Liga Portuguesa Contra o Cancro "preocupada" com eventual devassa da privacidade dos doentes
O presidente da Liga Portuguesa Contra o Cancro, Vítor Veloso, diz-se "100% a favor" do Registo Oncológico Nacional que o Governo quer fazer avançar, mas diz temer que acesso indevido à base de dados agrave discriminação dos doentes que padeceram ou padecem de cancro.
Posicionando-se “100% a favor” da criação do Registo Oncológico Nacional (RON), o presidente da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC), Vítor Veloso, diz partilhar das preocupações manifestadas pela Comissão Nacional de Protecção de Dados relativamente à eventual devassa da privacidade dos doentes com cancro que poderá resultar de um acesso indevido àquela base de dados que o Governo se prepara para fazer avançar.
“É evidente que só com um registo oncológico de base nacional se poderá fazer um estudo epidemiológico a sério, saber quais as zonas de maior incidência, perceber por que razão um determinado cancro aparece mais numa região do que noutra, ver que tratamentos são mais eficazes… Mas sabemos que um registo deste tipo é muito apetecível, nomeadamente para as seguradoras, e por isso ficamos naturalmente preocupados”, declarou ao PÚBLICO Vítor Veloso.
O presidente da LPCC reagiu assim ao facto de o Governo se preparar para fazer avançar a proposta de lei que cria e regula o RON, mesmo depois das reservas manifestadas pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD). No primeiro parecer que emitiu sobre a matéria, no dia 16 de Agosto, a CNPD sugeriu que o Governo expurgasse daquele registo o nome dos doentes que padeceram ou padecem de cancro, numa recomendação que foi acatada. Mais recentemente, num novo parecer do passado dia 20, a CNPD considerou que do RON não deveriam constar também nem o número de utente do Serviço Nacional de Saúde, nem o número do processo clínico dos doentes. São dois elementos que, não só revestem um “forte carácter sensível”, como permitem a identificação dos titulares, segundo aquela autoridade.
Para mitigar o risco de identificação dos titulares dos dados, a CNPD sugere o recurso à aplicação de um hash criptográfico, capaz de permitir a introdução dos dados e efectuar as necessárias validações, impedindo a revelação imediata dos dados identificativos dos doentes.
Não podemos estar em "redomas de vácuo"
Tal como o PÚBLICO noticiou, o coordenador do Programa Nacional das Doenças Oncológicas, Nuno Miranda, considera que a CNPD está a levantar “obstáculos excessivos e desproporcionais”. “Não se trata de um registo aberto e acessível ao público em geral, pelo que não me parece que faça sentido esta quantidade de obstáculos face a um registo que é extremamente necessário para sabermos o que se passa em termos de realidade oncológica em Portugal”, reagiu.
Na mesma linha de ideias, o Ministério da Saúde (MS) recordou que a proposta do Governo foi precedida de estudos rigorosos e que o RON vai, no fundo, integrar e uniformizar a informação que já consta dos três registos oncológicos regionais, criados em 1988. “Por norma, os registos oncológicos a nível mundial são nominais”, recordou ainda o MS na nota enviada ontem ao PÚBLICO, para, depois de sublinhar que o acesso ao RON é restrito, acrescentar que “o parecer da CNPD é obviamente importante, mas a Assembleia da República é soberana no processo legislativo”.
Para o advogado Pedro Simões dias, especialista em protecção de dados, a CNPD está a ser "particularmente incisiva e restritiva" na interpretação da lei. "Os dados têm que ser tratados de forma lícita, têm que ser para finalidades determinadas e não podem ser excessivos relativamente a estas finalidades. Não me parece que haja na proposta do Governo nenhum excesso, desde que a recolha dos dados seja para a finalidade sinalizada e que estes não sejam cedidos a terceiros", ressalva.
"No século XV ninguém morria electrocutado porque não havia energia eléctrica e, vivendo nós numa sociedade de risco, em que os hackers até à informação da Nasa conseguem aceder, não podemos deixar de reunir a informação que se considere importante para melhorar a situação dos doentes", acrescenta, para qualificar a posição da CNPD como de "protecção avançada" face a eventuais danos. "A questão é que, implementadas as medidas de segurança os mais potentes possível, não podemos estar em redomas de vácuo, absolutamente assépticas", conclui o advogado.
Governo garante privacidade
O parecer da CNPD não é vinculativo, ou seja, a Assembleia da República pode votar a proposta sem acautelar as reservas levantadas. Esta manhã, questionado pelos jornalistas em Paredes de Coura, o secretário de Estado Adjunto da Saúde, Fernando Araújo, afirmou que o Governo vai encontrar uma solução técnica que assegure a privacidade dos doentes no RON. "Temos a certeza que iremos encontrar a melhor solução técnica que garanta a segurança dos dados, mas que não ponha em causa um bem que é essencial, tratar melhor os doentes oncológicos", afirmou Fernando Araújo, citado pela agência Lusa.
"Já existem registos oncológicos regionais, devidamente autorizados pela Comissão Nacional de Protecção de Dados e que funcionam há muito anos", acrescentou, sublinhando que "nunca houve quebra de segurança".
No parecer assinado pela presidente da CNPD, Filipa Calvão, aquela autoridade responsável pela protecção dos dados pessoais critica a inexistência de um estudo de impacto deste registo central, do qual pudessem resultar soluções tecnológicas capazes de salvaguardar a identidade dos doentes oncológicos sem afectar a finalidade do registo. “A criação de um registo central com os dados de saúde de todas as pessoas (…) que padecem ou padeceram de doença oncológica representa um risco muito elevado de exposição da sua privacidade e, pela natureza da informação, de discriminação”, observa a CNPD, para sublinhar que “o risco é tanto maior quanto esta é, de facto, informação com especial valor económico”.
O presidente da LPCC, Vítor Veloso, concorda com a comissão de protecção de dados quando esta lembra que esta informação é potenciadora "de juízos discriminatórios, entre outros, no contexto laboral, no âmbito das relações contratuais (designadamente aquelas em que intervenham entidades bancárias e seguradoras) e também no domínio das relações laborais”. “Portugal até tem leis que acautelam os direitos do doente oncológico, o problema é que nada é cumprido. Perante um doente oncológico, as seguradoras apresentam prémios que são incomportáveis. Se for apresentar um pedido de empréstimo a um banco, este apresenta juros altíssimos. Os empregadores, se souberem que a pessoa tem cancro, não contratam”, exemplifica.
Confrontado com o facto de o RON propor a congregação dos dados que já constam dos registos oncológicos regionais, sem que a CNPD tenha levantado qualquer objecção, Vítor Veloso alega que o facto de os registos serem centralizados os torna “mais apetecíveis” para as entidades com interesses económicos. “Numa altura em que lutamos para retirar o estigma à doença oncológica, e em que esta se tornou praticamente numa doença crónica, o acesso a informação deste tipo pode reforçar a discriminação dos doentes”, concluiu.