O quê? O meu avô era fotógrafo?
Era um fantasma que pairava há décadas pelo Arquivo Municipal Fotográfico de Lisboa. A autoria do seu espólio fundador ficou escondida até agora. Uma exposição revela finalmente quem andou a fotografar a cidade durante dez anos na viragem do século passado. Há várias surpresas.
Foi um mistério que atormentou durante anos os funcionários do Arquivo Municipal Fotográfico de Lisboa, como um fantasma. Quem teria andado pela cidade, entre 1898 e 1908, a fazer fotografias dos prédios e das ruas de uma forma tão estudada e sistemática? De quem foi a ideia? Quem financiou tamanha empreitada? Foram feitas várias tentativas para chegar a um nome, um estúdio, um fotógrafo, uma acta de sessão de câmara, um relatório, um pagamento, mas nunca se conseguiu nenhuma relação directa, nenhum documento, nada. Até agora: está provada a autoria do Fundo Antigo, o conjunto de imagens fotográficas que, em 1942, deu origem ao arquivo e que é, até hoje, um dos mais importantes espólios à sua guarda. É uma revelação enorme que traz consigo várias surpresas, a maior das quais aquela que demonstra que não foi um, mas dois os fotógrafos envolvidos neste monumental trabalho que deu origem a 3800 negativos em vidro, e quase outras tantas provas em papel coladas em páginas de dezenas de álbuns amarelecidos.
Os nomes da primeira surpresa são: Arthur Júlio Machado (1867-1947) e José Candido d’Assumpção e Souza (1856-1923), cortesia de uma equipa do arquivo da Rua da Palma que, durante o segundo semestre do ano passado, não arredou pé enquanto não descortinou as pistas que relacionassem algum nome a um conjunto de imagens de extraordinária importância a vários níveis, a começar pelo seu lado inédito em Portugal (em qualidade e em quantidade). Para além da intenção de inventariar, cartografar e fotografar (numa época em que outras cidades europeias estavam a fazer o mesmo), estas fotografias revelam o frenesi da cidade, mostram que está viva, com crianças à espreita, varinas, carroças e gente a conversar à janela.
Quando o Arquivo programou uma exposição a partir das imagens do Fundo Antigo no início de 2015, ainda não se sabia nada do que hoje se sabe. O que havia nessa altura era o que sempre houve no arquivo: milhares de chapas de vidro com fotografias de qualidade, um conjunto de grande coerência e imagens que revelavam que se estava perante alguém “com sensibilidade” para captar “o espírito da cidade” para além da frieza topográfica das fachadas, dos prédios, das ruas.
A segunda surpresa vem agarrada ao chavão que diz que, por vezes, aquilo que mais procuramos está mesmo à frente dos nossos olhos. É que a chave para começar a desvendar este mistério que perdurou tanto tempo até estava arquivada no… Arquivo Municipal Fotográfico. Há cerca de 15 anos, Luísa Costa Dias, alguém que sempre se bateu pela descoberta da autoria do Fundo Antigo e directora daquela casa entre 1994 e 2011, ano em que faleceu, pediu a uma historiadora de arte, Maria de Lurdes Ribeiro, para tentar a sua sorte. O trabalho começou a ser feito, foi reunida documentação, mas não foi estabelecida nenhuma ligação concreta. Certo é que entre a papelada arquivada estava um requerimento de 20 de Julho de 1898, no qual constava uma proposta para fotografar os prédios da cidade que para além de uma preocupação estatística demonstrava uma atenção “memorialista” da urbe em transformação. E como é que agora se chegou a este documento fotocopiado e arquivado no arquivo? Paula Figueiredo Cunca, investigadora envolvida na equipa, explica: “Alguém se lembrou que a Maria de Lurdes [também já falecida] tinha referido este requerimento como alguma coisa que podia vir ser uma pista importante. Mas para além dela, e desde essa altura, ninguém leu esse documento. Depois de o encontrar e de o ler, percebi que estava ali tudo”. Para Cunca, uma das razões por se ter demorado tanto tempo até se chegar à identificação da autoria (este espólio ficou anónimo durante mais de cem anos se atendermos ao fim da captação de imagens, em 1908) é que “sempre se julgou que se tratava de um fotógrafo importante (Joshua Benoliel, por exemplo), um grande estúdio ou uma grande encomenda”. E por isso, os caminhos das investigações anteriores foram sendo feitos nesses sentidos. “Mexeu-se em muita documentação, mas nunca na documentação certa.” E desta vez, até as obras de remodelação no arquivo, que obrigaram a um adiamento desta exposição ajudaram, já que houve mais tempo para a investigação.
