Em Famalicão, o presente tece-se com têxteis inteligentes
Na primeira década do século XXI, o sector têxtil não resistiu à crise. Contudo, houve quem não desistisse e enfrentasse a crise no sector com novas ideias. Vila Nova de Famalicão é exemplo disso.
É só um edifício normal. À primeira vista, não há nada que nos faça desconfiar das actividades de inovação dentro do Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal (Citeve), em Vila Nova de Famalicão. É só um edifício branco, envidraçado e sabemos que há laboratórios no interior. Mas para se perceber realmente o trabalho neste edifício há que entrar nos laboratórios: tudo o que se faz lá dentro vai estar um dia na nossa roupa.
O Citeve é um intermediário entre a universidade e as empresas. Para que se perceba o que é, António Braz Costa, o seu director-geral, dá uma definição: “É um centro de interface tecnológica que articula o sistema da universidade e das empresas.” Centros como este pegam no conhecimento das universidades, que muitas vezes não são aplicados nem desenvolvidos pelas empresas, transforma-o e leva-o para as empresas do sector têxtil.
Mas não acaba aqui. Outros edifícios de aparência normal em Famalicão desenvolvem actividades na área do têxtil. O Centro de Nanotecnologia e Materiais Técnicos, Funcionais e Inteligentes (Centi) é um local de inovação, que, ao contrário do Citeve, não se destina a um só sector industrial. Criado pelo próprio Citeve, o Centi dedica-se às nanotecnologias e materiais inteligentes em áreas como a cortiça, a cerâmica e também os têxteis. Ambos os centros pretendem transferir tecnologia para a indústria. “Servem para desbravar caminho”, diz Braz Costa.
Além disso, funcionam como centros de estágios para muitos mestrandos e doutorandos e fizeram frente à crise no sector têxtil. Há dois momentos recentes que fragilizaram este sector, recorda o director do Citeve: 2005, com a ida de muitas empresas para a China; e 2009, com a crise financeira mundial.
O caminho da crise foi enfrentado com duas armas. “Estamos convictos de que a primeira chave para o sucesso é a necessidade de quem compra”, diz Braz Costa. Depois, houve que pensar numa nova forma de apresentar o produto: “Os tecidos não podiam ser tão básicos, tinham de ser produtos mais complexos.” “Conseguiu-se sair de uma crise enorme através de acréscimo de valor, não só pela tecnologia mas também pelo design e marketing”, notou Carlos Moedas, comissário europeu da Investigação, Ciência e Inovação, durante uma visita este mês aos dois centros.
Os números mostram a evolução do sector. “Exportámos cerca de 4900 milhões em 2015 e em 2016 podemos ultrapassar os 5000 milhões”, aponta Braz Costa, dizendo que as exportações cresceram 38,2% entre 2009 e 2015. Nos últimos dez anos foram registadas 65 patentes nos dois centros, 20 das quais só último ano no Centi. E em seis anos houve mais 45% de trabalhadores nos dois centros: agora, o Citeve tem 120 cientistas e técnicos, e o Centi 50, incluindo cerca de 15 doutorandos.
Para 2017 há novidades: vão ser contratados 50 trabalhadores, uma medida aprovada este mês, avança Braz Costa. Os centros procuram agora pessoas formadas em química, física, biologia, engenharia de polímeros, da engenharia têxtil, electrónica e software. “Vai faltar gente no sector nos próximos anos”, diz Braz Costa sobre o aumento da procura. “Nos últimos seis anos, entraram uma a duas pessoas por ano. Este ano entraram 20!”
Mas para o director do Citeve há um problema nesta história de sucesso: o centro não tem tido financiamento do Orçamento do Estado para despesas correntes. Por isso, os sete milhões que teve este ano vieram de receitas da venda de serviços a empresas (cerca de 90%) e de projectos de investigação europeus e portugueses. Em 2017, a situação vai mudar: aprovou-se este mês em Conselho de Ministros o programa Capacitar a Indústria Portuguesa, assim como a criação do Fundo de Inovação, Tecnologia e Economia Circular, para que o conhecimento científico e tecnológico seja transformado em inovação. “São boas notícias. Finalmente, estes centros vão ter uma alavanca”, diz Braz Costa entusiasmado.
Eis algumas das inovações que têm saído dos dois centros.
A história de vida dos têxteis
Entrar no Laboratório de Física Têxtil do Citeve é como entrar numa lavandaria. Há engenhos que parecem máquinas de lavar e há até um certo aroma de roupa lavada. “Parece a aldeia da roupa branca”, ouviu-se dizer a quem entrava pela primeira vez no laboratório. Mas esta lavandaria não é para limpar roupa, é para fazer uma história de vida aos têxteis.
