Uma chafarica europeia para democratas e fascistas

À boleia de Horváth, Rodrigo Francisco apresenta em Almada uma Noite da Liberdade que lida com a ascensão da extrema-direita. Uma peça de 1931, como se fosse hoje.

Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR

Há dois anos, logo após as eleições europeias, a líder da Frente Nacional francesa, Marine Le Pen, levava a cabo uma primeira tentativa de formar um grupo parlamentar de extrema-direita no Parlamento Europeu. A iniciativa acabaria por falhar ao não alcançar o número mínimo de deputados exigido para o efeito, mas a própria motivação era já reveladora da subida substancial de votos naquele quadrante ideológico. Foi nessa altura que Rodrigo Francisco, director da Companhia de Teatro de Almada, começou a pensar em levar à cena Noite da Liberdade, texto que o alemão Ödön von Horváth escreveu em 1931, imediatamente antes da ascensão de Hitler ao poder.

Em dois anos, os sinais da subida da extrema-direita foram-se acumulando e excedendo, Le Pen conseguiria mesmo, em 2015, formar o grupo Europa das Nações e das Liberdades com deputados franceses, holandeses, austríacos, italianos, flamengos, alemães, romenos e britânicos, num total de 39 membros (a que acrescem ainda os gregos do Aurora Dourada, integrados noutra família política), o sentimento anti-europeísta alastrou pelo continente fora e, aos poucos, “a realidade veio encaixar-se na ficção”, comenta o encenador. Em plenos ensaios para a estreia da peça que estará em cena no Teatro Joaquim Benite, em Almada, até 11 de Dezembro, a vitória de Donald Trump do outro lado do Atlântico deixou os actores quase em estado de choque.

Noite da Liberdade passa-se em torno da taberna de Josef Lehninger, homem cuja complacência (ou falta de escrúpulos) lhe permite acolher no seu estabelecimento, durante a tarde, um encontro fascista e, depois de apressar a saída dos nacional-socialistas, receber à noite uma festa republicana. “O dono da chafarica é a Europa”, comenta Rodrigo Francisco, chamando a atenção para o facto de o lugar de Josef atrás do balcão estar enquadrado pelas estrelas da bandeira da União Europeia. “É aquele tipo que apregoa os valores europeus da tolerância inscritos no hino da Europa e, tal como faz o Parlamento Europeu, acolhe fascistas.” É daqui que vem a grande pergunta que o encenador pretende levantar com o texto do autor alemão: “Como pode a democracia sobreviver quando as pessoas já não querem a democracia?”. Como pode a democracia lutar contra aqueles que, legitimamente eleitos, constituem a sua maior ameaça e a podem minar por dentro?

Horváth, recorde-se, escreveu uma peça em que no interior do Partido Social-Democrata (SPD), e perante a emergência do fascismo, duas facções se opõem na forma de lidar com o problema. “Uma facção mais radical queria a luta armada; outra mais velha, que tinha conhecido a guerra, não queria mandar às urtigas a Constituição pela qual tinha lutado – queria combater os nazis, sim, mas democraticamente.” O resultado conhecido desta disputa interna foi a eleição democrática de Hitler em 1933, já depois de ter sido nomeado chanceler e começado a pôr em prática o ataque continuado às liberdades civis. Ao olhar para a eleição de Trump e para as sondagens sobre as eleições presidenciais francesas, Rodrigo Francisco defende que cabe também ao teatro “pegar nestes textos e lembrar às pessoas que isto já aconteceu e que, portanto, não faz sentido voltar a cometer os mesmos erros”.

O mundo tal e qual

Este teatro – “um teatro que intervenha, que esteja em contacto com a comunidade, que cause debate, confronto, e que se inscreve na tradição do teatro grego, em que um tipo chega à cena e diz uma coisa, outro diz outra e a partir daí há conflito”, descreve o encenador – é o teatro que aprendeu a fazer com Joaquim Benite, fundador da Companhia de Teatro de Almada, e o único que verdadeiramente lhe interessa. Não se revê num “teatro de entretenimento”.

Horváth oferece-lhe não apenas “a poesia e a profundidade ao falar deste problemas”, como ajuda a um exercício de reflexão sobre os caminhos semelhantes que a História já antes terá tomado. Mas agrada-lhe também porque faz a crítica impiedosa de uns e de outros. Tanto castiga a facção republicana aburguesada e crente de que a democracia se basta a si mesma para estar a salvo, quanto sugere no líder dos revolucionários republicanos um tipo guiado pela vaidade, pela manipulação (prostitui a namorada para retirar dividendos políticos), deixando antever uma linha directa entre essa primeira vontade de agarrar nas armas e partir para a luta e a futura embriaguez com o poder que conduzirá fatalmente ao acomodamento. Hórvath dizia, recorda Francisco, que embora fosse acusado de ser pessimista se limitava “a pintar o mundo tal qual ele infelizmente é”.

Contrastando as duas festas e fazendo dos republicanos gente que se regozija com um bailarico popular anacrónico, ao passo que os fascistas – que Francisco veste com o traje académico – se celebram num ambiente de discoteca de cuidado apelo visual, não se esconde aqui a perfeita noção de que o populismo de extrema-direita domina com perícia as armas da sedução. É também por isso que, depois de o vereador republicano se despedir garantindo que “a democracia pode dormir descansada”, o encenador faz suceder uma série de vídeos de algumas das figuras de proa da actual extrema-direita europeia. Para que ninguém vá para casa a achar que se pode entregar a um sono tranquilo.

Sugerir correcção
Comentar