Morreu Hugo Ribeiro, o homem que nos ensinou como ouvir Amália

Amália, Carlos Paredes, Alfredo Marceneiro, Carlos do Carmo, Rui Veloso. Todos eles foram registados por Hugo Ribeiro, técnico de som de mestria ímpar e figura incontornável da música portuguesa.

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Amália era “uma espécie de camarada nossa” Gonçalo Frota, Vera Moutinho

Era o mais importante técnico de som da música portuguesa. Era muito mais que isso. Foi o responsável por ouvirmos Amália como a ouvimos nos discos de estúdio, foi aquele cujo talento permitiu preservar incólume o génio de Carlos Paredes, foi quem persuadiu Alfredo Marceneiro a gravar o mais famoso álbum do lendário fadista, The Fabulous Marceneiro (1961). Fez mais: gravou os primeiros passos do rock português (Os Caloiros da Canção, em 1960, de Daniel Bacelar e Os Conchas, o primeiro registo discográfico oficial do género), mas também Carlos do Carmo, Simone de Oliveira, António Calvário, Sheiks, Quarteto 1111, Tantra, Rui Veloso ou Marco Paulo. Hugo Ribeiro, nascido em 1925 em Vila Real de Santo António, homem de obra feita, a obra de uma vida, na companhia discográfica Valentim de Carvalho, morreu este sábado em Lisboa, aos 91 anos, noticia a Lusa.

Sendo um “amador”, Hugo Ribeiro foi um mestre na invenção de soluções que permitissem captar os músicos que gravava, não da forma mais fiel possível, mas da maneira mais adequada ao temperamento da sua voz artística. Fazia-o recorrendo ao seu ouvido magnífico e à sua sabedoria técnica, mas também a uma sageza ímpar na condução dos músicos em estúdio. São famosas as histórias de como enganou Amália, pondo-a cantar para um microfone desligado enquanto, no fundo da sala, um outro, ligado, captava a voz em toda a sua amplitude. Ou como levou Marceneiro a ultrapassar o seu desconforto com o ambiente estéril do estúdio sugerindo que cantasse com uma venda sobre os olhos.

Quando chegou a Lisboa, aos 18 anos, não pensava em fazer da música o seu futuro profissional. Apaixonava-o a meteorologia e imaginava-se a trabalhar numa área científica a ela ligada. Porém, um primo, próximo de Valentim de Carvalho, fundador da histórica empresa da música portuguesa, iria encaminhá-la na direcção certa. Em vez da meteorologia, o trabalho atrás do balcão da casa situada na Rua Nova do Almada, ao Chiado, onde cuidava, por exemplo, da venda de partituras. Quando a Valentim de Carvalho se expandiu, passando também a assegurar todo o processo de gravação, Hugo Ribeiro acompanhou a mudança. Trabalhou na sala gravações na própria Rua Nova do Almada e acompanhou a mudança para o Clube Estefânia, onde havia que lidar com o ruído dos pavões do jardim do Hospital da Estefânia e com o ruído da sala de bilhar no andar acima. Daí passou para o Teatro Taborda, onde as preocupações eram um chão a ameaçar derrocada e os gritos das varinas e do trânsito no exterior. Em 1963, quando foi inaugurado o moderníssimo estúdio de Paço d’Arcos, inspirado nos famosos estúdios de Abbey Road onde os Beatles registaram a sua obra, Hugo Ribeiro passou a ter que se preocupar “apenas” com a melhor forma de registar os vários músicos que lhe entravam pela sala.

Hugo Ribeiro era um profundo conhecedor das mais diversas áreas musicais: foi o gosto por ópera que fez nascer uma amizade com o cirurgião Francisco Pulido Valente, cliente da loja ao Chiado da Valentim de Carvalho, percorreu o país com o grande amigo Rui Valentim de Carvalho, sobrinho do fundador da discográfica, para registar ranchos folclóricos, amava o fado e percebia o rock’n’roll. Animava-o um espírito prático e iluminado – “tem a paixão de encontrar as soluções, porque ama a música que está a fazer”, dizia ao PÚBLICO em 2014 David Ferreira, durante três décadas o homem ao leme da EMI-Valentim de Carvalho – e uma consciência aguda de que nem só as questões técnicas eram determinantes para atingir os objectivos pretendidos nas gravações. “Quando ia alguém gravar ao estúdio, eu tinha de conhecê-lo bem para saber como tinha de tratar com ele”, contava há dois anos ao PÚBLICO. Daí, naquela noite no Teatro Taborda, ter-se aproximado de Alfredo Marceneiro e sugerido que o fadista usasse o lenço que trazia sempre ao pescoço como venda, forma de Marceneiro se imaginar nas casas de fado onde a sua voz fluía naturalmente. Daí o truque do microfone desligado com Amália (agradeçamos-lhe, portanto, discos históricos como Busto ou Com que Voz), ou a mola presa no nariz de Carlos Paredes, para que a respiração grave do guitarrista não se sobrepusesse ao som da sua guitarra (e nascem então os geniais Guitarra Portuguesa e Movimento Perpétuo).

Homem caloroso, infatigável contador de histórias, Hugo Ribeiro deixou uma marca profunda em todos os músicos com quem se cruzou, independentemente das diferenças geracionais. “Num país normal, o Hugo podia ganhar a vida em universidades, a partilhar com estudantes, artistas e técnicos de som para que aprendessem com a sua experiência”, defendia David Ferreira. Amália, por quem nutria incontida admiração, reservava-lhe o maior dos elogios: “Já gravei em muitos países. Os italianos gravaram-me bem, mas o Hugo Ribeiro, da Valentim de Carvalho, é que grava aquela que eu acho que é a minha voz, aquela que eu oiço”.

Amante incondicional do seu ofício, Hugo Ribeiro continuava a viajar semanalmente até Paço d’Arcos para tomar o pulso ao trabalho que ali se continua a fazer e para visitar os arquivos onde estão guardadas as mais de quatro mil bobines que compõem o trabalho da sua vida, património insubstituível da música portuguesa.

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