“Exploramos a lavagem dos têxteis para observarmos se ficam diferentes”, explica Antónia Andrade, directora do Departamento de Ensaios e Certificação do Laboratório de Física Têxtil. As máquinas têm programas-padrão estabelecidos para se perceber a que temperaturas se devem lavar ou secar as roupas e até se simula o suor e a passagem a ferro. Depois colocam-se essas informações nas etiquetas. Muitos dos têxteis testados neste laboratório são hospitalares – testes que servem para ver quanto tempo têm de vida e evitar que sofram alterações. “Por exemplo, isto é para quem compre um 38 não ficar com um 34. Além disso, também serve para testar a cor antes de ir para o mercado”, afirma Antónia Andrade.
Lã simples ou caxemira?
“O preço da caxemira e da lã são muito diferentes. A caxemira é mais cara”, nota Antónia Andrade, também responsável pelo Laboratório de Química do Citeve. Muitas vezes, a lã “simples” é vendida como lã de caxemira.
Por isso, neste centro fazem-se observações com microscopia electrónica, para medir a espessura ou a altura das escamas das lãs. Também se fazem comparações entre o ADN das lãs, usando a técnica da reacção em cadeia da polimerase (PCR), para amplificar fragmentos de ADN e obter assim grandes quantidades desta molécula em pequenas amostras. “Está ainda em desenvolvimento”, diz Antónia Andrade a propósito das análises às lãs com estas técnicas.
No Laboratório de Química também se mede a toxicidade dos têxteis – por exemplo, em fraldas de bebé e em produtos de hospitais. Há ainda fábricas portuguesas que produzem roupas para marcas internacionais que recorrem ao Citeve para estas análises. Os clientes são de Espanha, Alemanha, França, Tunísia, Brasil, Paquistão ou Índia.
Para os testes de toxicidade fazem-se culturas de células, nas quais se coloca um pedaço do têxtil e depois observa-se o que acontece às células. “Muitas vezes as células não se desenvolvem e até morrem.”
Uma loja do futuro (próximo)
Não há dúvidas de que é uma loja. Há prateleiras, provadores e uma máquina registadora como estamos habituados a ver. A grande diferença das lojas convencionais é que a loja do Citeve é tecnológica, tanto para o cliente como para o gestor de um estabelecimento. A montagem desta loja no Citeve começou em 2011 e terminou no final de 2014. Agora é um expositor para os lojistas escolherem como querem personalizar a sua própria loja.
Logo no exterior há uma montra que detecta a faixa etária do cliente, o tempo que demora a ver o artigo, assim como é mulher ou homem. Com isto, o gestor passa a ter uma noção do que o cliente quer e escolhe um catálogo mais adequado. Dentro desta Loja do Futuro há ainda prateleiras inteligentes com informação sobre a roupa num monitor. Também é possível que o gestor da loja saiba se os clientes gostaram mais de uma peça ou de outra, devido à taxa de rejeição depois de experimentada.
Dentro da loja, há também um espelho mágico, que permite ao cliente fazer várias combinações num monitor e até permite que se comunique com os amigos do Facebook e lhes pergunte a opinião. Mas não ajuda a escolher o tamanho. Para isso, há um body scanner que faz uma digitalização com 400 medidas corporais, que depois podem ficar associadas ao cartão de cliente.
Mas como fazer uma loja do futuro numa loja do presente? “Não temos um pacote. Fazemos uma reunião com o cliente e vemos as suas necessidades. Depois personalizamos”, responde Ana Florinda, referindo-se aos equipamentos que os lojistas depois levam para construírem as suas próprias lojas do futuro. Mas o equipamento exige manutenção. Por exemplo, para o espelho mágico é necessário ter fotografias de qualidade das peças de roupa nos servidores e ir sempre actualizando o equipamento.
Fatos de bombeiro mais leves
O objectivo era fabricar um fato de bombeiro desde o fio, passando pelo tecido, até aos acabamentos. O seu aspecto tinha de ser inovador e teria de servir tanto para incêndios de estruturas (por exemplo, edifícios) como incêndios florestais. A necessidade de um fato com estas características despertou o entusiasmo de 336 corporações de bombeiros, informa Gilda Santos, especialista em vestuário técnico e funcional do Departamento de Tecnologia e Engenharia do Citeve.
