Um livro mais ou menos livro

Às tantas, Um Africano Sedutor, biografia de José Fonseca e Costa por Jorge Leitão Ramos, torna-se num aglomerado de factos e factóides, de números e excertos. É pena, indiciava algo mais.

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José Fonseca e Costa, biografado em Um Africano Sedutor FOTO: MIGUEL SILVA/ PÚBLICO

De entre os críticos de cinema portugueses, Jorge Leitão Ramos parece ser o mais empenhado em fugir à máquina imparável das inúmeras estreias semanais e dos frequentes eventos ligados à sétima arte. Pelo menos, é aquele que, em tempos recentes, tem espraiado mais a sua escrita para fora das páginas da imprensa (embora continue a assinar semanalmente recensões aos filmes em cartaz no Expresso). Prova disso é o gigantesco Dicionário do Cinema Português (cujo último e terceiro volume, sobre as primeiras décadas da nossa cinematografia, saiu em finais de 2012) ou a biografia de Fernando Lopes (do mesmo ano). A estes, vem juntar-se agora nova biografia de um nome fundamental da geração do Cinema Novo: José Fonseca e Costa - Um Africano Sedutor, editada cerca de um ano depois da morte do realizador de Sem Sombra de Pecado e Balada da Praia dos Cães.

Um Africano Sedutor assenta num dado curioso. Logo no prólogo, Leitão Ramos revela ter sido amigo chegado de Fonseca e Costa, até se desentenderem por volta da estreia de Cinco Dias, Cinco Noites em meados dos anos 90: a opinião negativa do primeiro desagradou ao segundo, que esteve quase sempre em conflito aberto com boa parte da crítica (apesar de ele próprio ter escrito sobre cinema na juventude). A proximidade entre biógrafo e biografado poderia ter ajudado a iluminar a figura de Fonseca e Costa, de quem se conhece sobretudo a imagem pública, quezilenta e um tanto azeda; e a desavença originado um relato da amizade entre um realizador e um crítico (necessariamente problemática). Ao contrário, manifestam-se no pudor em tratar assuntos privados. Não se esperaria revelações bombásticas ou inconfidências (aliás, compreende-se a sua ausência), mas estranha-se que relações amorosas, traços de personalidade e alguns episódios divertidos sejam relegados para o epílogo (e apenas referidos), aflorando uma história bem mais interessante do que a que foi contada.

“Se tivesse podido fazer deste livro um livro bastante livro, ele teria em si tudo”, escreve Leitão Ramos, nunca explicando o que o terá impedido de o fazer. E, no entanto, o autor enceta a biografia num estilo dir-se-ia quase romanesco, como se pretendesse fazer o tal “livro bastante livro”. Esse desejo expressa-se imediatamente no primeiro parágrafo, no qual descreve a chegada do barco que trouxe a família Fonseca Costa de volta a Lisboa, vinda de Angola (onde José Fonseca e Costa viveu até aos 12 anos), e evidencia-se nos capítulos dedicados aos antepassados do realizador, baseados nas memórias deste e da irmã Ana Maria. De resto, continua a sentir-se até ao momento em que Leitão Ramos se acerca do início da actividade cinematográfica de Fonseca e Costa. Pode questionar-se por que razão o estágio do português com Michelangelo Antonioni (um dos seus ídolos) na rodagem de O Eclipse e o encontro com os cineastas com quem viria a “criar” o Cinema Novo no Vává merecem só menções de raspão, mas esta é claramente a melhor parte de Um Africano Sedutor.

Contudo, reproduzindo um defeito de outras biografas, Leitão Ramos deixa que a obra oblitere a vida pessoal do retratado. Pior, mal começa a percorrer a filmografia de Fonseca e Costa, filme a filme, projecto a projecto, cai num padrão narrativo cada vez mais monótono: às dificuldades de pré-produção seguem-se as de rodagem, com os actores e os técnicos a não corresponderem ao exigido; a estas, a recepção crítica, geralmente dividida ou a pender para o negativo, e o acolhimento do público, às vezes bastante bom, outras nem por isso; a isto tudo, a reacção rabugenta do realizador. Das primeiras vezes, aceita-se como um passo necessário, porventura essencial para perceber os meandros do cinema português, as fricções entre facções com visões tão diferentes sobre o que este deveria ser (Leitão Ramos não se coíbe de explicitar as rivalidades, as maldades, as alfinetadas dadas por uns cineastas a outros), as limitações financeiras com que se trabalhava e o desenrascanço a que levavam, até mesmo a maneira de ser de Fonseca e Costa. Quando o tema são os projectos falhados, como O Senhor Ventura, adaptação gorada de um romance de Miguel Torga, volta a vislumbrar-se a tal veia romanesca de Leitão Ramos, o seu prazer em contar histórias. Das últimas vezes, é um cansativo chover no molhado, facto agravado pela falta de sentido de ritmo do crítico, que nem sequer experimenta fazer pequenas variações dentro da repetição.

A compilação exaustiva de toda e qualquer crítica relativa à obra José Fonseca e Costa (incluindo as de Leitão Ramos, que se auto-cita abundantemente), às vezes transcritas quase na íntegra, é ainda mais duvidosa. Se por um lado dá a conhecer o contexto no qual os filmes foram recebidos e a opinião de certas personalidades menos ligadas ao cinema (como José Saramago), por outro poder-se-ia considerar preguiçosa (vulgo, enchimento de chouriços), não fosse conhecida a compulsão do autor pela acumulação de informação (o seu Dicionário do Cinema Português sofre do mesmo problema). Ora, a questão é exactamente essa: às tantas, Um Africano Sedutor torna-se num aglomerado de factos e factóides, de números e excertos. É pena, pois o primeiro terço do livro indiciava algo mais.

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