As invasões ao contrário – ou o Francês atirado ao lixo
Lê-se o Novo Atlas da Língua Portuguesa e o Francês, onde está? No mesmo sítio onde está o Wally. Só que este é mais visível, mesmo que dê trabalho a procurar.
A Terra é redonda, certo? Mas há quem persista em achatá-la, moldando a história conforme as respectivas conveniências. Voltando ao Novo Atlas da Língua Portuguesa, de que aqui se falou na semana passada, há um ponto que não passa despercebido: o quase apagamento da língua francesa. É verdade que houve Napoleão, a soberba imperial das invasões, e que entre Hollande e Le Pen ainda há muito descontentamento a gerir. Mas isso não é razão para atirar a língua francesa para o caixote dos dialectos minoritários. Nas contas feitas para o Atlas, e exibidas em vistosos gráficos, a lista das dez línguas maternas mais faladas no mundo, inclui o Mandarim (à cabeça, com 848 milhões de falantes), seguido do Espanhol (414), do Inglês (335), do Português (261), do Hindi (260), do Bengali (Bangladesh, 193), do Russo (167), do Japonês (122), do Javanês (84) e do Alemão (78). A fonte, escreve-se, é o Observatório da Língua Portuguesa, consultado em 26.7.2016. Já o site Ethnologue – Languages of the World (consultado na mesma data, e também para o Atlas) dá os seguintes resultados: em primeiro lugar o Chinês (1302 milhões), seguido do Espanhol (427), do Inglês (339), do Árabe (267), do Hindi (260), do Português (202), do Bengali (Bangladesh, 189), do Russo (171), do Japonês (128) e do Lahanda (Paquistão (117). Aqui, até o Alemão foi corrido do último lugar. Como vêem, os números não coincidem, o que diz muito da fiabilidade destas “observações”. Mas o Francês, onde está? No mesmo sítio onde está o Wally. Só que este é mais visível, mesmo que dê trabalho a procurar.
No entanto, se consultarmos os dados oficiais franceses, ele reaparece em todo o seu esplendor, como por um passe de mágica. Abdou Diouf, secretário-geral da Francofonia, escreveu no seu relatório mais recente que o Francês “é a quinta língua mais falada do mundo, com 274 milhões de falantes”; e, segundo ele, “é a quarta língua na Internet, a terceira nos negócios, a segunda de informação internacional nos media, a segunda língua de trabalho da maior parte das organizações internacionais e a segunda língua mais aprendida no mundo.” Entre os muito possíveis excessos de tal relambório e o apagamento total do Novo Atlas português, há-de estar a verdade. Muito embora seja difícil encontrar “verdades” neste circo absurdo das línguas em competição, como se estivessem nuns jogos bárbaros e pouco desportivos. Mas há, aqui, uma evidência: os números da França, se os dessem por verdadeiros, estragavam as continhas nacionais. E lá vinha o Português por aí abaixo no ranking dos mais falantes! Daí que, no papel, ponham agora as invasões ao contrário. Com a Língua como arma afiada.
Por falar em língua afiada. No passado dia 10, na Assembleia da República, o deputado José Carlos Barros, do PSD, entendeu interpelar o ministro da Cultura, o escritor Luís Filipe de Castro Mendes, chamando-lhe a atenção para a grafia caótica da nota técnica que o seu ministério enviara ao parlamento a propósito do Orçamento para 2017. Lembrou ele que o ministro dissera que o acordo ortográfico “era um assunto encerrado”, mas que acabava por ser ele próprio a reabri-lo, “quando já se chegou à situação de a língua portuguesa ser destratada deste modo, em documentos oficiais.” “Esta situação é hoje infelizmente generalizada”, lamentou, pedindo resposta. O ministro, surpreendentemente, respondeu assim: “É uma crítica justa. (…) Por uma vez, aceitamos a crítica da oposição, sim senhor. Devemos escrever conforme o acordo ortográfico. Eu sei que isto é polémico, eu sei que isto é uma questão muito polémica, mas não posso não concordar com o senhor deputado José Carlos Barros.” Extraordinário. Veja-se o assunto deste outro modo: um deputado levanta-se e acusa o governo de andar andrajoso, fatos rotos, camisas rasgadas, uma lástima. Então o ministro responde: tem toda a razão, vamos rasgá-los ainda mais.
Voltando ao princípio: a Terra é redonda, certo? Então por que motivo há sempre alguém a querer achatá-la, achatando-nos a nós? Vá lá, meus senhores, a língua merece mais do que isso, seja ela o Português, o Francês ou o dialecto menos falado do lugar mais longínquo.