Depois deste primeiro fio condutor, as descobertas relacionadas com a actividade fotográfica destes dois homens sucederam-se. Havia que corroborar os dados desse requerimento, cruzá-lo com outras fontes para se confirmar com toda a certeza de que se estava perante os autores certos. “A equipa inicial de duas pessoas multiplicou-se e foi toda a gente para o Arquivo Municipal do Arco do Cego à procura de documentação do expediente da Câmara que pudesse dar mais pistas, folhas de pagamento, uma licença, qualquer coisa.” Foi aqui que se percebeu que o trabalho foi pago a uma empresa (outra surpresa), a Machado e Souza, constituída para levar avante o projecto.
E como é que tudo começou? Em 1898 Arthur Júlio Machado e José Candido d’Assumpção e Souza trabalhavam na Câmara como desenhadores no Serviço Geral de Obras. A sua primeira intenção terá sido utilizar o registo fotográfico como uma ferramenta utilitária, que ajudasse a indexar o parque urbanístico de Lisboa e que orientasse os que decidiam as profundas transformações da cidade nessa viragem de século (abertura de novas ruas e avenidas, novas zonas residenciais). Ao mesmo tempo, a fotografia foi encarada como o melhor suporte iconográfico para preservar a memória do edificado que ia sendo destruído para dar lugar a novas construções. Quando submeteram o requerimento para aprovação, a 20 de Julho de 1898, os dois desenhadores lembraram que sua ideia não era nova e lamentaram que outro projecto semelhante, iniciado em 1871, tivesse sido interrompido. A isto juntou-se um arquitecto-chefe da câmara, José Luís Monteiro (1848-1942), que apadrinhou logo a ideia e um chefe de Arquivo (também olisipógrafo), Eduardo Freire de Oliveira (1841-1916), com um claro interesse pela construção de memória visual da cidade.
Os dois desenhadores apresentaram o seu projecto de uma forma pragmática: queriam fazer fotografias “da frente ou frentes sobre a rua com a data em que foi tirada e havendo em qualquer frente elementos decorativos, históricos ou archeologicos” nos prédios, monumentos e edifícios públicos. É uma abordagem fotográfica até então inédita na cidade, como nota Paula Figueiredo Cunca num dos textos do catálogo que será impresso a propósito desta exposição. “Nunca assim se tinha visto: fotografar para documentar a cidade sem inquietações comerciais, sociais ou estéticas, mas urbanísticas.” No mesmo ano, obtiveram aprovação e começaram a fotografar.
A consumação da empreitada destes dois homens passava sobretudo pela “organização de álbuns com as photographias dos prédios da cidade de Lisboa, acompanhadas da monografia de cada um d’ elles, conforme a sua importância relativa”. Ou seja, para além da tomada de vistas fotográficas de prédios, havia que fazer pelo menos duas impressões de cada imagem e construir registos documentais com dados que incluíam detalhes como o número de andares, nome do proprietário, nome da rua, etc. Uma dessas cópias ficava arquivada, a outra seria para uso nos serviços de obras.
E aqui entra a terceira surpresa que é também um “reencontro”, depois de um “divórcio forçado”. Quando o Arquivo Fotográfico saiu das instalações do Museu da Cidade, os negativos viajaram com o primeiro e a maior parte dos álbuns ficaram no segundo (não se sabe porquê). Perante a informação do requerimento de 1898, só agora foi possível determinar que se trata do mesmo corpo de trabalho. O número de cópias em papel corresponde, grosso modo, ao número de negativos em vidro existentes do Fundo Antigo. Exemplares desses álbuns podem ser apreciados na exposição do Arquivo (patente até ao dia 23 de Janeiro de 2017).
Descoberta a identidade dos autores do espólio, a equipa do Arquivo lançou-se na investigação de outros detalhes da vida destes dois funcionários que ajudassem a compreender melhor as suas opções e o que os levou a embarcar nesta aventura. A informação até agora recolhida permite saber que tiveram percursos profissionais de alguma maneira ligados à criatividade e às artes. Eram técnicos com um olhar não apenas topográfico, mas sensível ao pulsar da cidade. José Candido nasceu, viveu e trabalhou em Lisboa. Frequentou aulas de Desenho e Pintura nas Belas Artes. Começou a trabalhar na Direcção Geral dos Trabalhos Geodésicos, em 1877, na secção de fotografia, mas foi como desenhador que viria desenvolver carreira. Não foi possível identificar a formação académica de Arthur Júlio, mas, para além da actividade como desenhador na câmara de Lisboa, sabe-se que assinou projectos de arquitectura e que passou num exame de mestre-de-obras. Foi compositor e maestro.
