Common continua precioso

Numa América pós-Obama, a música do homem de Chicago continua a ser tão ou mais relevante do que nos anos 90.

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Editado apenas quatro dias antes das eleições americanas, o 11º álbum de Common, um dos mais prolíficos e importantes rappers vivos, tem no seu título todo um statement político que dispensa explicações (e na sua capa um artwork lindíssimo). Não surge, porém, de modo oportunista nem é tentativa de apanhar, por moda ou conveniência comercial — extraordinário como, actualmente, alguns dos artistas da pop mais descerebrada se arvoram em criadores de música “política” —, a onda de contestação que tem cavalgado a América a pretexto das desigualdades sociais, do racismo (incontáveis negros desarmados mortos a tiro pela polícia nos últimos anos) e, obviamente, das eleições que colocaram um cretino neo-fascista como Trump no poder. Common foi sempre um artista intrinsecamente político desde Can I Borrow a Dollar? (1992), a sua estreia, até Be, de 2005 (e se paramos em 2005, é apenas para sublinhar a superlativa qualidade dos primeiros seis discos, constância rara de ver num artista, sobretudo em início de carreira), todos eles álbuns definidores do hip-hop americano (que é o mesmo que dizer do hip-hop mundial).

Homem-bandeira do conscious hip hop, e uma das vozes negras mais respeitadas na América, sempre fez das suas letras manifestos contestatários, humanistas e, com o tempo, de inspiração crescentemente religiosa (o álbum abre com um louvor ao Criador em Peace and Joy). Tal como, por exemplo, os A Tribe Called Quest, se bem que num registo distinto, Common foi fundamental para mostrar aos miúdos que era possível usar roupa larga e boné e frequentar a hood sem ser gangsta e tudo o que isso, no rap, tradicionalmente implica (a ostentação, a misoginia, a violência).

Black America Again

Simultaneamente, foi abrindo o seu rap às texturas e à doçura da neo soul e do R&B, fusão que, mais do que musical, carregava a dimensão espiritual e afrocêntrica fundadora dos Soulquarians, colectivo americano, activo entre os finais de 90 e os inícios de 2000, de que fez parte. Muito mais tocado do que samplado, o último álbum, não constituindo propriamente uma inovação na sua carreira, mantém a linha musicalmente sofisticada e black-oriented, dando menos crédito à electrónica em relação aos seus últimos trabalhos.

Common volta a reunir-se de talentosos músicos, miúdos e graúdos, desde os produtores Karriem Riggins (baterista de jazz que produz o álbum praticamente todo), Robert Glasper e J Dilla até às requintadas vozes de Stevie Wonder, Bilal, BJ the Chicago Kid, Marsha Ambrosius, Syd ou PJ (a faixa com John Legend, a mais banal dessas vozes, é, simplesmente, um erro de casting). Só o facto de não ceder à “trappização” que o hip hop tem sofrido nos últimos anos já diz muito do bom gosto e da identidade artística do homem de Chicago, sendo este, nesse sentido, um álbum de alguma forma démodé, o que só é positivo — não é que vejamos o trap como um mal em si, mas o certo é que, salvo algumas excepções (que só confirmam a regra), o que ele tem revelado são paletes de rappers sem nada de interessante para dizer, espécie de gangsta rap de segunda ou terceira categoria (rapidamente lhe vemos mais valor enquanto conquista sónica, pelo seu carácter rompedor e exploratório).

Ao contrário do que alguns recém-deslumbrados têm feito crer, a contaminação do rap pelo jazz (e vice-versa) não nasceu com o último álbum de Kendrick Lamar (embora, curiosamente, partilhe alguns dos colaboradores do álbum de Common), antes sendo um processo que tantos artistas têm trabalhado desde, pelo menos, os anos 90 (Guru e os seus álbuns Jazzmatazz, sobretudo o primeiro, serão os exemplos mais óbvios). O álbum possui, seguramente pelo dedo de Riggins, uma inegável dimensão jazzística, visível não apenas nos interlúdios (espécie de pillow effect no modo como operam transições entre as canções), mas também na vibração determinante que, por vezes, um aparente pormenor como o baixo de A Bigger Picture Called Free ou os sopros de The Day Women Took Over (ensaio, com o seu quê de simplismo e ingenuidade, sobre um mundo utopicamente melhor se comandado por mulheres), Little Chicago Boy ou Letter To The Free (trompete de Roy Hargrove) imprimem às canções.

A coerência global está no modo como som e palavra, composição e letra vão oscilando em paralelo: aos momentos distendidos e floridos de Love Star (genial o trocadilho “When we need a break / We take it”, instante em que é samplado o break de Sexy Mama dos The Moments), Red Wine ou Unfamiliar (lindíssima canção boy meets girl com a estarrecedora voz de PJ) contrapõe-se a energia combativa de Home, Pyramids (assanhado sample de Ol’ Dirty Bastard no refrão) e, claro, Black America Again. Esta última, canção impossível de desligar do movimento Black Lives Matter (o nome de Trayvon Martin, uma das vítimas, surge logo no segundo verso), é uma call to action perante o ressurgimento do racismo institucionalizado (daí o “again” e a actualidade da canção hoje como nos anos 60, com Stevie Wonder a apelar a uma re-escrita da “black american story”), ao mesmo tempo que Common se auto-questiona criticamente sobre o que é isso, afinal, de ser livre (“Who freed me: Lincoln or Cadillac? / Drinkin’ or battle raps? Or is it Godspeed that we travel at?”), tema revisitado em Letter To The Free (“Shot me with your ray-gun / And now you want to trump me”, rima de engenhoso sentido duplo, com Reagan e Trump na berlinda). Common pode já não ser o rapper com o hype de outrora, pois o tempo passa e há novos “Commons” para serem idolatrados pelos públicos mais jovens (o facto de ser Alright, de Lamar, a música “oficial” do Black Lives Matter prova-o à saciedade), mas a sua música, soulful e mobilizadora, continua a ser preciosa de ouvir.

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