Peritos acusam Bial de ter ignorado dados em ensaio clínico fatal
Laboratório português diz que cumpriu a legislação e as recomendações existentes, nomeadamente sobre a evolução prevista das doses, e que ainda não foi apurada nenhuma "causa concreta para o acidente".
O laboratório português Bial não terá usado todos os dados farmacológicos que tinha ao seu dispor quando decidiu subir a dose da molécula experimental que estava a administrar a participantes num ensaio clínico, em Janeiro, no âmbito do qual morreu uma pessoa e outras quatro ficaram com danos neurológicos, criticam peritos citados numa notícia da revista científica Nature. O laboratório respondeu ao PÚBLICO que cumpriu a legislação e as recomendações existentes, nomeadamente sobre a evolução das doses, e que ainda não foi apurada nenhuma causa concreta do acidente.
A revelação terá sido feita por uma cientista da companhia portuguesa durante uma apresentação numa conferência de farmacologia inglesa, a 15 de Dezembro. Segundo David Webb, presidente da Sociedade Britânica Farmacológica (BPS), que organizou a conferência, o laboratório não usou os chamados dados de farmacodinâmica, que contêm informações sobre as reacções que os participantes têm a baixas doses da molécula experimental BIA 10-2474. A decisão de subir a dosagem foi feita sem levar em linha de conta estes dados, disse. “Em nosso entender esta é uma revelação importante.”
Helena Gama, responsável de farmacovigilância e segurança da Bial, falou em nome da empresa no encontro organizado pela BPS. Questionada sobre a decisão de não incluir estes dados na decisão que levou à subida de dosagem, respondeu: “A avaliação que conduz à subida de dosagem é feita com base em dados de avaliação da segurança e de farmacocinética”, ou seja, com informações sobre a forma como a molécula é absorvida, distribuída, metabolizada e excretada do corpo, explica a notícia. “Nós não tínhamos nenhum perfil que impossibilitasse o caminho para o aumento da dosagem.”
A notícia da Nature refere que a Bial não estava legalmente obrigada a usar estes dados e que o protocolo de ensaio clínico tinha sido aprovado sem eles pela Agência Nacional para a Segurança de Medicamentos e Produtos de Saúde (ANSMP), em França, de onde eram os participantes no ensaio. É também isso que responde a Bial: que cumpriu "a legislação e as recomendações existentes, nomeadamente sobre a evolução prevista das doses".
Mas peritos em farmacologia ouvidos pela publicação, defendem que esta é uma boa prática e que o laboratório português devia tê-la seguido. “Sem os dados de farmacodinâmica estavam a agir no escuro. É assim que os acidentes acontecem”, diz Webb. “Eu penso que foi uma prática negligente.”
Catherine Hill, uma bioestatística que fez parte do conselho científico da francesa ANSMP, também se mostrou surpreendida com o facto de aqueles dados não terem sido avaliados.
É uma boa prática, embora nem todos os ensaios clínicos a praticam, notou Munir Pirmohamed, um farmacologista molecular e clínica da Universidade de Liverpool, no Reino Unido.
Era a primeira vez que a molécula da Bial BIA 10-2474 era testado em humanos. Tinha sido testada de forma segura em ratos, cães e macacos.
A Bial e a empresa francesa Biotrial, que conduzia o ensaio clínico para a farmacêutica portuguesa quando se deu a morte do voluntário, têm responsabilidades a vários níveis, nomeadamente quanto às dosagens prescritas e ao tempo excessivo que levaram a alertar as autoridades, referiu em Julho a ministra da Saúde francesa, Marisol Touraine, a propósito das conclusões do relatório final da Inspecção-Geral de Assuntos Sociais.
Já a Bial respondeu por email que os relatórios tornados públicos "são inconclusivos quanto à causa concreta do acidente". No caso do voluntário que morreu em Janeiro revelou-se que este “era portador, muito antes da sua participação no ensaio, de uma patologia vascular endocraniana oculta, susceptível de explicar o desfecho fatal". "Os restantes quatro voluntários que sofreram efeitos adversos estão quase totalmente recuperados", refere-se.