O que se passa no WC do Lux fica no WC do Lux

Até 16 de Dezembro, as casas de banho da discoteca de Lisboa recebem o Quarto Escuro de Mónica Calle. Um jogo de adultos, de um para um.

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JOÃO TUNA
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Quarto escuro é habitualmente um jogo de crianças. No Lux-Frágil, em Lisboa, por um mês, tem sido sobretudo um jogo de adultos. Mas mantém-se uma certa ideia de procura e de adivinhação do outro neste espectáculo à mais pequena escala – uma actriz para um(a) espectador(a) – que se desenrola nos privados das casas de banho da discoteca de Santa Apolónia, em sessões contínuas, entre as 23h30 e as 3h, todas as quintas e sextas-feiras até 16 de Dezembro (reservas pelo 918313142).

Quarto Escuro é, no fundo, um novo capítulo de um conceito que Mónica Calle vem colocando em prática desde a estreia de Rua de Sentido Único na Casa Conveniente (então no Cais do Sodré; hoje no Bairro do Condado), em 2003. Na altura, numa pequena sala decorada para parecer um quarto de pensão forrado a papel de parede, em grande parte ocupado por uma cama com uma colcha florida, a actriz convidava os dois espectadores de cada sessão a enfiarem-se na cama, apagava as luzes, puxava de um cigarro e lia-lhes textos de Samuel Beckett, William Shakespeare, Mafalda Ivo Cruz, Al Berto, Stig Dagerman ou Dylan Thomas que versavam o amor. E, às tantas, enfiava-se na cama com o seu público.

As premissas exploradas depois no Festival w.a.y. e agora retomadas em Quarto Escuro mantêm-se: um teatro feito de uma intimidade em que a distância entre a actriz e o espectador se encurtam o mais possível, em que a incerteza do espaço habitado por cada um se impõe, em que deixa de haver um lugar confortável e seguro para quem assiste e em que nunca é claro quem invade o espaço de quem. Se o espectador é quase literalmente encostado à parede, a actriz (uma de três: Mónica Calle, Mónica Garnel e Inês Vaz fazem sessões simultâneas) coloca-se num lugar de exposição, física e pessoal, talvez mais desconcertante.

Francisco Garcês, finalista de Gestão e Marketing no ISCTE, 21 anos, dizia na noite de estreia ter adorado “aquela experiência íntima, aquela troca de olhares em que não há barreiras”. “Estava um bocado de pé atrás inicialmente, mas depois comecei a alinhar, comecei a interagir e gostei imenso.” Não vamos revelar o que se passa em cada um dos privados – até porque dependerá sempre do jogo assumido por cada par acidental –, mas ninguém é forçado a embarcar em terrenos pouco seguros. São esses limites pouco claros, no entanto, que interessam a Inês Geada, 35 anos, trabalhadora na área de investimentos. “Acho muito interessante a arte – teatro, pintura ou qualquer outra – que joga com os limites de cada um e nos puxa um pouco para fora da zona de conforto. E gosto de observar que resultado tem esta coisa imprevisível de quando estamos com outro ser humano. A ideia é mesmo de choque, surpresa, aventura e de não saber muito bem o que fazer com as mãos.”

Reanimar o corpo

Já há uma década, no âmbito do Festival w.a.y., Mónica Calle tinha proposto aos actores que habitualmente a acompanhavam – Mónica Garnel, André e. Teodósio, Ana Ribeiro e Laura Nardi – um dispositivo semelhante ao de Quarto Escuro. A matriz, ainda assim, foi-se alterando com os anos, mantendo-se o desejo de Calle de “reduzir as coisas a uma escala muito pequena, em que tudo o que se pode amplificar está ali condensado e extremado”. “Estes são momentos de liberdade para mim, em que posso ser outra vez actriz. Durante muitos anos, ao querer construir o trabalho de uma companhia, e por muito que queira entrar nos espectáculos, tenho sempre de me colocar num papel de distanciação, de quem está a tomar conta. Estes espectáculos pontuais são momentos em que preciso de voltar a compreender e a pensar sobre as coisas deste ponto de vista mais emocional e mais físico.”

Quarto Escuro integra-se, assim, numa série de espectáculos em que a própria Mónica Calle se aproxima do limite, atalhando por “experiência mais radicais”, para reanimar o seu corpo de actriz. Funciona como uma espécie de questionamento pessoal sobre as suas próprias noções de teatro e de intimidade, de contacto com essa dramaturgia desenhada sobre o risco, para depois poder “devolver” e encontrar-se nos outros. “Isto também me apazigua”, confessa.

Para qualquer um dos espectadores que aceite entrar neste pequeno mundo com guião e estrutura definidos, comuns aos três privados em que a performance decorre em simultâneo, é aleatória a distribuição. Ignora-se até ao momento em que a porta se abre se seremos empurrados para um espaço íntimo com Mónica, Mónica ou Inês. Para que o jogo teatral possa ser levado tão longe quanto possível convém, contudo, que aconteça entre desconhecidos, uma vez que toda a composição de Quarto Escuro assenta na construção de uma relação inexistente, iniciada sem espaço de fuga, e em que a proposta de uma fronteira porosa entre realidade e ficção implica que cada um seja o único cúmplice e espectador do outro. O que se passa lá dentro do privado isso fica entre os dois.

Ou não, porque as casas de banho encontram-se em pleno funcionamento e nem sempre é claro para quem se cruza com as entradas e saídas dos privados aquilo que está a acontecer. Ainda assim, no interior de cada cubículo, não há mesmo espaço para mais um.

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