“O ódio já está na Internet”
Juntámos à mesa jovens com percursos e experiências diferentes do discurso de ódio. Pusemo-los a dialogar sobre formas de lidar com as “piadolas” racistas ou homofóbicas que circulam nas redes sociais. Isto tudo a propósito de um manual do Conselho da Europa, que acaba de sair em português
Uma piada misógina na Internet torna-se viral e deixa uma jovem em pranto; o pranto vai em crescendo até ela ser de novo insultada por “se estar a fazer de vítima”. O insulto sobre a cor de pele negra de um rapaz propaga-se e torna-se um hábito que leva a outro insulto e a outro até se tornar insuportável estar na escola. Um comentário racista é deixado no mural do Facebook de alguém, mas outro alguém que também é alvo decide ficar calado.
Quantos episódios como estes se passam na vida real e nas redes sociais e no nosso mural do Facebook, do Twitter? Até que ponto a fronteira entre liberdade de expressão de uma pessoa e direitos humanos da outra colidem no espaço público? Quanto destas ofensas são afinal discurso de ódio?
Em meados de Dezembro, o Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ), que coordena uma campanha do Conselho da Europa contra o discurso de ódio online, lançou um manual, com o nome Referências, para educar através dos direitos humanos. Fez acções de formação durante três dias com 24 participantes, entre professores e dirigentes de associações juvenis, entidades que irão ser multiplicadores da campanha. É um manual com exercícios para se reflectir em situações em que no centro está um caso de “discurso de ódio” – e para experienciar na própria pele o que é estar do lado das vítimas.
Para perceber como funciona este manual, o que é o discurso de ódio hoje nas redes sociais portuguesas e como é entendido pela juventude, juntámos à mesa um grupo de sete pessoas: quatro jovens com sensibilidades e experiências diferentes, uma membro de uma associação juvenil, a coordenadora da campanha do IPDJ, Margarida Saco, e uma mãe da Associação de Pais de uma escola em Lisboa. Lançámos perguntas, conduzimos a conversa, pusemos o foco na opinião de Tomás Barão, Edgar Cabral, Jéssica Pedro e Filipe Moreno.
1. O que é para vocês o discurso de ódio? Já vos atingiu?
Tomás Barão, 21 anos, estudante de Design de Comunicação na Faculdade de Belas-Artes. É de Palmela.
Já sofri bullying mas foi há alguns anos. Acabei por ultrapassar a questão. O discurso de ódio atinge todas as pessoas. Quando discrimino a pessoa negra, estou a discriminar a mulher, a pessoa transexual, a pessoa cigana… São minorias oprimidas que muitas vezes, elas próprias, são opressoras de outras minorias.
Por exemplo, noutro dia, fui dançar hip-hop. No espectáculo, o rapper falava sobre a sua vida, um bocado difícil. E no meio da música põe-se a dizer coisas misóginas e a incitar à violência contra as mulheres. Pensei: ‘Okay, estás a usar o rap como ferramenta para exprimires a opressão que sofres e ao mesmo tempo estás a oprimir.’ Estas coisas têm de ser desconstruídas, isso passa pelo que nos falta ter na escola. É muito fácil perceber que os manuais de História, por exemplo, não fazem a desconstrução do que foi a colonização portuguesa dos países africanos e têm uma narrativa extremamente imperialista, fala-se da epopeia dos portugueses mas não das atrocidades. Esta imagem pode ser um discurso de ódio. Ao ser complacente com essas discriminações, está a discriminar. Um professor de História tem de ter noção destas coisas e, se não consegue falar aos seus alunos sobre escravatura, fez essa escolha. Não sei se é discurso de ódio mas a invisibilidade mata, tem de ser abordada.
Depois fazem-se manuais [como o Referências]. Acho que têm um efeito muito limitado, não vão à raiz do problema. A raiz do problema atinge-se na escola, é onde as coisas têm de começar.
Edgar Cabral, 21 anos, animador sócio-cultural no Atelier de Tempos Livres de uma escola em Telheiras, vem do bairro Zambujal, na Amadora.
