Actriz presa nas memórias e nas ausências de Al Berto

Quase 20 anos depois, Zia Soares volta a levar Al Berto ao palco. Até 30 de Dezembro, a actriz enreda-se nas palavras de Luminoso Afogado.

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PAULIANA VALENTE PIMENTEL
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PAULIANA VALENTE PIMENTEL

Al Berto morreu em Junho de 1997. Na altura, Zia Soares era uma jovem actriz do Teatro Praga que decidira avançar para a sua primeira encenação. Propôs-se levar à cena Lunário, um dos textos em prosa de Al Berto, e contactou o escritor – então já numa fase de terminal da doença que o vitimaria – para discutir com ele a adaptação para o palco. Visitou-o algumas vezes, falaram com frequência ao telefone, e, na noite em que o autor de O Medo desapareceu, a actriz deixou-se cair no sono, como habitualmente, com o rádio ligado. Havia de acordar em sobressalto com a notícia da morte – ainda hoje uma memória associada a um plano de suspensão da realidade, algures entre o sonho de travo amargo e a verdade quase etérea.

Agora, ao mergulhar num outro livro de Al Berto, Luminoso Afogado, que põe em cena de 7 a 30 de Dezembro no Teatro da Trindade, em Lisboa, Zia teve de confirmar com amigos que essa memória era real e não uma ficção criada ao longo dos anos. A voz da rádio e a voz do próprio escritor ecoam na forma como, emaranhada em redes de pesca, diz o texto de Luminoso Afogado, o primeiro de uma série de monólogos a que os actores da companhia Teatro Griot se dedicarão nos próximos tempos. Na intensa luta física a que a actriz se entrega deitada sobre as redes, Zia assume uma voz que tenta ela própria desembaçar-se de memórias e de ausências, mas em que o movimento muitas vezes apenas sublinha a incapacidade de se libertar.

“Este texto está muito presente em vários momentos da minha vida”, confessa. “Deixo-o num sítio, nunca mais me lembro dele e ou porque estou a arrumar, ou por qualquer outra razão, vai aparecendo.” Daí que, confrontada com a ideia de avançar para um monólogo, a sua escolha tenha recaído num texto não dramático. E avançou cheia de conceitos, ideias e narrativas de que teve de se desfazer quando chegou a hora de abordar as palavras com o palco em mente. “Abriram-se tantas possibilidades e houve tantas coisas que não tinha ouvido ou percebido que toda esta adaptação do texto se tornou muito interessante”, conta com alguma surpresa. “Normalmente sou muito, muito ansiosa como actriz e aqui aconteceu o oposto, tudo se foi construindo porque o texto é tão claro, tão lúcido, e cria tantas imagens…”.

Uma partitura musical

Para encontrar o tom certo e trabalhar consigo a musicalidade e o ritmo das frases, Zia Soares chamou, à vez, os músicos Filipe Raposo e Chullage. Com o pianista ligado ao jazz e à música de raiz portuguesa, a actriz procurou descobrir os refrães do texto; com o rapper, lançou-se à procura da forma como cada palavra poderia ressoar no parágrafo seguinte. “Há todo um trabalho muito técnico, quase de spoken word e de ecos, que trabalhei com eles de forma muito intensa”, diz. Ambos haviam de espantar-se, sublinhando que Al Berto “sabia mesmo o que fazia – isto tem realmente uma partitura musical”.

É essa partitura que Zia Soares vai desenrolando no meio das redes de pesca que trouxe do Barreiro, depois de ser levada a um armazém e convidada a abastecer-se de quanto material precisasse. Mas as redes, tal como o texto também sugere, não pararam de se acumular. “As últimas chegaram ainda molhadas”, como se reforçassem a urgência das palavras de Al Berto e a sua contínua necessidade de se libertarem.

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