Tudo começou em 2011 com um projecto financiado pelo QREN que terminou no final de 2015, num consórcio entre quatro empresas de têxteis (a Fernando Valente, a Coltec, a Fiação da Graça e a Lemar), o Citeve, o Centi e a Autoridade Nacional de Protecção Civil.
Mas o que tem este fato de diferente? Tem um sistema inteligente de protecção incorporado numa caixa que está na braçadeira. Não chega a pesar dez gramas e informa o bombeiro dos níveis de monóxido de carbono. O fato também tem um forro interior composto por uma barreira térmica e de anti-humidade. E ainda um sistema de identificação: desenvolvido numa aplicação, permite identificar os picos de temperatura a que o fato foi submetido, os níveis de monóxido de carbono e avisa quando está danificado. “Assim temos conhecimento da sua história de vida e quando já não pode ser usado”, diz Gilda Santos.
Ao nível do design, o fato é 10% mais leve do que os convencionais e a camada interior está mais colada ao corpo do bombeiro, para proteger melhor a pele. Este fato ainda não está à venda e o consórcio ainda está a analisar o seu preço.
Meias que têm fármacos
Chamam-se “BBVEIN” e libertam medicamentos para tratar a síndrome das pernas cansadas, varizes ou o cansaço de viagens longas. A ideia surgiu da Barcelcom, uma empresa de Barcelos, e do cirurgião cardiovascular António Lúcio, fundador da Iberia Advanced Healthcare, uma empresa de consultoria na área da inovação para a saúde. O objectivo era substituir os medicamentos orais, cuja ingestão muitas vezes tem efeitos secundários. A responsável pelo desenvolvimento destas meias foi Carla Silva, que trabalha na área na nanotecnologia, desde 2007, no Centi.
A investigação para desenvolver as meias começou com moléculas que pudessem ter substâncias activas de origem natural. Encontrou-se o castanheiro-da-índia, que até já tinha eficácia comprovada no tratamento de varizes e pernas cansadas. O sistema usado pelas meias é o seguinte: aprisiona-se na meia uma molécula, a escina, que é proveniente do castanheiro-da-índia, e depois liberta-se de forma gradual durante oito horas. O que faz a meia? Comprime a planta do pé, para que a substância se solte. “A meia pode ser recarregada manualmente no final do dia. Passa-se por água e depois a seco mete-se-lhe uma loção de etanol em spray”, esclarece Carla Silva sobre esta meia que a empresa de Barcelos vende online.
Cores menos poluentes
A cor nos têxteis pode ser, ao mesmo tempo, permanente e não poluente, um objectivo que o Centi procura através da biocoloração. Muitas vezes, os corantes sintéticos são agressivos. Por isso, neste centro foram substituídos por extractos de plantas, como a menta, a hortelã ou as castanhas. “Neste processo, fez-se um tingimento com solidez”, diz-nos Carla Silva, uma das responsáveis pela técnica.
E nem tem de se utilizar temperaturas muito elevadas no tingimento. “Os corantes reactivos [substratos coloridos tingidos com processos convencionais] são tingidos a 60 graus [Celsius] e o poliéster de 120 a 140 graus. Agora, conseguimos tingir as fibras com um único extracto em simultâneo e a uma temperatura de 40 graus”, explica Carla Silva. Com a biocoloração, houve uma diminuição de 85% de produtos químicos, e de 41% de gás natural. A técnica já foi patenteada e está disponível na Tintex, uma empresa de Vila Nova de Cerveira que trabalha com várias marcas de roupa.
Um cobertor inteligente
Nem tudo o que nos tapa aquece. Por isso, o Centi desenvolveu um cobertor que parece completamente normal, só que tem uma “banda de aquecimento”, que detecta se quem o usa está quentinho, ou não, e tem um sistema de aquecimento incorporado. “O inovador é que percepciona se o utilizador está confortável”, conta Domingos Moreira, responsável pelo Departamento de Design, Modelação e Engenharia do Centi.
Este cobertor tem um sistema de aquecimento e sensores que fazem monotorização da temperatura corporal. Para perceber se o cobertor funcionava mesmo, cerca de 15 voluntários aceitaram o desafio de passar umas horas no laboratório. A temperatura do local estava a dez graus e metade dos voluntários conseguiu deixar-se dormir, devido ao sistema de aquecimento do cobertor. Mais testes foram num manequim térmico, cuja temperatura está sempre nos 34 graus: “Consoante os fluxos de calor, o manequim permite-nos ver se há conforto térmico.”
O PÚBLICO viajou a convite da Comissão Europeia