o concurso para o internato médico, na sua especialidade havia apenas duas vagas: uma em Beja e a outra em São Miguel. Beja impôs-se.

Terminada a especialidade, Raluca viu vagas mais perto de casa, mas sentiu que devia continuar em Beja. “O serviço estava muito desfalcado.” Não foi só isso. “É um agradecimento pelo que fizeram por mim. O meu pai teve cancro no pulmão, morreu em Agosto, e eu tive o apoio do serviço durante este tempo todo. Nunca tive de dizer: ‘o meu pai está mal, hoje não posso ir.’ Arranjaram sempre alguém que me substituísse.”

A cirurgiã, de 34 anos, não se arrependeu: “Até agora, tudo foi cumprido. Fiquei responsável por uma área específica (a patologia venosa). Obviamente que, havendo menos gente, os ‘bancos’ me calham mais vezes, mas acho que isso é um problema em qualquer hospital, não é só nos distritais.” O plano é ficar em Beja pelo menos cinco anos, mas quem sabe. Um dia que tenha um filho decidirá.

 Os repórteres percorreram o país com o apoio da bolsa de criação jornalística “Aquele outro mundo que é o mundo”, atribuída pela ACEP, a Associação Coolpolitics, o CEIS20/UCoimbra e o CEsA-ISEG/ULisboa, com financiamento da Cooperação Portuguesa e da Fundação C. Gulbenkian.

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