Enfrentar os medos para respirar melhor a seguir
Há urgência emocional, tensão e emancipação em 1755, álbum de Vaiapraia e as Rainhas do Baile onde o punk, o garage e a pop se encontram. E onde se fala abertamente de temáticas queer. Mais um disco português para não perder de vista.
Ouvimos o medo a ser transformado em raiva, e a raiva a ser transformada em empoderamento, emancipação. Ouvimos 1755, primeiro álbum de Vaiapraia e as Rainhas do Baile. As letras vêm sem subterfúgios, a música, turbulenta, sem rendilhados – o sentimento punk ainda está vivo por aqui, alicerçado num coração pop. Há urgência emocional, franqueza, tensão, sangue a ferver, num disco de temáticas explicitamente queer – ocorrência rara no panorama da música portuguesa, e em português – em que se abordam também questões ligadas à saúde mental.
“Este disco é sobre mim e sobre como é ser queer, mas além das questões de identidade fala sobre saúde mental. Estou diagnosticado com síndrome de bipolaridade tipo 1”, introduz Rodrigo Araújo, 22 anos, mais conhecido como Vaiapraia, neste disco coadjuvado pelas Rainhas do Baile, Shelley Barradas (Frankie Wolf) e Helena Fagundes (entretanto substituída por Lucía Vives, baterista das Ninaz). “Para mim é importante dizer isto porque cresci sem ter nenhuma referência”, sublinha o também representante da promotora Maternidade. “Esta categorização patológica vale o que vale. É um handicap nesta sociedade, mas se eu compactuar com isso e me silenciar, vai continuar a ser um tabu. É importante falar e formar uma rede de apoio.”
Neste disco, Rodrigo reclama o direito à fragilidade. A utilizá-la como um “instrumento de poder”, para ele e para outros, numa estrutura social normativa e estigmatizante que valoriza e procura produzir pessoas de ferro, empreendedores inquebráveis – e o resto que vá para debaixo da almofada. O que nos atira para o título do álbum, 1755, data do terramoto de Lisboa. “O disco é sobre os meus medos, e o medo de terramotos é um deles. E também é sobre Lisboa, sobre viver aqui, agora.”
Agir e reagir são palavras-chave para Rodrigo. Quando ainda vivia em Setúbal, tentava contornar “o jugo da periferia” marcando alguns concertos de bandas lisboetas, estando atento “ao que se andava a passar”, da FlorCaveira ao desabrochar da Cafetra (“Para mim as Pega Monstro representam a esperança do-it-yourself e do-it-together”), indo a Lisboa para ver concertos e exposições. Em 2013 mudou-se para a capital, para estudar História da Arte. Com a Maternidade, promotora criada em 2014 e partilhada com amigos, como os músicos Filipe Sambado e Luís Severo, foi tornando-se num nome dinamizador do circuito de música independente, de uma comunidade vital de jovens músicos e promotores sub-30. Este ano lançou o festival feminista e queer Rama em Flor, numa parceria com a ZDB, onde apresentará o novo disco a 7 de Janeiro, subindo a 21 ao Maus Hábitos, no Porto.
Tal como 1755, a Maternidade é também uma tentativa de aproximar o circuito queer, o activismo feminista e o milieu do rock. Mas Rodrigo não quer só pregar aos convertidos. “Não quero que me ponham só a tocar em sítios em que as pessoas estejam mais radicalizadas nem que isto seja só para pessoas queer”, assinala. “É preciso haver contacto.”
Panelei punk
Antes de 1755 vimos Rodrigo Vaiapraia a dar concertos em nome próprio, em espaços como o Lounge e as Damas. A fazer canções que não nos passaram ao lado, como Licas, Morre Se Queres Morrer ou Panelei Punx. As letras afiadas, entre o confessional e o confronto, a provocação e o humor, não atiravam o sexo e a homossexualidade para um canto escuro, nem os embrulhavam numa subtileza pudica – não é todos os dias que se ouve em português, num país de brandos costumes e moralidade judaico-cristã, versos como “Se eu não me vim, não me leves a mal/ Nem o Tom Cruise é sempre sensacional /Não-bicha, não-macho, olha no que eu virei/ Sou o teu favorito, sou o teu panelei” (Panelei Punx). Um discurso sem rodeios, influenciado em boa parte pelas letras full frontal de Liz Phair. “Como músico, há um antes e um depois de ouvir o Exile in Guyville”, conta Rodrigo.
Em 1755, as palavras (e a voz) crescem ainda mais, arranham ainda mais, fazem pensar ainda mais. A parte instrumental ajuda: se antes, a solo, havia um peso gótico, muito emo-pop rudimentar de quarto, agora as letras são projectadas pelas guitarras esgatanhadas e o ranger garage punk e riot grrrl das Rainhas do Baile. Mas sem floreados. “Eu e a Helena somos muito directas, tornámos as letras mais poderosas com pouco”, diz a guitarrista e baixista Shelley Barradas, que com Helena forma também a dupla Clementine. As histórias vêm primeiro. “A Kathleen Hanna [de Bikini Kill] disse que a Poly Styrene [X-Ray Spex] a ensinou a cantar sobre ideias. Relaciono-me com isso. No meu trabalho as canções são subsidiárias às minhas ideias”, refere Vaiapraia, que também toca teclados.
Isso sente-se em canções como Piropo, de tom ameaçador, fúria que borbulha contra a normalização do assédio e abuso sexual das mulheres, ou Yuppie Casado, balada lo-fi dorida a arder em fogo lento, um alerta para evitar que “a vergonha que os outros têm de nós seja a vergonha que temos de nós próprios”. Coelhinho (“não é Fátima, nem Meca/ mas vi Deus nas tuas cuecas”), Kate Winslet e Perfeito são acidez punk de embate frontal e ginga pop contagiosa, voz que ora se insinua, ora se torce, ora detona (Germs e Hole andam por aqui). Hey Rocky é uma festa de garagem com Seth Bogart (Hunx His Punx), Ronnie Spector e Vivian Girls, e Cosmotusa, “sobre a cidade universitária, o sítio não oficial de cruising de Lisboa”, joga às escondidas com o ska, com final libertador e anfetaminado, qual toque final do recreio.
Há não-conformidade de género, contra identidades fixas e essencialistas, contra a masculinidade tóxica (“levo as jóias, levo o meu bikini”), e referências à cultura pop: o início delicioso de Rapaz #1 é uma menção ao filme Música no Coração; Augustín, onde se alude ao “pavor do HIV” (“bora olhar na cara do Vírus/ bora fazer uma zine sobre isso”), joga com Ele e Ela de Madalena Iglésias, sacudindo a heteronormatividade; Sinos “é inspirada” na canção Chapel of Love, das Dixie Cups.
1755 é um disco biográfico onde a biografia é extensível. 1755 é um disco que Rodrigo, e muitos outros, gostavam de ter ouvido na adolescência. “Quando tinha 13 anos e me chamavam paneleiro na escola eu não tinha música que pudesse ouvir e com a qual me pudesse relacionar em português, por isso também é importante estar a expor-me”, diz. “A porem-me uma categoria não ponham queer punk, ponham panelei punk. Pego em paneleiro, uma palavra suja, que me estremece, aplicada à minha realidade, e uso panelei, a minha subversão da palavra.” Subverter para representar, representar para empoderar – e respirar um bocado melhor. Venham mais discos assim.