Ferreira Gullar, mestre de poemas que só nasciam do espanto
Nome maior da literatura brasileira, poeta, cronista e ensaísta, arrojado experimentalista da língua e corajoso lutador contra a ditadura, Ferreira Gullar morreu aos 86 anos.
“Se não há espanto, não escrevo”, dizia Ferreira Gullar, Prémio Camões 2010, considerado o último grande poeta brasileiro. Morava em Copacabana, no Rio de Janeiro, cidade onde morreu este domingo aos 86 anos. Estava internado no hospital Copa D’Or por causa de uma pneumonia, como refere a Folha de S. Paulo.
Tinha uma maneira de especial de usar as palavras, uma sensibilidade e ternura que emudecia qualquer um e uma gargalhada sonora e inimitável. Ficou famosa a frase que um dia disse no palco da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP): “Não quero ter razão, quero ser feliz”, quando partilhava a mesa com um escritor palestiniano a quem ele tentava expressar o que pensava da questão israelo-palestiniana. Anos mais tarde, quando lá voltou, em 2010, foi aplaudido de pé. Ver que a poesia ainda conseguia emocionar as pessoas dava-lhe alegria.
O académico brasileiro Samuel Titan Jr, que era o moderador dessa mesa, explica por email que "Ferreira Gullar soube, como poucos, pôr a idéia ou o ideal de invenção no centro de sua poesia. Num primeiro momento, invenção e vanguarda se confundem, mas tenho a sensação de que Gullar logo ficou insatisfeito com a equação - donde a poesia participante, donde o Poema sujo, donde a prosa memorialística destes últimos anos, donde a contínua reinvenção de si mesmo. Cada leitor fará o juízo que quiser sobre este ou aquele livro, esta ou aquela fase - não importa, a inquietação poética, política e humana está sempre lá."
Um dia, fez um poema quando sentiu um osso a bater no outro osso. Por isso defendia que os seus poemas só nasciam do espanto. Chama-se Acidente na sala e está num dos seus últimos livros de poemas, Em Alguma Parte Alguma (ed. Ulisseia). Começa assim: “movo a perna esquerda/ de mau jeito/ e a cabeça do fémur/ atrita/ com o osso da bacia/ sofro um tranco/ e me ouço/ perguntar:/ aconteceu comigo/ ou com meu osso (…)?
Era também o autor de Poema sujo, considerado uma obra-prima e um “ícone de resistência” à ditadura, escrito em Buenos Aires, na Argentina, de Maio a Outubro de 1975 quando Ferreira Gullar, que entrou para o Partido Comunista Brasileiro no dia do golpe militar, em 1964, ali esteve exilado. Outro poeta, Vinicius de Moraes (1913-1980), considerava ser este “o mais importante poema escrito em qualquer língua nas últimas décadas”.
Gullar sabia que a literatura não revelava a realidade e que os poemas são uma invenção, apesar de serem uma reflexão sobre o que se viveu. Dizia que São Luís, capital do Maranhão, onde nasceu em 1930 dos seus poemas, não era a São Luís de verdade, nem podia ser. Também não era a São Luís que ele pensava que se lembrava da sua infância. Era, como disse ao PÚBLICO em 2010, numa entrevista que deu em sua casa no ano em que lhe foi atribuído o Prémio Camões, “uma São Luís nascida da literatura, nascida na invenção poética”.
O seu avô paterno era português. Comerciante e especialista na arte de fazer sapatos, casou com uma brasileira. Por isso o pai de Ferreira Gullar, jogador de futebol, também comerciante quando abandonou a carreira desportiva, já nasceu no Brasil. Na escola, quando começou a escrever poemas, Ferreira Gullar passou por uma fase em que falava em decassílabos. Estudava português numa gramática que no fim tinha uma pequena antologia de poemas de Camões e de Bocage. Achava que os poetas estavam todos mortos até ao dia em que a irmã lhe disse que havia um poeta perto dali. Esse poeta, para que Gullar aprendesse a fazer direito versos, aconselhou-lhe a leitura do Tratado de Versificação, de Olavo Bilac. Assim aprendeu a fazer decassílabos e aperfeiçoou a técnica. “Mas fiz isso com tal afinco que depois falava em decassílabos”, disse entre gargalhadas na mesma entrevista ao PÚBLICO. “Um dos grandes problemas da poesia rimada e metrificada é esse. A quantidade de poetas que acha que está fazendo poesia porque está fazendo verso metrificado. A métrica está certa, a rima está certa e o cara pensa que é poesia, mas não é”, acrescentou.
Publicou o seu primeiro livro em 1949, numa edição de autor, Um Pouco Acima do Chão. Trabalhou como revisor em revistas e jornais, no Rio de Janeiro conheceu os poetas Augusto e Haroldo Campos e participou na I Exposição Nacional de Arte Concreta, mas rompeu com o movimento mais tarde. Escreveu além dos livros de poemas, crónicas, memórias, biografia. Em 1959, no seguimento da poesia concreta criou o Poema Enterrado que foi construído no quintal da casa do pai do artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980). Também era artista plástico, fazia colagens, pintava quadros, fazia mobiles e estátuas.
Não viajava de avião e por isso quando por causa de um documentário regressou à cidade onde havia escrito Poema sujo foi de carro. Em Buenos Aires chegou a ser filmado no prédio onde tinha vivido e reconheceu a cidade de outros tempos o que lhe deu algum contentamento mas estranheza também. Em 2010, explicava ao PÚBLICO a sensação: “Ao mesmo tempo que ali estava tudo igual, não estava você lá, não estava teu passado, não está nada. Quer dizer: só você sabe que esteve ali. A parede, os prédios, não guardam a gente. Nós só nos guardamos a nós mesmos. Só valemos nós connosco. Fora daí é literatura, é poesia, é arte. Ela é que guarda as coisas, que preserva um mundo inventado por nós, o mundo da cultura”. A partir deste domingo a literatura e a arte guardará o Ferreira Gullar para sempre.