E no início de tudo, eis Marc Bolan
Um ano antes da histórica actuação televisiva de David Bowie, os T. Rex Marc Bolan, andrógino, de fato prateado e purpurinas no rosto, inauguravam a era glam-rock.O reeditado Born to Boogie mostra-nos como era. A caixa Unchained revela a história escondida.
O início aponta Abril de 1972, quando o cabelo laranja e a guitarra azul de David Bowie hipnotizaram a jovem Inglaterra ao som de Starman. Porém, o epicentro dessa micro-revolução de efeitos duradouros a que se chamou glam-rock encontra-se um ano antes. Em Março de 1971, o homem que pouco antes actuava sentado de pernas cruzadas, entre fumo de odor adocicado, perante hippies e outros agentes da contracultura, renascia perante as câmaras do Top of The Tops.
Aquele não era o Marc Bolan que, nos Tyranossaurus Rex, acompanhado pelo percussionista Steve Peregrine Took, criava música cósmica, de base acústica, sobre mansões mágicas, feiticeiros de Tolkien e outras deliciosas fantasias. Aquele, o que cantava o ritmo sincopado de Hot Love e o seu longo singalong final, canto comunitário oferecido à nação, era o início de algo novo. Diziam-no o cabelo aparentemente penteado a choques eléctricos, o casaco e as calças de prateado brilhante e as purpurinas que lhe iluminavam o rosto. Diziam-no o sorriso oferecido às câmaras, como se soubesse perfeitamente o efeito que a pose e os vibratos andróginos do canto provocavam, e que a música, naquele boogie rock’n’roll adornado com orquestração opulenta e coros histriónicos, acentuava. De um dia para o outro, Marc Bolan passou de músico de culto patrocinado pelo sempre atento John Peel a responsável pela T. Rexstasy que varreu a Inglaterra.
“O seu corpo ondula de verdade. É demais. Ele bombeia sentimento em ti e deixas-te ir, simplesmente”, escreveu por essa altura ao Melody Maker uma miúda de 15 anos. O feitiço de Marc Bolan estava lançado. Ele seria o instigador, a estátua perene do glam, aquele que lhe deu corpo e som, o seu cometa mais precioso – depois, David Bowie tratou de lhe dar sentido enquanto novas bandas e novos músicos se multiplicavam em redor de ambos.
Um ano e 16 milhões de discos vendidos depois da actuação no Top of the Pops, na sequência do concerto de entronização no Empire Pool de Wembley, base do documentário Born to Boogie, realizado por Ringo Starr e agora reeditado em DVD pela Edsel, com distribuição portuguesa da VGM (dois CD e dois DVD compõem a caixa), alguém escrevia na imprensa britânica. “Os Beatles e os Stones podem ter visto cenas semelhantes, mas mesmo eles não conseguiriam persuadir durões obstinados de nariz achatado e botas de biqueiro de aço a colar estrelas douradas à volta dos olhos”. A frase é particularmente interessante por nela se exprimir com precisão a natureza de Marc Bolan e os seus T. Rex. Habitaram o fim de uma era (e daí as referências aos velhos Beatles e Stones) e o início de uma nova, a da fantasia, festim hedonista e libertação sexual do glam.
Born to Boogie, que alterna o concerto de 1972 com gravações em estúdio (Ringo, Elton John e restante banda a mostrar a ainda não editada Children of the Revolution) e sequências nonsense (um lanche à Alice no País das Maravilhas nos jardins da mansão de Lennon, com freiras e vampiros e Bolan, cartola de Chapeleiro Louco na cabeça, a tocar acompanhado de secção de cordas), é um curioso documento de época. A euforia glam fica em parte explicada, quer na presença física de Bolan em palco, quer na recuperação para aquele presente do puro prazer do rock’n’roll de Chuck Berry.
Perante Bolan estava uma multidão de miúdos e miúdas que o chamavam, que gritavam o seu nome, que tinham brilhando na cara as mesmaspurpurinas que o ídolo usava. Mais importante é a forma como, em Get it on, Jeepster ou Hot love, eles e elas cantam e dançam como se aquelas canções fossem hinos de libertação, porta de entrada na fantasia escapista que Marc Bolan, estrela desde que nasceu, como o próprio dizia, lhes proporcionava.
Paralelamente à reedição de Born to Boogie, chega-nos também Unchained: Home Recordings and Studio Outtakes 1972-1977 (Edsel/VGM). É exactamente o que o título indica. Uma colecção em oito CD de todas as gravações que Marc Bolan não editou em single ou álbum, desde curtos excertos inferiores a um minuto de ideias nunca terminadas a canções de corpo inteiro que poderiam perfeitamente ter tido lugar na sua discografia oficial. Em conjunto cria-se um percurso paralelo à sua carreira, tão fascinante quanto errático, que segue desde o auge da febre T. Rex, atravessa o período do declínio criativo de meados da década de 1970 e termina no momento em que um possível renascimento em pleno período punk, de que Bolan se reclamou “padrinho”, sem desmentido dos envolvidos, é eliminado pela morte precoce aos 29 anos.
Essencial para coleccionadores e admiradores assolapados, tem uma desvantagem. Marc Bolan foi o mestre da grande ilusão: parecia ter surgido do nada, plenamente formado, para iluminar os nossos sonhos pop e testemunhar todo o trabalho de estúdio desfaz essa ilusão em que se fundou o mito. Ao vê-lo, ao ouvir os seus grandes singles e álbuns do período glam (principalmente Electric Warrior, de 1971, e The Slider, de 1972, se bem que os flirts posteriores com o funk sejam tudo menos negligenciáveis), somos invadidos pela sensação que toda aquela música, imaculadamente registada por Tony Visconti, nasceu no preciso momento em que é interpretada. Marc Bolan sonha e a obra nasce. À sua volta, toda uma geração seguiu com ele.
Em Agosto de 1977, Marc Bolan comentou com Steve Harley, dos Cockney Rebel, que a morte não lhe cairia bem. “Detestaria morrer agora. Só teria um parágrafo na página 3”. Dia 16 de Setembro, depois do despiste de automóvel que o vitimou, foi o seu rosto que fez as capas da imprensa britânica. Bolan gostaria de saber que estava errado.