O Tomás tem razão. Há vários factores que trazem racismo, preconceito, discriminação, ‘n’ coisas que se não forem trabalhadas pela raiz dificilmente conseguimos mudar alguma coisa. Estes manuais podem-nos ajudar a minimizar mas não resolvem o problema – como diz a campanha, o ódio não é opinião, é um sentimento que temos de dentro de nós e, se não conseguirmos tirar o ódio de dentro de nós, dificilmente conseguimos mudar alguma coisa. O Tomás diz que sofreu bullying. Porque é que a educação que vem de casa não trabalhou isso? A escola tem de pegar no pai e na mãe, falar do caso de bullying, chegar ao foco do problema. Um pedido de desculpa serve mas ao mesmo tempo não serve porque deixa sempre marca nas pessoas. Eu, com a minha experiência nos bairros sociais, digo que há ódio racial. As pessoas passam ao lado e nem olham umas para as outras. Às vezes vejo crianças a dizerem: ‘És isto.’
Tomás Porque aprendem na família.
Edgar E dói. Há ‘n’ coisas que têm de ser trabalhadas. As campanhas e a publicidade são meios para chegar às pessoas, mas sem trabalho de campo é muito difícil. Nas redes sociais vê-se de tudo. O ódio já está na Internet. Às vezes abrimos a página de Facebook e já estamos a levar com alguma coisa.
2. Também sente isto em relação ao Facebook, Jéssica?
Jéssica Pedro, 17 anos, estudante do 12.º ano de Ciências Sócio-Económicas, vive no Bairro de Campolide, em Lisboa.
Sim. Basta entrar no feed do Facebook. O discurso de ódio incentiva ao discurso de ódio. Por exemplo, agora o assunto dos refugiados tem sido muito debatido. Há uns que lhes chamam terroristas, alguém escreve sobre isso, outra pessoa partilha porque concorda, segue-se um ciclo de pessoas a basearam-se em notícias falsas, que não têm sentido – e o ódio vai-se propagando. Depois há pessoas que dizem: ‘É a minha opinião, tens de aceitar.’ Liberdade de expressão é o argumento mais usado. Mas estão a ofender pessoas.
3. O que é classificaria como discurso de ódio?
Jessica É um discurso que incentiva o ódio em relação a uma raça, a uma pessoa, grupo social, de género, etc.
4. Há gradações?
Jéssica Sim, as minorias recebem muito mais discurso de ódio do que o grupo dos brancos, por exemplo.
5. E há coisas mais graves do que outras?
Jéssica Sim, mas efectivamente tudo é grave. Por exemplo, humor negro. Há piadas que não deviam ser consideradas humor sequer. E as pessoas dizem: ‘Ah, mas foi só uma piada.’ Assim passa. Há imensas piadas, até com violação, e em relação às raças, em que as pessoas dizem que não podemos levar a mal – essa é a desculpa mais frequente. Mesmo que não me afecte a mim, que afecte outra minoria, as pessoas dizem que não posso levar a mal.
Filipe Moreno, 17 anos, estudante no 12.º ano, na área de Economia, mora no Bairro de Alvalade, em Lisboa.
Em relação ao humor negro tenho uma mentalidade mais aberta. Mas concordo, acho que quem faz essas piadas nem pensa, é apenas um motivo para entreter. Em relação à sensibilização, na minha escola, todos os anos havia palestras, da polícia, de instituições: o bullying e ódio não é muito presente. Mas cada vez que abro o meu Facebook o ódio é constante, literalmente: ‘Este é cigano, este é gay, vamos desprezá-lo, não pode ter os mesmos direitos do que nós.’ Liberdade de expressão não é poder dizer mal de tudo. Há coisas mais pequenas, mais básicas que vão fomentar o ódio: a pessoa que partilha a seguir acrescenta um ponto e esse ciclo começou com algo que não é muito de ódio, mas acaba no extremo.
6. O que se faz nesse caso, quando se vê?
Filipe Deve-se tentar dar o nosso ponto de vista. Não se deve cair na crítica fácil de dizer ‘és racista’, mas mostrar o que está mal com contra-argumentos.
7. Faz sempre isso?
Filipe Nem sempre, porque muitas vezes nem conheço a pessoa. Mas tento fazer quando é um amigo. Não vou dizer directamente: ‘És racista.’
Jéssica Se formos responder com ódio, estamos a ser iguais a eles. Devemos expressar o nosso ponto de vista porque normalmente passamos ao lado das coisas, ‘isso não é comigo, não quero saber’ – acho que isso tem de ser mudado.
Edgar Nas redes sociais, quando vejo alguma coisa desse tipo, não ligo muito. Para quem vive num bairro social, isto é o prato do dia. Tento chegar perto da pessoa e mudar o ponto de vista e muitas vezes tenho sucesso porque estou perto da pessoa.
