Revolução cubana, homossexualidade e dissidência: a mentalidade da época

Na mudança da água para o vinho, ou da distopia para a utopia, reside um dos elementos-chave que explicam a perpetuação, já por seis décadas, do regime castrista

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Reuters

Não faz assim tantos anos, Fidel Castro publicava no Diario de Cuba: “Não podemos acreditar que um homossexual possa reunir as condições e requisitos de conduta que nos permitam considerá-lo um verdadeiro revolucionário”. Curiosamente, nos seus célebres "Diários de motocicleta", Ernesto Guevara confessava levar na mochila um volume de poemas de Federico García Lorca, poeta gay e militante que serviria de inspiração humanista para o jovem Che naquela que foi a sua viagem de formação pelos confins da América Latina. É sem dúvida complexa e contraditória a relação entre revolução cubana e homossexualidade.

Documentos como "Antes que anoiteça", a autobiografia de Reinaldo Arenas depois adaptada ao cinema por Julian Schnabel, vão fundo no tema da perseguição aos homossexuais nos primórdios da revolução. A violência policial, os campos de concentração, os trabalhos forçados e toda sorte de violações ao que contemporaneamente chamamos “direitos humanos” foram uma realidade sistematizada pelo regime e da qual não escapavam os dissidentes cubanos. E no que respeita aos “sexualmente desviados”, o livre exercício amoroso foi, por si só, considerado indício de dissidência.

A partir dos anos 80, a epidemia de SIDA acrescentaria novas camadas de complexidade à questão. O isolamento nas antigas UMAPs (Unidades Militares de Ajuda e Produção), nome oficial dos campos de trabalhos forçados, era substituído pela clausura em sanatórios que correspondiam aos sempre exemplares padrões de desenvolvimento da medicina cubana. A tal ponto que há notícias de que jovens roqueiros perseguidos pela sua adesão ao “imperialista” movimento punk auto-injetavam o HIV como forma de protesto ou, quiçá, de inclusão social, já que os sanatórios para onde eram enviados proviam os pacientes de todas as necessidades de subsistência e atenção sanitária.

Até aqui, nenhuma novidade, e desde o anúncio da morte de Fidel Castro a imprensa de militância LGBT tem feito circular pelas redes sociais a memória do lado mais obscuro da festejada revolução. A resposta dos mais arraigados a uma visão romântica da biografia do líder cubano parece estar, também, na ponta da língua. No final da década passada, Fidel Castro reconheceu e responsabilizou-se pelos equívocos históricos da revolução cubana, especialmente pelas suas dívidas com a comunidade LGBT. E temos que reconhecer que as justificativas do estadista foram bastante além de um formal mea culpa, já que se traduziram num giro de 180 graus no que à atenção às minorias sexuais se refere. Mariela Castro, filha do atual mandatário Raúl, encontra-se à frente do CENESEX (Centro Nacional de Educação Sexual), cujas iniciativas em tudo condizem com as políticas de inclusão sexual da ilha caribenha. Cuba, hoje em dia, proporciona gratuitamente a cirurgia de mudança de sexo aos trangéneros, reconhece legalmente as uniões civis entre homossexuais, etc.

Na mudança da água para o vinho, ou da distopia para a utopia, reside um dos elementos-chave que explicam a perpetuação, já por seis décadas, do regime castrista: a sua capacidade nata e elástica de incorporar ao programa estatal certas demandas da dissidência. Em 2015, o centro cultural fundado clandestinamente em La Habana por María Gattorno (a Casa de Cultura Roberto Branly) e que serviu de celeiro para as mais contraventoras bandas de metal locais foi substituído pela Agência Cubana do Rock. Gattorno, confessa fã dos Beatles, aceitou o convite para gerir a nova instituição estatal.

Nessa radical mudança de paradigmas, é imprescindível reconhecer o papel da sociedade civil na transformação da realidade cubana e escapar, assim, das idealizadas simplificações que atribuem os logros humanitários ou humanistas da Cuba contemporânea exclusivamente ao pulso firme do regime. Muito se tem desculpado ao Castrismo pelos tempos sombrios da perseguição à homossexualidade, sob a escusa de que entre os anos 60 e 80 a homofobia fazia parte da mentalidade da época e não menos homófobos éramos nós no mundo capitalista. Acontece que de uma revolução não se espera que ela reitere a História, antes que a interrompa e transforme. Daqui a meio século, serão igualmente relativizantes as análises das temeridades destes dias que correm? Fico a imaginar: “no alvorecer do século XXI, os maridos assassinavam diariamente as suas esposas e os refugiados do Médio Oriente e da África subsaariana afogavam-se, por força do hábito, nas costas do Mediterrâneo. Era a mentalidade da época”.

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