Nos monumentos a concessionar, é crucial definir o que se quer salvar
Governo publicou lista final dos 30 edifícios a recuperar com o programa Revive. O rol inclui um monumento que tem um projecto de reabilitação há 15 anos na gaveta e outro que já foi pousada
É um espaço absolutamente cenográfico, no topo de um monte com vista sobre o Rio Minho. Até aos fogos deste ano era uma espécie de segredo, uma quase ruína escondida pela vegetação e visitada por gentes da terra, por um ou outro turista e pelos pastores com os seus rebanhos. Quase ruína porque a igreja românica deste conjunto com mais de 800 anos permanece de pé graças a obras de reabilitação feitas já no século XX, de acordo com um projecto que, dizem alguns, deixou muito a desejar. Vestígios da cerca monacal, dos socalcos de cultivo que já foram ocupados por hortas e pomares, do aqueduto dos frades e do claustro quinhentista (há construções dos séculos XII e XIII, mas também do período de XVI a XVIII) estão hoje muito mais acessíveis e não foram afectados pelas chamas. O cemitério próximo, com a sua capelinha austera e as campas modestas, também lá está, abandonado durante décadas como tudo o resto (só este ano começaram a ver-se sinais de uma intervenção no interior de um dos edifícios mais recentes).
O Mosteiro de São Fins de Friestas (ou Sanfins), monumento nacional desde 1910, é um dos 19 edifícios de uma lista agora divulgada e que deverá fechar o lote de 30 imóveis de interesse histórico que o Estado pretende ver recuperados com o recurso a privados no âmbito do programa Revive.
A lista final, antecipada pelas edições desta terça-feira do Diário de Notícias e do Jornal de Negócios, veio completar um rol inicial de 12 edifícios dado a conhecer no final de Setembro, altura em que o programa foi apresentado pelo Governo, e está já disponível no site do Turismo de Portugal. Dessa primeira lista anunciada no fim do Verão foi entretanto retirada a Fortaleza de Peniche, que funcionou como prisão do Estado Novo e cuja possível conversão parcial numa unidade hoteleira deu origem a um coro de críticas.
O programa Revive, uma iniciativa dos ministérios das Finanças, da Economia e da Cultura encabeçada pela secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho, quer pegar nestes 30 monumentos, na sua maioria devolutos e fechados, muitos deles em ruína, e revitalizá-los através da concessão a privados. Objectivo? Devolvê-los à fruição pública e transformá-los em hotéis, pousadas, restaurantes e espaços culturais, sem que tenha de ser o erário público a assegurar a totalidade do investimento para que isso aconteça.
O Governo vai submeter em 2017 a concurso estas concessões por um período entre os 30 e os 50 anos, disponibilizando para isso uma linha de financiamento de 150 milhões de euros (uma média de cinco milhões de euros por projecto). Segundo o Negócios, os investidores que apostarem em imóveis no interior do país terão uma bonificação extra.
No lote de 30 edifícios, que inclui vários monumentos nacionais, estão, por exemplo, os mosteiros de Santa Clara-a-Nova (Coimbra), Lorvão (Penacova) e Arouca; os fortes da Ínsua (Caminha), de São Pedro (Estoril) e do Rato (Tavira); dois palácios na Azambuja (o de Manique do Intendente e das Obras Novas); os conventos de Santa Clara (Vila do Conde) e de São Paulo (Elvas); os quartéis do Carmo (Horta) e da Graça (Lisboa); o Santuário do Cabo Espichel (Sesimbra); os castelos de Portalegre e de Vila Nova de Cerveira, e os Pavilhões do Parque (Caldas da Rainha), que nunca chegaram a cumprir o seu propósito.
Entre estes edifícios ou conjuntos há pelo menos um que já teve projecto de reabilitação – o santuário de Sesimbra, cuja conversão da ala Norte em Pousada de Portugal esteve prevista no início dos anos 2000 – e outro que já funcionou durante 25 anos como unidade hoteleira (o castelo de Cerveira foi uma Pousada História da antiga rede Enatur até 2008).