Tomás A Internet incita-nos a agir de maneira impulsiva. Custa, mas temos de perceber que é muito mais fácil acusar logo e dizer ‘és um racista, xenófobo’ do que [usar contra-argumentos].
A propósito das piadolas, tenho um amigo que escreve num blogue sobre transexualidade; estava a comentar uma série de piadas transfóbicas em que os humoristas se defendem dizendo que aquela é a profissão deles, ‘vocês não têm sentido de humor nenhum’. O que diz o meu amigo é que é possível fazer humor do lado das pessoas oprimidas. Como o Jon Stewart, que fez um segmento a gozar com o facto de as pessoas trans não terem direitos. Ou seja, a escolha é do humorista: possível é.
8. Como é a vossa experiência no envolvimento de discussões deste tipo?
Tomás Normalmente o que publicamos no Facebook é uma câmara de eco. Quando é algo pelos direitos LGBT, toda a gente diz ‘sim’, ‘like’. Mas uma vez publiquei uma notícia sobre a etnia cigana e foi incrível. As pessoas vinham dizer: ‘Tu tens razão, mas… a minha mãe é professora e na escola um cigano disse que queria ser ladrão’ – e outras coisas do género, historietas que não interessam para nada. Foi muito difícil desconstruir aquilo, é das coisas mais enraizadas na mentalidade portuguesa – e acho que não consegui.
9. O manual tem alguma coisa que ajude a lidar com estas situações?
Margarida Saco Acho que tem de ser cada um a encontrar os seus próprios argumentos. É uma questão de ir respondendo e desconstruindo com histórias e dados positivos. Assim como alguém diz que conhece um cigano que quer ser ladrão, há outros exemplos contrários. E não é por um querer ser ladrão que podemos generalizar. Estou aqui com isto aberto na parte do discurso online [abre o manual]: uma das coisas que faz é dar uma definição, e várias dicas e pistas, com exemplos. O discurso de ódio é sempre mau mas há o mau e o pior. Que medidas vamos usar para responder? Uma parte tem que ver com o tom, que dá para medir a intenção.
O manual dá estes exemplos de frases: ‘Os imigrantes, ao longo da história, têm sido uma má influência’, ‘as pessoas com deficiência vivem à custa do Estado’, ‘um preto não é um ser humano, é um animal’, ‘és uma prostituta, vou violar-te amanhã’. Aqui o tom do texto escrito vai aumentando, e embora o primeiro já seja mau o final é um discurso direccionado com ameaça. Também há outros exemplos aqui, é diferente a intenção da frase ‘acabem com os gays’ escrita num email a um amigo como piada ou no mural de alguém que é gay. Uma das preocupações do manual é dar instrumentos às pessoas para puderem analisar, terem capacidade crítica e intervirem.
Regina Lima, 26 anos, membro da Associação Bué Fixe
Faz todo o sentido a ideia de contrapor o discurso com argumentos válidos, saber responder com argumentos positivos. O manual ajuda bastante. O discurso de ódio muitas vezes expressa já uma intenção, que é a sua pior forma – este exemplo de ‘vou violar-te’ se calhar não é tão comum, mas ‘merecia ser violada’ já se ouve.
10. Como é que se lida com o discurso de ódio que quer ser subtil?
Tomás Por isso faz falta treinar o espírito crítico e nisso a escola falha. Muitas vezes esses discursos passam indetectados. O outro é dar-nos argumentos contra. Alguém que lide com pessoas com deficiência consegue desconstruir esses argumentos, alguém que não conhece ninguém tem mais dificuldade. Por exemplo, tinha alguma dificuldade em dar alguns argumentos a pessoas que são contra as pessoas ciganas; só quando comecei a conhecer pessoas ciganas é que comecei a ter argumentos. Antes pensava: isto é discurso de ódio, há qualquer coisa de errado, mas não tenho informação, como lido com isto? Por isso faz falta estar em contacto com as comunidades, com as minorias e cada um partilhar aquilo que somos.
11. As redes sociais espelham discriminação em relação a mulheres, Jéssica?
Jéssica Sim, estamos atrás do computador, do ecrã e há o anonimato, é fácil as pessoas espelharem opiniões ridículas. Depois há um público maior: a partir do momento em que alguém publica uma opinião, estão imensas pessoas a ver. Voltando ao humor negro: para quem está a dizer uma piada, aquilo é só uma piada. Se alguém vê e concorda, pensa: ‘Há mais uma pessoa a concordar comigo e ainda tenho mais razão do que pensava que tenho.’ Assim vai-se espalhando.