Vamos a mais duas surpresas? Nenhum dos descendestes dos autores tinha a mais pequena ideia deste trabalho dos seus antepassados e foi com espanto que receberam a novidade. O encenador e actor Carlos Avilez, neto de Arthur Júlio, com quem viveu até aos 12 anos, diz que se falava publicamente do avô “por várias outras coisas”, nomeadamente por compositor de operetas, peças teatrais e de revista. Mas este seu trabalho como fotógrafo era-lhe desconhecido. “Ele nunca referiu isto comigo. É extraordinário. Era uma pessoa de uma grande simplicidade e sensibilidade, de enorme valor, mas não se elogiava a si próprio. Quando me contaram fiquei surpreendido”, afirma Avilez ao PÚBLICO, que não teve dúvidas quando lhe pediram para identificar o seu avô em duas fotografias do Fundo Antigo onde posa (provavelmente) para o seu parceiro, José Candido. “A documentação que o Arquivo reuniu sobre ele é de uma pesquisa extraordinária. Batia tudo certo.” “Quero ir mais vezes à exposição. Ali encontro o meu avô. Estou a olhar para o mundo dele.”
O sentimento de Fernando Sousa, bisneto de José Candido e antigo jornalista do PÚBLICO, foi muito parecido com o de Avilez. “Quando me disseram ‘Não sei se o senhor sabe mas o seu bisavô foi uma das pessoas que fez o primeiro levantamento fotográfico sistemático de Lisboa’ eu respondi ‘Estão a brincar comigo? Eu ouvi todas as histórias de família e isso nunca foi abordado. Nunca ninguém me disse que o meu bisavô tinha fotografado Lisboa dessa maneira”. Fernando ficou estupefacto e continuou a duvidar, mas do outro lado insistiam: “Olhe que é verdade, foi ele e outro sócio”. “Sócio? Eu nem sequer sabia que ele tinha uma empresa!” Depois da documentação apresentada pelo Arquivo, Fernando ficou totalmente convencido e diz que esta descoberta “traz outra alma às fotografias”. “Vê-se o amor que eles tinham por aquilo que estavam a fazer, com a presença do elemento humano, não há apenas edifícios, há pessoas, multidões, pessoas que estão à espreita. E não são apenas um documento da cidade, são também documentos do quotidiano, de vestuário, de relações sociais e de desenvolvimento da cidade. Vê-se, por exemplo, que Lisboa era uma cidade pobre”, diz o bisneto, que através das fotografias expostas sente uma relação “afectuosa” dos autores para com a cidade. Para além deste lado humanista, Fernando destaca nas imagens do Fundo Antigo “o retrato de uma Lisboa que está a desaparecer e de outra que está a nascer”.
Agora, para variar, uma coincidência. O artista que há mais de uma década construiu um trabalho a partir das imagens deste espólio, a que chamou Anónimo, apresentado na bienal LisboaPhoto de 2005, é o mesmo que fez a curadoria da actual exposição no Arquivo, José Luís Neto. Quando começou a escolher imagens do Fundo Antigo, nada se sabia sobre os autores. Mas a partir do momento em que começaram surgir informações sobre quem eram estes homens, Neto reposicionou o seu projecto expositivo tentando mostrar a “sensibilidade incrível” dos dois desenhadores. “Quando isso aconteceu, vi que havia a possibilidade de cruzar mensagens, do desenho, da arquitectura, da música. Comecei a rever tudo.” Fugindo de qualquer sequência cronológica (os negativos têm a data inscrita) ou geográfica, o curador decidiu criar vários núcleos temáticos, que vão dos anúncios publicitários e da tipografia da cidade, às grandes construções e monumentos, ou das árvores e da água aos muros. As mais de 100 fotografias mostradas respeitam a escala exacta do negativo (não houve ampliações ou reduções do formato original 13X18 cm). Ao contrário do exercício que foi feito em Anónimo, trabalho que foi reposto e que isola figuras anónimas que vagueiam pela cidade, numa tentativa de dar a ideia de descontínuo na fotografia e de aproximá-la ao desenho (coincidência?). Com a descoberta dos autores do Fundo Antigo, a noção de “anónimo” no trabalho de Neto foi reconfigurada – apenas as figuram que nele vagueiam continuam de identidade desconhecida. Em conversa com o PÚBLICO, o artista diz apreciar esta mutabilidade da essência do seu primeiro trabalho sobre um espólio que conhece bem. “Esta é uma reposição muito feliz”.
Como é feliz o nome escolhido para a exposição e que não podia ser outra coisa senão Lisboa, Uma Grande Surpresa e que não podia vir de outro lugar senão das imagens do Fundo Antigo (está algures nas imagens destas páginas, basta olhar com atenção).