Pensar primeiro
Walter Rossa, um arquitecto que faz investigação nas áreas do património cultural e do urbanismo, não tem qualquer “oposição de princípio” a um programa com os traços gerais do Revive, mas está preocupado com o protagonismo que a Economia, e o Turismo em particular, parecem assumir em todo o processo. “Há um apagamento total da Cultura, que devia assumir a dianteira quando se trata de património. E isto não é uma questão meramente formal. Temos assistido a uma perda de protagonismo e capacidade de intervenção da Direcção-Geral do Património Cultural nestas coisas e isso é injustificável”, diz ao PÚBLICO este professor da Universidade de Coimbra, que há cerca de 20 anos fez um périplo por várias pousadas da rede da Enatur, constatando que nem toda a obra realizada respeitava o edifício pré-existente.
“No Alvito e em Palmela, por exemplo, a intervenção foi desastrosa do ponto de vista patrimonial, muito pesada”, defende. Na lista que agora se completa, diz, há edifícios com características muito diferentes que impõem desafios particulares. Cabe ao Estado elaborar “um caderno de encargos rigorosíssimo para cada um, com todos os valores que é importante preservar, e depois pôr esse caderno à disposição dos arquitectos”. Esse trabalho, a montante de qualquer intervenção, deve ser do conhecimento de qualquer entidade que se submeta a concurso para que saiba exactamente o que deve ser preservado.
“É o Estado que tem de dizer o que tem de ser salvo. A boa intervenção em património não depende só de um bom projecto de arquitectura”, argumenta, “depende também da qualidade do cliente que, neste esquema, deixa de ser o Estado e passa a ser um privado que é por ele legitimado através destes concursos de concessão”. E saber o que é importante salvaguardar, acrescenta, nem sempre é da ordem do visível: “Peguemos no Palácio de Manique do Intendente – um projecto para a revitalização do conjunto que olhe apenas para o edifício tem uma margem de liberdade muito considerável, já que ele está muito arruinado, mas olhar apenas para o edifício é altamente redutor. Qualquer intervenção ali deverá levar em conta que o palácio fazia parte de uma utopia de Pina Manique [o Intendente da Polícia do Marquês de Pombal], que ali queria construir uma cidade ideal. A qualidade depende do foco, depende do que sabemos sobre estes edifícios e do que estamos dispostos a exigir nesta intervenção.”
O Governo já prometeu que vai elaborar para cada um dos 30 casos um caderno de encargos à medida. “É a única maneira de fazer sem hipotecar o património, sem abdicar de nada importante para tornar um palácio devoluto num negócio apetecível”, diz o arquitecto de Coimbra, pedindo uma reflexão prévia e uma “discussão clara” edifício a edifício, para que dos cadernos de encargos não saiam “encomendas inócuas”.
João Luís Carrilho da Graça, um arquitecto que tem no currículo várias intervenções em património – é autor da recuperação da Pousada Flor da Rosa, no Crato, e dos projectos em curso nos conventos de Jesus (Setúbal) e de São Francisco (Coimbra) –, reconhece que nesta lista estão “edifícios bastante importantes que são também excelentes oportunidades de investimento para os privados” e, por isso, pede ao Governo “um controlo apertado” e um acompanhamento cuidado de futuras obras.
“Idealmente, a responsabilidade pela salvaguarda do património compete ao Estado. Se tudo estivesse a correr bem, era assim que devia acontecer. Mas a situação em que nos encontramos, neste domínio, é penosa e inexplicável. E nesta situação de crise, de excepção, é admissível” um programa como o Revive, diz Carrilho da Graça ao PÚBLICO. “Mas, futuramente, é importante assegurar mais investimento para o património.”
com Sérgio C. Andrade