12. E a escola que ferramentas dá para lidar com este tipo de questões?
Gabriela Ramos, 40 anos, mãe, trabalha com a presidência da Associação de Pais dos alunos da Escola Secundária de Vergílio Ferreira
O problema tem que ver com valores, com responsabilidade e o emitir opiniões. É preciso trabalhar a responsabilidade para com o outro, compreender. O meu filho, de oito anos, este ano foi alvo de bullying por causa da cor e ninguém deu por isso: ‘és preto’, ‘cheiras mal’, ‘o que estás a fazer na nossa turma?’, diziam-lhe. Davam-lhe encontrões no recreio, colocavam os seus pertences na casa de banho. Mas passavam despercebidos, foi outra criança que alertou os pais para o que se estava a passar. Erradicar o discurso do ódio passa também por perceber as estratégias que estão a ser usadas. Porque começou como uma piada: ‘vamos chamar-lhe preto’, ‘não brinquem com o Bernardo’. O líder teve seguidores e enraizou-se, tornou-se uma piada. Uma miúda da turma do Bernardo passava por ele e dava um estalo na cara, achava piada. Eu ponho o dedo na ferida, abordei alguns pais sobre isto que aconteceu para perceberem que nem tudo corre bem: não temos filhos perfeitos.
13. Como é que se controla a piadola que começa a ter seguidores?
Filipe Passa pelos pais. E quando os preconceitos começam em casa, há grupos que são discriminados logo aí.
Tomás Na comunidade LGBT é um bocadinho mais difícil. As crianças ciganas têm pais ciganos, as negras têm pais negros e sofrem o mesmo. As pessoas LGBT quase sempre têm pais que não são LGBT e muitas vezes estão em risco de serem postas fora de casa apenas por o pai ou mãe descobrirem que são gay, lésbica, transexual…
Nesse caso, é um discurso de ódio que os jovens muitas vezes ouvem em casa sempre que aparece uma coisa na televisão, o pai ou mãe mandam o comentário e a pessoa em casa encolhe-se, fica a perceber que há algo errado ali. É o efeito da piadola, que pode ser extremamente pequenina e parecer insignificante mas a pessoa ao lado vai sentir-se mal. Se calhar há pessoas com sensibilidade para não fazer piadas racistas quando está um negro por perto mas as pessoas muitas vezes não pensam que está por perto uma pessoa lésbica, homossexual ou trans porque não é visível, só se a pessoa se assumir. As discriminações operam de maneiras diferentes.
14. Se pensarem nas vossas redes sociais, o que é mais comum verem de discurso de ódio?
Tomás Acabo por fechar as minhas redes sociais a isso, quem não interessa não sigo – sou amigo de pessoas que têm mais cuidado com aquilo que dizem.
15. O argumento do politicamente correcto é muito usado?
Tomás E qual é o mal?
Filipe Que é isso de politicamente correcto? Temos a nossa opinião independentemente de ser politicamente correcta. Se algum dia tiver uma opinião e disserem que é politicamente incorrecta, não a vou apagar por causa disso.
Jéssica As pessoas normalmente justificam o discurso de ódio como sendo opinião. Não é. Temos direito a ter a nossa opinião desde que não estejamos a ofender ninguém. Dizerem que ‘és preto e não gosto de ti’ e justificarem que é uma opinião… Não. Temos de estabelecer a diferença entre opinião e discurso de ódio.
16. O discurso de ódio devia ser punido?
Tomás Não sei se cabe a mim decidir.
Edgar Pergunta muito difícil.
[Em Portugal, há legislação, quer através da lei de discriminação racial ou do Código Penal, que pune racismo, xenofobia, discriminação com base na orientação sexual.]
Filipe Acho também há a procura dos revoltados das redes sociais, acontece tantas vezes as marias madalenas a chorar... Muitas vezes procura-se chamar racista e xenófobo a pessoas com discursos em que nem sequer há essa intenção.
Regina O discurso de ódio também tem que ver com a forma como se define. O que o Filipe está a dizer é que o que para mim é discurso de ódio não será para ele. Se calhar depende se fazemos ou não parte de uma minoria, habitualmente discriminada ao longo do tempo – uma pessoa que não sofreu na pele se calhar não vê. Somos livres, sim, faz parte dos direitos humanos, mas temos de colocar as coisas no ponto em que a minha liberdade começa onde acaba a do outro. Não posso achar que a minha liberdade é um dado absoluto e achar que neste contexto devo dizer tudo o que quero.